Se Trump perder
George Washington, primeiro presidente dos Estados Unidos, foi eleito duas vezes sem candidato adversário. Mas, desde 1796, quando John Adams derrotou Thomas Jefferson, as eleições presidenciais no país despertavam uma e somente uma pergunta: quem vencerá? Uma guerra civil e dois conflitos mundiais não impediram que os pleitos de 1864, 1918 e 1944 transcorressem normalmente, e mesmo a polêmica eleição de 2000 foi encerrada dentro dos ritos democráticos. Tudo mudou em 2020, quando, derrotado nas urnas, o presidente Donald Trump tentou manobrar para mudar o resultado, culminando com uma inimaginável invasão do Capitólio por uma turba em 6 de janeiro do ano seguinte, a fim de evitar que o Congresso homologasse a vitória de Joe Biden.
Trump é mais uma vez candidato, agora contra a vice-presidente Kamala Harris, e, com as pesquisas indicando uma competição acirrada, a questão sobre quem vencerá permanece em aberto. Não há muitas dúvidas sobre o que Trump fará se vencer — deportação em massa de imigrantes, perseguição de inimigos políticos, uso de forças de segurança contra cidadãos americanos, tudo declarado por ele mesmo em sua escalada perigosa. Mas uma outra pergunta paira agora: o que o candidato republicano e seu partido e partidários farão se, mais uma vez, forem preteridos pelos eleitores?
Nem a pessoa mais ingênua ou otimista do mundo imagina que Trump vá reconhecer uma eventual derrota eleitoral. Ele e seu atual companheiro de chapa, o senador J.D. Vance, não admitem até hoje a vitória de Biden em 2020. Nos últimos meses, os dois, seus advogados e aliados vêm trabalhando com esse cenário, espalhando desinformação e abrindo processos sem base. Contam ainda com legisladores de estados-chave, agentes da lei e do Judiciário que acreditam estar servindo a um “bem maior” e um sistema eleitoral que pode ter feito sentido há 224 anos, mas que nas últimas décadas vem servindo de barreira à vontade da maioria dos eleitores.
Escolados, os democratas buscam erguer barricadas legais a artimanhas, mas também precisam vencer a eleição. É nesse emaranhado de suspeitas, temores, pesquisas e regras caóticas que vamos nos debruçar agora, enquanto aguardamos o veredito das urnas.
Complicada e imperfeitinha
Em apertadíssima síntese, todas as chances que Trump tem de subverter o resultado das eleições derivam do sistema eleitoral estabelecido pela Constituição dos EUA em 1788. É importante lembrar que o país foi formado por 13 colônias britânicas com governos, culturas e organizações socioeconômicas distintas, unidas basicamente pelo desejo de se livrar do domínio inglês. Seus líderes sabiam que, isoladamente, nenhuma colônia conseguiria se libertar da metrópole. Ao mesmo tempo, todas relutavam em abrir mão de poderes e prerrogativas em favor de um governo central, temendo que este as atropelasse. Couberam à União principalmente a economia, a defesa e a diplomacia.
Outra preocupação era que os já renomeados estados mais populosos e economicamente desenvolvidos, concentrados no Norte, se impusessem aos do Sul, agrários e com grande população escravizada — por óbvio, sem direito a voto. Desses temores nasceu o desenho de um sistema eleitoral profundamente descentralizado.
A eleição presidencial não é uma votação nacional, mas 50 eleições estaduais para escolher os delegados que representam o estado no Colégio Eleitoral e, de fato, elegem o presidente. Somente Maine e Nebraska fazem uma distribuição proporcional. Nos outros 48, o candidato que obtiver 50% dos votos mais 1, leva todos os delegados. Na prática, isso quer dizer que um candidato pode ter, na soma nacional, a maioria de votos populares, mas, se não somar mais delegados, não vai chegar à Casa Branca.
Algumas consequências desse sistema são muito visíveis. Em 1992, o bilionário conservador Ross Perot se lançou candidato independente e obteve 18,9% dos votos populares, mas, como não venceu em qualquer estado, tirou zero no Colégio Eleitoral. Mais grave ainda, em cinco eleições desde o século 19 o escolhido pelo colegiado havia sido derrotado nacionalmente no voto popular. Caso, aliás, de Donald Trump em 2016 — Hillary Clinton obteve quase três milhões de votos a mais, mas o republicano venceu em mais estados.
