Que liberalismo é esse?
O liberalismo brasileiro cindiu, nesta eleição de 2022, de uma maneira como jamais havia ocorrido antes. A maior mostra deste movimento talvez seja a maneira como dirigentes do Partido Novo reagiram à declaração de voto, pelo seu fundador João Amoêdo, no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “A declaração é uma traição aos valores liberais”, escreveu Felipe D’Ávila, candidato à presidência do Novo este ano. “Amoêdo, pega o boné e vai embora.” O presidente da legenda foi no mesmo tom. “Vergonhosa, constrangedora e incoerente a declaração de voto”, afirmou Eduardo Ribeiro. Amoêdo, porém, não está sozinho. Declararam voto em Lula Pérsio Arida, Pedro Malan, Edmar Bacha, Armínio Fraga, Elena Landau, José Roberto Mendonça de Barros, Henrique Meirelles. Ao passo que inúmeros, na Faria Lima, gritam que a dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes são os únicos capazes de tocar um projeto liberal no Brasil. “Hoje sou um liberal”, declarou à Veja o próprio Bolsonaro faz duas semanas.
Isto é novo no cenário político da Nova República. Se pessoas que se dizem liberais votam tanto em Lula quanto em Bolsonaro porque veem no adversário incompatibilidade com o liberalismo, algo fica evidente. Estão chamando pelo mesmo nome ideologias muito diferentes.
A confusão não é nova. A eleição de 2022 apenas a tornou evidente. Meu companheiro neste espaço, o cientista político Christian Lynch, os distingue chamando uns de liberais-democratas e, os outros, de neoliberais. José Guilherme Merquior os dividia de forma mais direta. Liberais de um lado, liberistas do outro. Uns defensores da liberdade no sentido mais amplo da palavra, outros focados apenas em liberdade econômica. A diferença entre os dois grupos não é pequena mas se tornou mais aguda, principalmente na América Latina, após os anos 1980.
Neste momento de risco à democracia, é bom que se separem para nunca mais se encontrarem.
Mas antes é importante fazer a distinção entre as duas visões de mundo — e poucos o fazem melhor do que o cientista político Michael Freeden, professor emérito de Oxford. Porque uma ideologia tão antiga e longeva quanto o liberalismo, nascida com a publicação de Uma Carta sobre Tolerância de John Locke, em 1689, não poderia atravessar mais de três séculos sem mudar profundamente e fazer nascer muitas variantes.
Freeden não vê um único liberalismo — vê gerações de filósofos refletindo sobre seus tempos, sociedades, e reagindo às dificuldades e questões que apareciam. Foram, assim, depositando camadas de novos valores e ideias, por vezes ignorando o pensado antes, noutras recuperando o que havia se perdido. Ao todo o liberalismo, em sua descrição, foi construído uma camada após a outra ao longo dos séculos. Ao final são cinco camadas, nem sempre coerentes entre si, mas bem ou mal alicerçadas pela busca dos mesmos de princípios.
A primeira, a raiz de todas, é movida pelo impulso de ser contrário a qualquer forma de tirania. É a âncora que garante a toda pessoa, todo indivíduo, um espaço em que sua liberdade pessoal seja garantida. A liberdade de se expressar, de tomar parte no debate sobre a política, e agir sem medo de sofrer consequências pelo que pensa. Esta liberdade, Locke já via desde o início, teria inevitavelmente de ser limitada pela liberdade do outro.
É deste liberalismo mais base que nasce o instinto de formar um Estado a partir de uma Constituição na qual todos serão iguais perante a lei.
A segunda camada, que surge já com os primeiros movimentos da Revolução Industrial, trata da liberdade econômica. É o liberalismo de Adam Smith e David Ricardo. Conforme os mercados globais começam a se abrir, ainda num ambiente de governos absolutistas, o direito de poder negociar salários e determinar preços de produtos sem que o Estado se envolva começa a ser cobrado. A crença no trabalho individual, honesto, que leve ao crescimento econômico da pessoa e, assim, da nação, passam a ser defendidos com argumentos sólidos e lógicos. No entorno desta ideia surge o contrato entre duas pessoas ou empresas com valor perante a Justiça. Aquele Estado de Locke passa a ser, também, um garantidor destas relações privadas.
