Vanvan, a referência

Por Andre Arruda*

“Evandro Teixeira. Chile 1973”, a exposição de fotografias que iniciou no dia 21 de março e vai até 31 de julho no Instituto Moreira Salles Paulista, mostra 160 trabalhos do decano do fotojornalismo brasileiro, com curadoria de Sérgio Burgi. São 130 imagens que Evandro, enviado especial do mítico Jornal do Brasil, registrou do golpe militar perpetrado por Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973, e outras 30 da ditadura no Brasil, do período de 1964 a 1968. O Brasil vivia sob as trevas do mandato do general Médici, de outubro de 1969 a março de 1974.

A exposição é um recorte do arquivo de mais de 150 mil imagens, entre negativos preto e branco, cor, slides e arquivos digitais desse fotógrafo baiano, nascido em Irajuba, a 307 km de Salvador, no dia de Natal de 1935. O acervo de Evandro foi adquirido pelo IMS em 2019. A pandemia da Covid-19 atrasou, por motivos óbvios, os processos de identificação, indexação e catalogação de seis décadas dessa obra fotográfica imensa e variada. “Chile 1973” é o ponto de partida dos trabalhos do IMS com Evandro Teixeira, iniciado na efeméride dos 50 anos do golpe chileno.

Conheci Evandro Teixeira ainda estudante de jornalismo, na extinta Faculdade da Cidade. Na verdade, eu queria ser músico. Tocava baixo e queria seguir na carreira, estudava de verdade, umas oito horas por dia. Cheguei a enviar uma fita cassete para tentar entrar no Barão Vermelho, quando o baixista deles saiu. Não rolou. Anos depois fotografei Roberto Frejat e perguntei se ele tinha recebido a fita. Pergunta retórica. Confesso: minha cabeça não estava muito na comunicação social e a faculdade era um pretexto para o tal “canudo”, o sonho classe média do diploma. Mas foi numa aula de fotojornalismo que tudo começou. O professor mostrou uma sequência de slides que reproduziam as fotografias de Henri Cartier-Bresson. Ainda lembro a imagem marcante: a menina correndo por uma escada em Sifnos, na Grécia, 1961.

Alguns anos depois, consegui entrar no Jornal do Brasil. Nunca havia trabalhado em jornal antes, mas tinha uma boa ideia do que era. A concorrência era brutal. A impressão inicial é que não havia tempo para nada e tudo era para ontem. O departamento fotográfico de um jornal dos anos 90 seria uma excelente fonte para uma série de streaming, porque havia de tudo, de galãs a picaretas, de poetas a semiletrados. Um ambiente de predominância masculina e com poucas e bravas mulheres. E sobretudo muita competição, por vezes desleal. Havia um certo preconceito da redação com a fotografia, sempre houve, mas isso é outro assunto. Evandro era o protagonista do Jornal do Brasil e sempre estava apressado. A grande força de sobrevivência naquele departamento era a adaptação, e logo se entendia que nos fins de semana você se livrava de pautas ruins se fotografasse bem esportes, em especial futebol. Que a arte do retrato tinha peso num jornal que prezava a cultura, com o Caderno B. E o domínio da técnica e criatividade faziam a diferença e tinham lugar em pautas mais “refinadas”, que seriam bem impressas em cor na semanal Revista Domingo. Evandro Teixeira, sobretudo, era um mestre sobrevivente, um lutador e com uma intuição quase sobrenatural. Tinha um nível altíssimo de acertos em todas as editorias. Era a referência.

Não seria cabotino dizer que ficamos amigos com certa rapidez. Tínhamos fotograficamente muito em comum, em especial o apreço pela mítica agência Magnum, de Cartier-Bresson, Robert Capa e mais tarde Sebastião Salgado. A fotografia de jornal estava mudando e já se notava um espaço entre a velha guarda, que achava que fotojornalismo era “polícia e futebol” e o resto era frescura, e uma turma mais jovem, com outra formação. O contexto, entretanto, pedia que esses dois estratos profissionais convivessem bem, o “velho” malandro que entendia os hábitos e modos de uma delegacia e os mais novos, com outros olhares. E se bebia bem. O chopp era uma religião e como qualquer ambiente de trabalho tenso, as festas da firma eram animadas.

