Que esquerda é essa?

Pouco mais de uma semana depois do primeiro turno, Fernando Haddad, o ministro da Fazenda de Lula, sentou-se diante da jornalista Monica Bergamo para uma longa entrevista e, com a sobriedade habitual, tentou justificar o resultado ruim das urnas para a esquerda enquanto o governo federal apresenta bons números na economia. Haddad carrega em si quase todo o dilema — e talvez parte das respostas — que vive seu campo ideológico. É, ao mesmo tempo, alguém que acredita em muitas ideias basilares do pensamento fundador da esquerda, mas que busca atualizá-las para os tempos modernos. Não é um exercício fácil. Os que são mais apegados a diretrizes tradicionais acusam essa postura do ministro de ser atucanada, quase uma traição.

Como de costume, Haddad procurou na história recente parte das explicações para o fracasso eleitoral atual. Creditou ao avanço da extrema direita, recorrente em momentos de grandes crises “sistêmicas”, como denominou. “Em 2008, assistimos a uma crise [financeira] do neoliberalismo, e a extrema direita começou a avançar no mundo inteiro. Seu pensamento começou a se impor. A segunda razão para que isso acontecesse, além da crise do modelo neoliberal, é que a esquerda, naquele momento, ainda estava saudosa de estruturas do século 20 que tinham feito água nos anos 1980. O sistema soviético, o nacional-desenvolvimentismo e a própria social-democracia europeia, que eram as três grandes estruturas com as quais partes da esquerda dialogavam, tinham desaparecido, entrado em colapso quase. Sobrou para a extrema direita.”

Haddad não se absteve de fazer também um autodiagnóstico. Disse que “a esquerda não estava preparada para 2008 [ano de crise econômica global], com um programa renovado, com um sonho renovado.” E prosseguiu. “A bem da verdade, a esquerda ainda não está dialogando com um projeto de futuro. Quando você não tem um sonho, um horizonte utópico que guia as pessoas, você tem um horizonte distópico. E a extrema direita é distópica.” Haddad não soube oferecer, de pronto, que sonho seria esse. “É preciso fazer uma reflexão séria. E eu penso que a esquerda está se devendo a isso. Mais formulação teórica, mais aprendizado, mais ousadia na reflexão sobre o que é possível fazer.”

Haddad não está se questionando sozinho. O ICL reuniu cinco nomes da esquerda para um debate sobre seu futuro: a ex-deputada Manuela D’ávila, a filósofa Márcia Tiburi, o sociólogo Jessé de Souza, o professor e influenciador Jones Manoel, o deputado federal Lindbergh Farias e o deputado estadual Renato Freitas. Temas como o distanciamento da periferia, a política fiscal, a ideologia envergonhada, a onipresença de Lula e o identitarismo surgiram, com diferentes defesas e projeções. Manuela anunciou ali que estava deixando o PCdoB, por “falta de opção, por falta de condições de qual caminho seguir”. Ela disse ser fundamental que “a esquerda brasileira supere um discurso superficial, ou um discurso de quem não se dedica a compreender o Brasil e o povo brasileiro”. “Cada vez que uma certa esquerda diz que isso é debater identidade, nós nos afastamos mais e mais dos problemas reais que o povo brasileiro vive. A esquerda tem de superar esse debate atrasado entre raça, gênero e classe.”

A esquerda parece hoje dividida entre alguns rumos. Fincar mais fundo suas bandeiras ou reinventá-las. Virar-se ao centro ou reforçar sua contraposição à extrema direita. Remodelar ou não as lutas identitárias.

Pois se há questionamentos sobre a reação, há uma boa dose de consenso sobre a conclusão apresentada nesse ciclo eleitoral: existe uma incapacidade dos partidos do espectro hoje de se reconectar com suas bases. No momento da constatação do ministro, membros do PT, PSB, PCdoB, PDT e PSOL já analisavam aflitos o desenho das urnas que saiu do primeiro turno. Um cenário desfavorável, considerando o que esse leque de siglas angariou de prefeituras durante os mandatos presidenciais petistas anteriores, tanto de Luiz Inácio Lula da Silva quanto de Dilma Rousseff. No primeiro turno, o conjunto de siglas de esquerda conseguiu 724 prefeituras, menos da metade dos municípios conquistados ao final do processo eleitoral de 10 anos atrás, em 2012, quando a esquerda foi eleita para administrar 1.468 cidades. Esse número não crescerá no segundo turno o suficiente para fazer frente ao centrista PSD, por exemplo, que conquistou sozinho 878 municípios.

