O fim da ilusão

Vasculho intrigado a bibliografia sobre a ascensão da extrema-direita, converso com pessoas, leio artigos e colunas de jornais, esforço-me para prestar atenção no debate público, mas continuo entre a angústia e a perplexidade. Fala-se muito sobre o avanço eleitoral e político do radicalismo de direita, do populismo autoritário e dos extremismos intolerantes que ameaçam direitos humanos, minorias e valores fundamentais da democracia, com diagnósticos geralmente corretos sobre o fenômeno atual mais preocupante nas democracias das Américas e da Europa.
Contudo, noto três aspectos importantes que me preocupam. Primeiro, fala-se da guinada à extrema-direita como se tivesse ocorrido ontem. Segundo, ignora-se a permanência das pessoas nessa nova direção, bem como a expansão desse movimento. Terceiro, as mesmas explicações usadas para entender o giro à direita iniciado por volta de 2016 e 2018 ainda são aplicadas hoje, como se elas bastassem para explicar por que, em 2024, as maiores democracias das Américas continuam a votar massivamente à direita. Pior ainda, tais explanações continuam os princípios ativos fundamentais do que prescrevem o campo da esquerda e os progressistas para resolver o problema da radicalização direitista e conservadoras das sociedades.
Alguma coisa, evidentemente, está fora de ordem.
Nos congressos, no debate público e na conversa política em geral nos ambientes de esquerda, fala-se ainda da guinada à extrema-direita como se tivesse sido resultado de um surto. Uma onda de indignação e frustração que levou uma parte da sociedade a se distanciar de maneira brusca e intensa das alternativas tradicionais entre esquerda, direita e centro, principalmente da esquerda. Uma alienação que teria sido motivada por paixões e sentimentos — como a ojeriza à política tradicional ou o horror ao petismo, o ultraje ético ou o pânico moral — e enganos e manipulações, por meio de fake news, teorias da conspiração e propaganda negativa, favorecidas por destrezas tecnológicas e por algoritmos que favoreciam o ódio e a polarização.
A tsunami de frustração, ódio e mentiras foi surfada por oportunistas radicais de direita e ultraconservadores que, para surpresa até dos próprios envolvidos, viram-se de repente sentados em cadeiras presidenciais ou controlando maiorias parlamentares. Mas se acreditava que tudo isso fosse como um furacão: é repentino, destrói tudo no caminho, mas, a um certo ponto, como vem se vai.
Assim, no final da década passada, a pergunta decisiva que se fazia quem acompanhava e estava impressionado com a guinada à extrema-direita no mundo tinha dois focos: o “quando isso vai passar?” e o “quanto isso vai custar à democracia e à vida pública?”. Indagava-se, dito de outro modo, “quando as pessoas, que agora são levadas por raiva, frustração e medo a votar em soluções radicais antipolítica e populistas, irão cair em si, dar-se conta do quão nocivo é o extremismo que levaram ao poder e voltar a posições políticas mais moderadas e construtivas?” Era como um pesadelo do qual, em algum momento, se acordaria, ou como uma cachaça pesada cujo efeito cedo ou tarde passa, embora não se evite uma enorme dor de cabeça como consequência.
Em algum momento, pensava-se, o pêndulo do sentimento público sobre a política voltaria a posições razoáveis e esclarecidas
A questão seguinte era sobre o que a nova elite, elevada ao poder pelo voto da frustração, da raiva e do medo de 2016 e 2018, iria fazer com o cheque em branco dado pelos insatisfeitos com a política e com a esquerda. Pois o estrago, por todos os indícios fornecidos ou pelas promessas feitas pelos candidatos que souberam capitalizar o azedume político do momento, era certo e garantido. E, de fato, contabilizou-se o rastro de destruição das instituições democráticas e dos liames sociais, com uma pandemia malconduzida no meio, assim como o desfecho dramático dos mandatos de Trump e Bolsonaro, com tentativas de não largar o poder depois de perderem as eleições, como se faz a crônica de uma tragédia anunciada.
A guinada à extrema-direita teve efetivamente um custo, e foi um custo consideravelmente alto. Por isso mesmo, suposto que as pessoas agem minimamente com base decisões racionais e cálculos de custo e benefício, havia de se esperar que, depois das batalhas eleitorais de 2020 e 2022, os que se radicalizaram à direita nas eleições anteriores poriam algum juízo na cabeça e se afastariam dessas loucuras. Como disse Biden, era a hora de curar as feridas do país. No Brasil, era a hora da reconciliação nacional: extremismo nunca mais.
Isso, contudo, não aconteceu. O pêndulo político não dá sinais de que vá voltar ao padrão pré-2016, pelo menos não tão cedo. A guinada ao radicalismo, inclusive na direção de posições antidemocráticas, manteve a rota de forma consistente. Ao contrário, pode-se dizer que a virada à extrema-direita se revelou contagiosa, com um número cada vez maior de populações de importantes democracias no mundo decididas a apoiar candidatos que exibem com satisfação e orgulho o seu radicalismo e a sua vocação autocrática. Veja-se o caso da Argentina, que resolveu engrossar as conversões à extrema-direita justo no momento em que o Brasil e os Estados Unidos estavam se livrando dos seus governantes autoritários.