Havia pautas que de tão frias sobravam para os “focas”, gíria para iniciante, como eu. Era uma matéria sobre segurança no trânsito, para o suplemento de carros e a ilustração pedia uma criança andando na caçamba de uma pick up. “Vai lá e se vira.” OK. Evandro viu a minha roubada. Ele tinha uma pick-up na época, uma Saveiro, talvez. Prontifico-se a dirigir o carro e ainda conseguiu um garoto pra andar na caçamba! Lembro de ter chegado cedo a seu apartamento, na Gávea, e ele aparece de cueca samba-canção e fazendo a barba. Disse pra eu esperar que já íamos descer. Já tínhamos meio que combinado a foto, era um “panning”, quando se usa velocidade baixa no obturador para ilusão de velocidade, movendo a câmera lateralmente, acompanhando o veículo. “Usa até 1/15! menos que isso borra muito”. E lá veio Vanvan com um garoto da vizinhança encarapitado de pé na caçamba, fazendo justamente o que não se devia fazer, segundo as regras do bom automobilismo. Repetiu com paciência algumas vezes. A foto ficou boa.

Eu saí do JB antevendo uma situação ruim que poucos anos depois se concretizou. Evandro ficou lá até o fim; não havia por que ir embora. Sempre mantivemos contato. No meu livro sobre 100 brasileiros e suas coisas favoritas, inestimáveis, eu queria fotografar um vaqueiro encourado do sertão nordestino. Evandro, é claro, conhecia alguém. E lá fomos para o interior de Pernambuco, em Serrita, em pleno sertão. Evandro em minutos já se dava bem com todo mundo e num misto de direção de ator e carisma, os vaqueiros iam pra lá e pra cá, ele dirigindo a cena ou a cena acontecendo por causa dele. Evandro, é claro, está no livro. O que ele não vive sem? Uma câmera Leica M.

A história do Brasil moderno, dos anos 60 até o início dos 2000 passou por suas lentes. Depois que se organizar esse acervo imenso, um livro chamado BRASIL Evandro Teixeira não seria um exagero. A ditadura é um ponto forte na obra dele, mas tem mais, muito mais. Um Brasil brejeiro, sem polarização, malandro no melhor sentido, do Maracanã antes da reforma, do Electra da ponte aérea, do sapato Vulcabrás, sem a maldição do crack, do olho no olho, da inteligência natural e de algo que se perdeu. De anônimos que se tornaram épicos a Tom, Vinicius e Chico deitados numa mesa de bar, uma situação impensável hoje, mas que Evandro Teixeira foi lá e fez. É como se uma pessoa incorporasse Grande Otelo, Didi Mocó, Jacques Tati e Ariano Suassuna, uma certa inocência matreira, com audácia e sem maldade. Santo não é, nunca foi, até porque Santos só o do Pelé, que ele fotografou no Chile, em 1962, sua primeira Copa do mundo, pelo Diário de Notícias, com uma Hasselblad. Falando em divindades, fotografou Garrincha também. Em 1963 entraria para o Jornal do Brasil, ficando até 2010.

Sempre acreditei que o olhar de Evandro Teixeira é um generoso e cúmplice convite ao humor, mas não da pilhéria. É muito difícil fazer rir com fotografia, até porque humor é reversão de expectativa e fotografia, em especial a jornalística, lida com signos estáticos de urgência. Talvez apenas um fotógrafo tenha feito uma carreira com humor, Elliott Erwitt, que usava e abusava de sequências. Tenho certeza de que ele e Vanvan se dariam bem.

Uma das fotos favoritas de Evandro é o “Casamento em Paraty, 1969“. Entende-se que os noivos são pessoas são muito humildes e ambos seguram guarda-chuvas! O olhar macambúzio de ambos expressa tudo, menos um estado de felicidade nupcial pós cerimônia. A imagem, porém, nos invoca a um abraço nos dois. Evandro diz que depois da foto, casal e convivas foram à uma padaria comemorar com leite e biscoitos. É nessa janela que a fotografia real vive e viverá, quando o fotógrafo se anula, por domínio absoluto de sua técnica, e se torna, apenas pela luz, o vetor da emoção e da empatia. E do amor.

*Andre Arruda é fotógrafo, curador e jornalista. Autor do livro “100 Coisas que Cem Pessoas não Vivem sem”.

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