As eleições municipais costumam marcar uma espécie de referendo do governo federal vigente. No caso desta de 2024, com a aritmética até aqui, a direita e a centro-direita estão dizendo à frente ampla do presidente Lula que o país está pendendo mais ao seu lado conservador. Isso não é novo, evidentemente. Acontece que a esquerda e, por ombreamento, a centro-esquerda precisam se reacomodar se quiserem seguir sendo competitivas eleitoral e politicamente. Mas que esquerda é essa de que fala Haddad e que se apresenta ao Brasil? Quais suas nuances e suas divisões internas? Quais suas bandeiras? Respostas para essas e muitas outras perguntas ainda não foram dadas nem internamente. A esquerda passa por dificuldades em se reconhecer. E, sem isso, sofre para se reapresentar.

Rearranjos internos

É chiste recorrente o de que, em partidos de esquerda, tudo vira assembleia. Então, naturalmente, a executiva nacional do PT marcou uma reunião para a próxima segunda-feira com o objetivo de avaliar o que ocorreu nas urnas Brasil afora e começar a organizar uma conferência da legenda, a ser realizada em dezembro, na qual o partido vai buscar novos caminhos. Anedotas à parte, esse é um indício de que o maior partido da esquerda brasileira está disposto a se olhar no espelho. O ponto de partida é a percepção, especialmente entre os mais antigos, de que o desafio de encontrar a reconexão com as camadas mais populares é enorme. Um sentimento é comum entre os políticos desse campo com quem o Meio conversou: as bases sociais que geraram a esquerda brasileira se alteraram muito. A lembrança da ditadura está esmaecida e o movimento sindical não tem a força de antes, entre outros pontos que cercam as relações entre capital e trabalho. “Essas bases não deixaram de existir, mas se modificaram”, constatou um petista histórico, que preferiu falar em reservado.

Diante disso, a forma de atrair o voto dos empreendedores ou mesmo dos trabalhadores mais precarizados parece uma incógnita. Do lado da direita, quem tratou de forçar a conversa sobre e com esse público foi principalmente Pablo Marçal. Até aqui, quem vem batendo mais nessa tecla no lado oposto tem sido Lula. “Nós temos a sorte e a competência de ter uma liderança como o Lula que fala à esquerda, ao centro e até, por vezes, à direita. O grande desafio para todos nós nesse campo que chamamos de esquerda é ocupar o espaço que o Lula ocupa e ser capaz de apresentar maneiras atrativas para aquele cidadão que não é de esquerda, mas que pode se aproximar com bandeiras atrativas. Quais são essas bandeiras? Ninguém sabe ao certo”, reconhece esse petista.

Quadro histórico do PT e hoje secretário nacional de Economia Popular e Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, Gilberto Carvalho foi chefe de gabinete de Lula nos primeiros mandatos e hoje também se ressente da perda dessa conexão — não só do PT, mas da esquerda como um todo — com a periferia. Ele participou da formação do partido oriunda das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, outra força social em declínio e contraída pela ascensão das denominações evangélicas. E enxerga como complexa a necessária virada que o partido precisará fazer. “Conseguimos, em determinado momento, pós-ditadura, captar o sentimento da sociedade por justiça, democracia e direitos. Tínhamos aliados importantes como a Igreja Católica, o movimento sindical forte, os movimentos sociais crescentes na sociedade.” A ruptura começou, para Carvalho, ainda na gestão de Dilma, com as manifestações que colocaram em xeque o governo do PT. “Estamos diante de uma espécie de crise civilizatória e não sabemos como lidar com isso. Não é simples dizer quais são as bandeiras.”

O senador Humberto Costa, do PT pernambucano e que faz parte da executiva da sigla, acha que o “calor das eleições” não é adequado ao diagnóstico e que a reformulação precisa ser feita considerando ações de curto, médio e longo prazo. Mas concorda que é preciso começar a falar do assunto. “Vamos começar a fazer essa leitura na segunda-feira”, disse. “Vamos chamar pessoas que possam nos ajudar a traçar essas estratégias e tratar tanto do governo Lula quanto do projeto da esquerda.” Costa ainda indica a necessidade de se reavaliar a “atualidade e a potência” do projeto do partido com olho voltado para as eleições de 2026.