A partir de meados do século 19, quando a miséria que acompanhou a industrialização se tornou evidente, mais uma vez o liberalismo mudou seu foco, puxado por um de seus pensadores mais importantes — o inglês John Stuart Mill. Esta terceira camada não se opõe ao livre comércio, mas já não o vê mais central. A prioridade se torna liberar o potencial do desenvolvimento de cada pessoa. Se a primeira camada do liberalismo dizia “deixa eu ser quem sou”, esta terceira proporia “deixa eu crescer tanto quanto posso”. Há um sentido de igualdade de oportunidades e a busca por um Estado que garanta as condições para que todos possam encontrar seu melhor. O mercado já não é mais um de bens — o mercado torna-se uma metáfora para explicar as dinâmicas de como circulam ideias, valores, mesmo pessoas.
É daí que surge, na virada para o século 20, o que os ingleses batizaram de Novo Liberalismo — um que ressaltava interdependência dos indivíduos em sociedade. Por mais que existam direitos individuais, todos dependemos uns dos outros até para que possamos garantir os mesmos direitos individuais. Os agentes do Novo Liberalismo são os principais promotores da criação de uma teia de proteção social que incluísse seguro desemprego, aposentadoria, saúde pública, alimentação gratuita nas escolas. Para que a pessoa seja realmente livre é preciso garantia de dignidade para todos, diziam. Se as camadas anteriores viam indivíduos e o Estado, esta quarta camada incluiu um terceiro elemento na dinâmica. A sociedade.
Da segunda metade do século passado para cá, economistas, juristas e filósofos do liberalismo vêm criando sua quinta camada, observando que as relações humanas em sociedades livres se tornaram bem mais complexas do que se poderia imaginar. Grupos de interesses se formam normalmente para disputar suas pautas, e seu espaço deve ser garantido. Estes grupos — partidos, sindicatos, entidades de classe, igrejas, mais recentemente ONGs — todos disputam a palavra no debate e poder de ação, e nenhum deve ter seu monopólio. Uma sociedade liberal, portanto, deveria ser capaz de garantir não apenas o ambiente para livre manifestação e relação entre indivíduos, mas também entre estes grupos.
É neste momento em que pensadores como o Nobel indiano Amartya Sem florescem. Ou o americano John Rawls.
Hoje, novos debates chegam à pauta, como o da questão identitária, quando grupos se organizam na sociedade não ao redor de interesses econômicos ou no entorno de ideias, mas pelo que consideram uma identidade comum. O multiculturalismo, talvez inevitável com a ampliação daquele velho desejo liberal das fronteiras abertas, cria novas tensões e certamente, nas próximas décadas, uma sexta camada será adicionada à mais antiga das tradições de pensamento político em democracias. O liberalismo ainda não produziu um pensamento coeso sobre como lidar com as novas tensões que surgem.
As cinco camadas do pensamento liberal descritas por Michael Freeden são todas relacionadas, todas se encontram nos princípios essenciais da liberdade individual observados por Locke. Mas, a respeito dos inúmeros aspectos do pensamento liberal, temas diversos foram colocados com maior ou menor ênfase dependendo da época ou do lugar. E, ainda assim, todas estas camadas compõem a mesma tradição do que a ciência política engloba nesta palavra: Liberalismo.
Cada liberal constrói o seu liberalismo com as peças disponíveis nas prateleiras do pensamento passado, seguindo o mesmo princípio de pesar as ênfases. Os limites são sempre claros. Um presidente da República intolerante não representa aquilo que o autor de Carta sobre Tolerância pensou.
Se o presidente não tolera diversidade entre pessoas, se fala em extermínio de parte da oposição, se a atuação privilegia uma igreja sobre outras, então não descende de Locke.
Não é liberal. É iliberal.
Ou, como escreveu no Twitter Michael Reid, colunista de Américas da revista The Economist, “nenhum liberal de verdade pode achar que Bolsonaro, que não aceita restrição ao poder, é menos ruim que Lula”. Reid escreve para a revista que é o bastião do pensamento liberal britânico faz quase dois séculos e respondia ao ataque de Felipe D’Ávila a Amoêdo. “Você tem todo o direito a sua opinião mas representa qualquer coisa menos o liberalismo.”