Além disso, mesmo quem, nessa virada, não perdeu o senso nem se jogou em projetos radicais, cultuou pneus e milicos ou pintou-se para tomar o poder na porrada, afastou-se de forma deliberada e consistente da esquerda e dos progressistas. No caso brasileiro, mais da metade dos eleitores, como provam essas eleições municipais, ativamente buscaram candidatos ideologicamente distantes da esquerda. E boa parte das candidaturas bem-sucedidas certamente explorou a visível rejeição do eleitorado à esquerda progressista para justamente conseguir os mandatos em disputa.
No Brasil, hoje, não se trata apenas do fato de a esquerda eleger poucos candidatos; o mais grave é que a imagem da esquerda é tão ruim para uma parte das pessoas se presta a ser usada como espantalho por qualquer aventureiro político, mesmo aqueles decididamente sem qualquer substância, com grandes chances de sucesso eleitoral.
Vide Pablo Marçal, que provavelmente compreende pouquíssimo sobre o espectro ideológico que separa esquerda e direita para além dos clichês de viúva da ditadura ou da Guerra Fria, mas fazia questão de ostentar a sua hostilidade ao que quer que a esquerda representasse. A direita fisiológica brasileira – que se camufla no rótulo complacente de “centrão” – saiu-se bem nessa eleição também por esta razão. De um lado, porque abrigou muitos candidatos da extrema-direita portadores de diversos graus de bolsonarismo. De outro lado, porque representou alternativas programaticamente anti-esquerda progressista.
Ser de esquerda já representou um “plus” na oferta eleitoral, principalmente em regiões pobres e para classes mais baixas. Aparentemente, o jogo mudou, e valores adversários da esquerda, como o conservadorismo em campo moral, a responsabilização individual pelo crime e o louvor ao empreendedorismo, são apreciados na mesma medida em que as pautas identitárias progressistas e o ódio ao capitalismo, identificados com a esquerda, são reprovados.
A esquerda aprenderia muito certamente sobre as razões dessa rejeição se empreendesse um esforço sincero para entender o que as massas reconheceram e buscaram em candidatos como Pablo Marçal, por exemplo, para além do que há nele de farsesco, agressivo e criminoso.
Mas ela continua apegada a velhas explicações que, se no passado ajudaram a entender a guinada, não colaboram em nada no entendimento da permanência, seja da rota à direita, seja do distanciamento da esquerda por pelo menos metade do eleitorado. Lá se vão cinco eleições brasileiras nessa toada e logo “a novidade” do giro à direita completará uma década. É evidente que, do eleitor de Pablo Marçal em 2024, não se pode dizer o que se dizia do eleitor de Bolsonaro em 2018, isto é, que foi tapeado por fake news e ludibriado por algoritmos, que descarregou em um voto de protesto as suas frustrações com o PT, que foi enganado pelos jornais que “normalizaram” a candidatura “disruptiva” e não trataram o candidato como democraticamente repulsivo e pessoalmente mal-intencionado. Em 2018, pode-se alegar um desesperado tiro no escuro; em 2024, não seria honesto negar que foi uma escolha consciente e deliberada.
Manter em 2024 as mesmas hipóteses de 2018, de que as pessoas votaram contra a esquerda progressista porque foram enganadas e iludidas é que é uma bela ilusão. Isso subestima as massas que não votam como gostaríamos, presumindo-as incapazes de discernimento e racionalidade, como se fossem presas fáceis da astúcia dos “malvados”, incapazes de perceber e neutralizar os truques da propaganda digital e as tentativas de manipulação. Na verdade, isso desqualifica, tanto intelectual quanto moralmente, metade dos americanos e brasileiros, por exemplo, que se voltaram à direita e à extrema-direita, e permanecem nesse caminho, apesar de tudo o que se conhece sobre as comunicações maliciosas digitais ou as consequências políticas do populismo e radicalismo.
A falta de esforço para entender por que metade da população americana ainda aposta em Trump pela terceira vez consecutiva — e por que o mesmo ocorre no Brasil com Bolsonaro ou seus representantes — me causa perplexidade. É evidente que há algo que levou metade dessa população a considerar normal simpatizar com radicais de direita e ultraconservadores, ao mesmo tempo que rejeitam a esquerda e os progressistas. O que tem a direita conservadora de interessante e o que os eleitores procuram nela? E, inversamente, o que na esquerda e nos progressistas repele metade dos eleitores a tal ponto que se tornou crescentemente hostil a ambos? Estas perguntas não devem ser evitadas, a não ser que a esquerda fique satisfeita em continuar culpando o gato pelo vaso quebrado na sala ou prefira continuar jogando o jogo do contente enquanto a casa desaba.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema.

O Meio é a solução.


Assine agora por R$15

Cancele a qualquer momento.

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: Que direita é essa?
Edição de Sábado: Apostando a própria vida
Edição de Sábado: Órfãos do feminicídio
Edição de Sábado: Fogo e cortinas de fumaça
Edição de Sábado: Cinco dias na Ucrânia

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)