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Um fôlego de poder para Lira

Algumas horas antes de o plenário da Câmara dos Deputados decidir sobre a urgência para a proposta que equipara o aborto ao crime de homicídio (PL-1904/2024), o deputado Eli Borges (PL-TO), líder da bancada evangélica, já informava sobre o acordo firmado dentro do gabinete do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para que a votação fosse simbólica, sem abertura do painel. “Ele vai chamar simbólica e, se alguém pedir nominal, ele abre o painel”, disse o parlamentar, no meio da tarde, ao sair da reunião que durou mais de três horas com todos os líderes da Casa.

Após receber de Lira a garantia do procedimento, Borges tratou de ocupar os microfones para desfiar um rosário de argumentações, todas levantando suspeitas sobre as mulheres, e presentes nas justificativas da proposta. “Não pode valer apenas a palavra de uma mulher”, disse. “Não pode valer apenas a palavra da mãe. Existe a mãe, a avó, o avô, o cidadão. Uma mera declaração não pode justificar um ato tão violento assim.” Então, para os defensores das pautas conservadoras, a vítima tem que provar que foi vítima de estupro? É isso? “Sim, ela tem que provar”, respondeu o parlamentar, sem constrangimentos. “Trata-se de um assassinato porque esse feto está em plena condição de sobreviver, inclusive fora do útero da mãe. Basta que o governo melhore o atendimento psicológico para essa mãe que não quer continuar com essa gestação”, simplificou.

Acordo

E Lira, por sua vez, cumpriu o combinado. Tentou honrar a promessa da forma mais discreta possível, como se fosse possível esconder dos olhos do país o teor do que estava sendo decidido naquela quarta-feira. Foram 23 segundos de votação. O presidente da Câmara sequer citou o número do projeto e a ementa ao anunciar o que estava sendo votado. Ao se referir à matéria, do alto da Mesa Diretora, porém, justiça seja feita, ele usou a expressão mais fidedigna de que poderia lançar mão naquele momento: “acordo feito.”

Sim, a urgência para se decidir sobre a vida de meninas abusadas, que engravidam e precisam peregrinar por hospitais dispostos a cumprir a lei, vale o apoio da bancada religiosa e dos bolsonaristas na sucessão da Câmara. E Lira costurou esse apoio no dia 8 de maio, quando recebeu na Residência Oficial da Câmara representantes da bancada para um almoço.

Com todos perfilados à beira da piscina, a foto foi distribuída pela assessoria para jornais de Alagoas. Nesse encontro, os deputados empenharam sua palavra em votar no candidato indicado pelo alagoano. “Estamos trabalhando essa pauta tem mais de 30 dias após uma reunião que tivemos com Lira na casa dele”, disse Borges. “Desde que apoiamos o Lira deixamos claro que essa era uma de nossas pautas, como é da nossa pauta a luta contra a descriminalização das drogas, a luta pela liberdade religiosa, a luta pela manutenção da família judaico-patriarcal”, disse o líder evangélico. “Claro, sem discriminar ninguém.” E Borges não fez segredo: “Todas as vezes que nossas pautas são valorizadas as pessoas que assim o entendem passam a ser observadas como pessoas que compreendem as nossas demandas.”

Trunfo

Se Lira não calculou bem o tamanho da reação diante do pagamento que precisou fazer aos evangélicos, o fato é que, com a proposta na mão, ele ganhou mais um respiro de poder. Agora, cabe somente a ele a decisão de levar a proposta ao plenário. Mesmo que o clima hoje esteja ruim devido às reações, não deixa de ser um trunfo ocupar a pauta da Câmara em um momento em que o governo ainda espera votações importantes como a regulamentação da reforma tributária, por exemplo.

Embora o presidente da Câmara, diante da reação negativa, minimize o efeito da urgência, dizendo que ela não limitará o debate em torno do tema (o que não é verdade porque a urgência transpõem as discussões de mérito nas comissões), pessoas próximas a ele indicam que o alagoano deve esperar a poeira baixar para usar esse trunfo. “Vamos esperar a semana que vem para decidir o que fazer”, disse um assíduo interlocutor ao Meio.

Lira ainda conseguiu nesta semana outro feito que aumenta a sua ascendência sobre parlamentares. Ou, pelo menos, freia o esvaziamento natural de seu poder. Com 400 votos favoráveis, 29 contrários e uma abstenção, ele conseguiu aprovar uma mudança do Regimento Interno da Câmara para punir com suspensão e de forma mais célere deputados que infrinjam o Código de Ética nas sessões da Casa. Ele precisou ceder para aprovar a proposta, mas abriu mão de pontos que não faziam a menor diferença para ele, visto que seu controle do Conselho de Ética da Casa também é um quesito a ser considerado relevante.

Silêncio ensurdecedor

Apesar do desgaste para Lira, outro fator a se observar é que a questão do aborto não representou um ativo para a imagem do governo. Pelo contrário. O que se viu na Câmara foi um silêncio ensurdecedor de parlamentares da base do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Somente parlamentares do PSOL e do PCdoB se colocaram publicamente contrários à votação. Interessava ao governo apenas a aprovação do incentivo à indústria automobilística, no projeto apelidado de Mover. Quanto à pauta de costumes, o governo só gostaria que ela não estivesse em discussão.

A primeira reação do governo só ocorreu no final do dia seguinte, quando a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, se posicionou, considerando a proposta inconstitucional. Na sexta, quando a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (SC), decidiu opinar sobre o assunto nas redes sociais, por exemplo, as reações imediatas foram no sentido de reclamar da demora em se tomar uma posição. Mesmo a primeira-dama, Janja, normalmente tão vocal sobre diversos assuntos, só se manifestou na sexta-feira.

Para Raquel Alves, consultora do Núcleo de Inteligência e Análise Política da BMJ, a apatia do governo teve razões compreensíveis, mas superou o que seria razoável. “Se o governo se posicionasse a favor da proposta, perderia o voto da militância. Se contrário, sem conseguir explicar o quanto é equivocado o projeto, corria o risco de ser mal interpretado pela massa religiosa da sociedade. Então, é de se entender a estratégia de avaliar com mais calma um posicionamento. Mas acho que, nesse caso, demorou demais”, avaliou em conversa com o Meio.

Na sexta, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), mostrou que não há chances de o projeto tramitar na Casa Alta na mesma velocidade colocada por Lira na Câmara. Com isso, Raquel Alves avalia que Lira acaba ganhando um argumento para não cumprir com a bancada evangélica o compromisso de votar o mérito o mais rápido possível. “Lira agora pode segurar a proposta para colocar em pauta na hora que melhor o convier. E usar isso para fazer um agrado real para a bancada evangélica lá na frente, mais perto da eleição da Mesa”, observou. Ou seja, o retrocesso pode sofrer uma pausa. Mas ela tende a ser temporária.

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