Se não é liberalismo, o que é isso que D’Ávila, Paulo Guedes, os parlamentares ainda eleitos do Novo, empresários como Luciano Hang e Salim Mattar, e um bando de gente na Avenida Faria Lima chama por este nome? O que é isto que Christian Lynch chama de neoliberalismo em distinção ao liberalismo-democrático e Merquior batizou liberismo em contraste com liberalismo?
De volta a Michael Freeden. Há duas razões políticas para chamar de liberalismo o que não é liberalismo. Parecem contraditórias entre si mas, na verdade, são complementares. Uma parte de pensadores marxistas e militantes de esquerda, em geral, cujo objetivo é reforçar uma caricatura hostil do liberalismo. A outra vem do outro flanco, da direita, para empurrar um pacote de ideias impopulares como se fossem benéficas. A direita quer se beneficiar da marca. A esquerda pretende detrata-la. Ambos os grupos se beneficiam do mesmo movimento. O jogo de um interessa ao outro. E, na sua ação, ambos sufocam o espaço do real liberalismo.
No neoliberalismo, no liberismo, as esferas social, política e cultural são todas subordinadas ao mercado no sentido estritamente econômico do termo. O Estado serve apenas como garantidor dos fluxos contínuos de capitais e produtos, o que fere de morte a ideia essencial de Locke de que todo poder deve ser limitado. De que pessoas não podem ser oprimidas. Esta ideologia pode lembrar, à primeira vista, uma versão pura da segunda camada do liberalismo, como se a primeira jamais tivesse existido. Mas não há Adam Smith e David Ricardo sem John Locke, o Barão de Montesquieu ou Voltaire. Smith era profundamente tocado por valores humanistas. Escreveu A Riqueza das Nações e escreveu, também, a Teoria dos Sentimentos Morais, quando reflete sobre a mútua busca por simpatia nas relações entre pessoas. Na busca por respeito entre pessoas. E mesmo quando escrevia sobre economia, assim como Ricardo, eles pensavam não nas relações entre grandes corporações que produzem anualmente mais do que o PIB de meio mundo. Pensavam, isto sim, em negociantes, em gente procurando construir suas vidas. Havia uma missão ética no pensamento de ambos com uma única direção: a construção de uma sociedade justa.
“Uma das principais características do conservadorismo é a crença nas origens extra-humanas da ordem social”, escreve Freeden. Ideologias não são conjuntos estáticos de ideias. São como linguagens. Partem de uma ideia forte — a liberdade, para o liberalismo, ou o conflito de classes, para o marxismo — e vão se adaptando aos momentos da história. A ideia forte do conservadorismo é esta, a de que a ordem social não é uma construção humana. É algo que está além do controle das pessoas. Em certos momentos do passado, sua origem foi percebida como divina. Vem de Deus. Para este grupo, a ordem social é dada pelo mercado e mexer com o mercado é sugerir que pessoas poderiam intervir na ordem social.
Para o professor de Oxford, esta filosofia, este neoliberalismo ou liberismo ou o que for, não é uma vertente liberal. É a captura da linguagem do liberalismo para vender uma forma de conservadorismo.
No fim, o conservadorismo é uma ideologia a serviço da manutenção dos privilégios de um grupo perante outros. É assim desde a Revolução Francesa, quando protegia aristocratas. Na descrição do historiador das ideias alemão Jan-Werner Mueller, em essência o conservadorismo acredita que deve haver uma hierarquia social. A existência de desigualdade entre grupos é compreendida como parte da ordem natural.
É do jogo que se pense assim. Só não é liberal. De Locke, não vem.
Liberais são poucos, no Brasil. Por um bom tempo foi conveniente, politicamente, uma aliança com conservadores e tolerância com a captura do nome. Por um tempo, até, foi possível encontrar pontos de encontro nos pensamentos e evitar os muitos atritos. Ser liberal na economia, conservador nos costumes, virou até frase corriqueira. Como se fosse coerente.
Quando aquele grupo quer cruzar a linha da democracia, o rompimento não é apenas desejável. É imperativo. Já causou dano demais.