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Bruxaria. É assim que o DJ K define o gênero que cria, vertente do funk mandelão. Misturando batidas de 130 a 140 bpm com sons agudos e estridentes — os conhecidos tuins —, o produtor musical arrasta os bailes de São Paulo com sucessos como Balançando a Umbrella e Illuminati — Viagem Ao Oculto. Neste fim de semana, no entanto, suas músicas extrapolam a quebrada paulista e invadem as telas da 27ª Mostra de Tiradentes, um dos mais importantes festivais de cinema do país. O evento, que começou ontem e vai até 27 de janeiro, tem como premissa divulgar a diversidade da cinematografia contemporânea. Para isso, selecionou 145 filmes de 20 estados brasileiros. A caminhada do funkeiro e de seu amigo MC Zero K protagoniza uma das obras escolhidas, Terror do Mandelão (trailer), que estreia neste domingo na exibição.
Dirigido por Felipe Larroza e GG Albuquerque, o longa-metragem explora narrativas documentais e elementos ficcionais para retratar o cotidiano de jovens que sonham em viver do funk. “Ao contar essa história, a gente fez questão de que o pensamento sonoro e as metodologias criativas do funk fossem traduzidas em imagem e narrativa audiovisual de alguma forma. O DJ K toca várias batidas diferentes na mesma música exatamente para captar a atenção das pessoas. Queríamos transmitir isso nas telas”, conta Albuquerque. Recifense, o diretor tem suas raízes em um dos principais polos nacionais de produção audiovisual.
Embora a filmografia pernambucana tenha se iniciado há um século, com o Ciclo do Recife, a ascensão recente de suas películas dão um novo fôlego ao cinema brasileiro. No último ano, Kleber Mendonça Filho foi escolhido pela segunda vez para representar o país no Oscar. Apesar do reconhecimento, a indicação não foi para a frente. Abusando de experimentações e conflitos políticos-sociais, os cineastas Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso, Cecília da Fonte, Yane Mendes, Milena Times, Juliano Dornelles, Renata Pinheiro e Mariana Porto acompanham Mendonça como nomes consolidados.
Ao passo em que Pernambuco estrutura uma relação de longa data com as bilheterias, para além do eixo Rio-São Paulo, a novidade fica por conta de Minas Gerais e Paraíba. A região famosa pelos queijos e cafés abriga hoje mais de 300 produtoras, incluindo a Filmes de Plástico. Responsável por Marte Um, a empresa tem entre seus sócios André Novais, homenageado junto à atriz Bárbara Colen nesta edição do festival. Já a Paraíba se prepara para um grande ano, com a produção recorde de 14 longas-metragens. A marca é inédita. Em 2023, o Estado lançou apenas um longa, Cervejas no Escuro, de Tiago A. Neves. O salto deve-se à Lei Paulo Gustavo que, por meio de editais do governo paraibano e da Prefeitura de João Pessoa, está investindo mais de R$ 10,5 milhões nos materiais locais.
Em contrapartida, o crítico de cinema Sérgio Rizzo ressalta que “a ocupação de mercado não tem a ver apenas com número de títulos”. “Tem a ver com o número de salas em que os filmes são exibidos. A produção brasileira tem sido alijada do mercado doméstico, sobretudo por conta da ação das distribuidoras americanas, há algumas décadas. Não há hipótese de comparação entre o público de um filme americano lançado em duas mil salas, impulsionado por campanhas acachapantes de marketing, e um brasileiro lançado muitas vezes em meia dúzia de salas ou menos, e sem orçamento minimamente digno para o lançamento”, analisa.
De acordo com uma nota enviada pela Ancine ao Meio, a Cota de Tela, as leis de cotas no cinema e na TV paga sancionadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última semana, e outras medidas, como os R$ 530 milhões captados pelas Leis de Incentivo Federais e liberados em 2023, “contribuem para a formação de uma conjuntura propícia para que os resultados expressivos ocorridos no início de 2024 continuem ao longo do ano, permitindo ao cinema brasileiro estabelecer um novo ciclo de crescimento”. Os resultados expressivos a que a agência se refere são dos filmes Minha Irmã e Eu e Mamonas Assassinas — o Filme, que ocuparam mais de mil salas e levaram cerca de 1,5 milhão de brasileiros aos cinemas. A ocupação de salas pode ser acompanha neste painel.
Mas esses são realmente os filmes feitos para o grande público, mais comerciais mesmo. O cotidiano de GG Albuquerque faz coro a Rizzo. Driblando a falta de verba, sua obra levou dois anos para nascer, fruto do trabalho de apenas seis pessoas. “Se os créditos fossem fidedignos, seriam os seis nomes assinando a direção, montagem e filmagem porque todo mundo meteu a mão em tudo. É um filme totalmente coletivo e independente. Não pegamos financiamento nenhum, tiramos tudo do nosso bolso. E agora é focar em ganhar algum hype e movimentar o circuito para chamar atenção das distribuidoras.” Estreante no mercado, ele tem razão. Fazer barulho com a divulgação da obra pode abrir portas, confessou em off uma das incumbidas por selecionar os conteúdos que integram o catálogo de uma grande plataforma de streaming. “Nas nossas mãos chega de tudo. Comédia, comédia romântica, documentário. True Crime, por exemplo, é o que está muito forte. A diversidade das produções é realmente o que marca o atual momento. Então, para selecionar, levamos em conta o que está bombando, se a obra consegue capturar o espírito do tempo e, também ajuda, se os materiais estão sendo falados, já conquistaram um público”, disse. A Mostra de Tiradentes é uma das principais plataformas do cinema nacional para isso. Vale dar uma olhada.