Por conta disso, existem os chamados estados vermelhos e azuis, com domínio consolidado de republicanos e democratas, respectivamente. E há os “estados-pêndulo”, que mudam de cor conforme a situação. Isso, claro, não é ciência exata. Em 2016 Trump venceu em Wisconsin e Michigan, no chamado “Cinturão da Ferrugem”, até então solidamente democrata. São necessários 270 votos no Colégio Eleitoral para a vitória, e, em caso de empate, o Congresso escolhe o presidente.
Há décadas políticos e acadêmicos defendem o fim do Colégio Eleitoral, mas encontram sempre resistência por parte dos estados menores e, em geral, dos republicanos, grandes beneficiários do atual sistema. Na avaliação do analista Jeff Greenfield, uma mudança será possível caso Trump conquiste a maioria do voto popular, mas perca no Colégio Eleitoral, situação plausível na indefinição do atual quadro das pesquisas.
Até 1974 não havia nos EUA um órgão federal que fiscalizasse as eleições. Naquele ano foi criada a Comissão Federal Eleitoral (FEC, na sigla em inglês), mas seus poderes são muito limitados em comparação, por exemplo, com a Justiça Eleitoral brasileira. Limitam-se basicamente a fiscalizar e divulgar os financiamentos de campanha. As lei eleitorais e o sistema de votação diferem de estado para estado, e a realização do pleito fica a cargo do Executivo local, o que abre espaço para a partidarização do processo.
O voto não é obrigatório, o cidadão que deseja participar do processo precisa se registrar como eleitor, mas é possível votar antecipadamente em alguns estados e até pelo correio, inclusive do exterior. Leis federais proíbem a restrição do direito a voto com base em gênero ou etnia, mas não são raros os artifícios contra essa norma.
E é nesse cenário que as possíveis estratégias de Donald Trump se desenrolam.
Peças no tabuleiro
Os últimos quatro anos tiraram do ex-presidente alguns recursos para um ataque às eleições, mas deram-lhe outros. Em 2020 Trump controlava os departamento de Justiça e de Defesa, portanto, as Forças Armadas — que, é bom frisar, resistiram a suas sondagens para subverter a ordem democrática. Por outro lado, os esforços de seus partidários para reverter a vitória de Biden foram marcados por um certo improviso, ações tomadas conforme a eleição e a apuração se desenvolviam. Não mais.
O Partido Republicano teve tempo de se organizar e afirma dispor de 230 mil voluntários nos estados-pêndulo para “garantir cada voto legítimo”. A estratégia começou com processos em tribunais de diversos estados contra supostas irregularidades nos registros de votos, especialmente acusando imigrantes, um dos alvos preferenciais do trumpismo, de terem conseguido se registrar. Somente cidadãos, nativos ou naturalizados, podem ser eleitores, salvo em pequenos pleitos locais, que aceitam estrangeiros legalizados. Mesmo com essas ações sendo rejeitadas na maioria das cortes, elas são amplamente divulgadas nas redes sociais e na mídia conservadora, criando junto ao eleitorado do republicano a expectativa de que fraudes aconteçam. Uma pesquisa de janeiro deste ano mostra que 66% dos partidários de Trump acreditam que o pleito de 2020 foi fraudado.
Um segundo movimento é restringir o direito ao voto e intimidar eleitores. Na última quarta-feira, a Suprema Corte, de maioria ultraconservadora, reinstituiu ao estado da Virgínia o direito de retirar das listas de eleitores registrados pessoas suspeitas de serem imigrantes. A norma havia sido suspensa após se constatar que muitos dos expurgados tinham cidadania americana. Kamala Harris aparece em vantagem em pesquisas na Virgínia, e o governador republicano Glenn Youngkin é acusado de dirigir o expurgo das listas a grupos que tenderiam a votar nela.
Outra estratégia, agora pós-eleitoral, é tumultuar o processo de apuração. O Legislativo da Geórgia — estado republicano onde Biden venceu em 2020 — chegou a aprovar uma lei exigindo a contagem manual de todos os votos no estado, o que atrasaria em semanas a divulgação do resultado oficial, mas a medida foi derrubada na Justiça. Normalmente, recontagens manuais só ocorrem em resultados muito apertados ou diante de indícios fortes de irregularidades.
Trump conta com outro trunfo: os autointitulados xerifes constitucionais. Trata-se de um movimento de extrema direita antigoverno que congrega policiais na ativa e aposentados para o qual os xerifes locais são a autoridade máxima. Na visão deles, qualquer ingerência estadual e, principalmente, federal, é usurpação do poder da comunidade. Desde o início do ano esses xerifes vêm mobilizando cidadãos para impedir o voto de imigrantes, o que poderia levar a constrangimento de naturalizados. “Em um estado-pêndulo como Michigan ou Wisconsin, com uma diferença de 50 mil ou 70 mil votos, a atuação de um desses xerifes pode comprometer toda a credibilidade da eleição”, alerta Will Pelfrey, professor de direito criminal e segurança nacional na Universidade Commonwealth da Virgínia.
Os democratas, claro, não estão parados assistindo a tudo isso. A campanha de Kamala Harris também mobilizou um exército de advogados e voluntários, em particular nos estados-pêndulo. O melhor exemplo é a Pensilvânia, território democrata entre 1992 e 2012, mas que elegeu Trump em 2016 e voltou-se para Biden quatro anos depois. Com 19 delegados, é o mais importante estado sem um líder claro nas pesquisas e está sendo alvo pesado de uma campanha de desinformação por parte dos republicanos — além de uma forcinha financeira de Elon Musk. Em resposta, os democratas montaram uma “tropa de elite” que envolve a Guarda Nacional (braço das Forças Armadas com permissão constitucional de atual dentro do país), o Departamento de Segurança Nacional, a agência local de situações de crise e o próprio governo do estado.
Além da ação local, a campanha de Kamala conta com mudanças na legislação aprovadas após a invasão do Capitólio e antes que os republicanos retomassem a maioria da Câmara. Elas diminuem a margem de manobra de autoridades locais para intervir na apuração e forçam a certificação dos delegados para o candidato mais votado. Pela norma anterior o Legislativo estadual tinha a última palavra na escolha desses representantes. Outra mudança é que o vice-presidente, que também preside o Senado, não pode atrasar a homologação do resultado — o que Trump cobrou sem sucesso de Mike Pence em 2021. Não que a atual vice, a própria Kamala, pareça ter essa intenção.
Mas todo o esforço para garantir que a vitória nas urnas seja reconhecida depende de um pequeno detalhe: a vitória nas urnas.
Em que pé estamos
Segundo o agregador de pesquisas 270 To Win, os números são mais favoráveis neste momento a Trump. De acordo com os dados da última sexta-feira, 1º de novembro, o republicano teria 262 votos do Colégio Eleitoral — 131 garantidos, 88 com boa vantagem e 43 com ligeira vantagem. Já Kamala Harris tem 226, sendo 191 garantidos e 35 com ligeira vantagem. Há ainda quatro estados completamente indefinidos: a citada Pensilvânia (19 votos), Michigan (15), Wisconsin (10) e Nevada (6). Trump venceu nos três primeiros em 2016; Biden levou os quatro em 2020. Por esses números, Nevada, com todo o respeito, não cheira nem fede. Kamala precisa vencer nos outros três ou nada feito. Trump tem de ganhar em um deles para garantir a eleição. Considerando, claro, que as “ligeiras vantagens” se confirmem.
Especialistas com ampla experiência em analisar tendências eleitorais atiram em diferentes direções. O historiador Allan Lichtman é apelidado de “Nostradamus eleitoral” por ter acertado nove das dez últimas eleições presidenciais dos EUA — seu “erro” foi apenas na primeira eleição de George W. Bush, em 2000, mas a derrota de Al Gore na Flórida é em grande parte atribuída a um modelo confuso de cédula. Em um vídeo publicado em seu canal no YouTube, Lichtman afirma que Kamala Harris será eleita. Ele baseia sua análise em 13 “chaves”, da estabilidade econômica ao carisma do candidato. Por suas contas, a vice-presidente tem nove dessas chaves; Trump, apenas quatro.
Já Nate Silver, o “mago das pesquisas”, escreveu há pouco mais de uma semana que, embora as pesquisas estivessem emboladas, seu instinto apontava a vitória de Trump, acrescentando que não se deve confiar em instintos. Seu último boletim, publicado na sexta-feira, mostra o ex-presidente liderando na Pensilvânia por 0,6 ponto percentual, muito abaixo das margens de erro de todos os levantamentos compilados.
Ou seja, só nos restam duas certezas: os dias após 5 de novembro serão longos e, se as projeções indicarem a derrota de Trump, o jogo não será bonito.