Um sintoma de que achar o rumo parece ser uma tarefa difícil se percebe na pergunta que tem sido feita por petistas. “Por que um governo com todas as ações e realizações positivas não tem uma avaliação bastante positiva?”, questionou Costa, depois de citar uma lista de números da economia e dos programas sociais. Ele, então, passou a defender a autocrítica — essa palavra tão surrada no vocabulário progressista, seja para defendê-la ou censurá-la. “É preciso saber o que decorre da nossa maneira de propor coisas para o Brasil, o que decorre do problema de comunicação do partido. São coisas assim que a gente vai debater e, é claro, temos que debater também o projeto de mais longo prazo da esquerda brasileira, e do PT em particular.”

Além-muros

Apesar de seu tamanho, o PT não encerra a esquerda. Há outras siglas no espectro — normalmente mais à esquerda. Comentando o “sonho de futuro” de Haddad, a deputada Fernanda Melchionna, do PSOL gaúcho, deixa explícita pelo menos uma divisão entre atores dentro do campo. Em sua visão, existe uma “velha esquerda”, com sua base no movimento trabalhista, sindical e de combate à ditadura, que vem experimentando o enfraquecimento de seus apelos diante da população; e a “nova esquerda”, que incorpora com mais ênfase o feminismo, o movimento por direitos de minorias discriminadas, a luta antirracista e por valorização de populações tradicionais, entre outros temas. “O problema não é vender um sonho, é entregar esse sonho”, diz a deputada, em crítica ao ministro da Fazenda de Lula. “O Brasil é a maior economia do mundo. Não tem como construir universidade, ter aumento real de salário, valorizar os trabalhadores, isentar até R$ 5 mil o imposto de renda, proposta corretíssima de Lula nas eleições, tendo compromisso com o arcabouço fiscal. É muito difícil!”, reclama.

Pode-se chamar a pauta da nova esquerda de identitária. Mas Melchionna rechaça essa denominação. Ela considera que o termo é usado de forma pejorativa para desqualificar os temas que ligam políticos do seu partido, principalmente, a esses movimentos.  Por um lado, a luta por direitos de mulheres, negros, povos tradicionais e minorias sempre teve ligação com a esquerda como um todo e até com segmentos de partidos liberais. Mas a ênfase que se dá a essas pautas é um divisor dentro da esquerda brasileira. E essa ênfase na luta de minorias em direitos, para a deputada, é exatamente o que seria capaz de estabelecer a reconexão da esquerda com as camadas mais populares. “Nós sabemos que nosso papel é junto aos movimentos populares.” É uma aposta legítima, mas arriscada, especialmente num momento em que parte importante da disputa ideológica se dá em torno dos valores. Isso porque parte da esquerda identitária leva as pautas a um extremo performático ou cancelador que acaba por interditar a conversa com setores menos progressistas.

Vão-se os anéis

Aquele desejo de mais formulação teórica de Haddad no campo da esquerda não está solto na imensidão. As universidades sempre foram profícuas em pensadores desse lado do espectro e há muitos deles se debatendo com as possibilidades de futuro. Há cisão ali também, porém.

Do lado dos que pendem para uma esquerda que assuma muito claramente sua posição, está o filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle, filiado ao PSOL e que teme a volta da extrema direita ao poder em 2026. Em entrevista ao UOL, ele vaticinou: “A esquerda não chegou à periferia por que não tem o que dizer para a periferia. O que tem para dizer para a população periférica? Serão criadas macroestruturas de proteção social, grandes estruturas de educação pública, vamos fazer o ensino secundário totalmente gratuito para que as pessoas não sejam obrigadas a pagar, ou um investimento sólido no sistema educacional? Não tem nada disso acontecendo.”  Safatle aponta uma contradição intrínseca em que o campo se encontra. A partir do momento em que a esquerda precisou partir para a defesa da democracia, do Judiciário, das instituições, dos contratos e da normalidade, deixou de ser “antissistema” e de fazer sentido. “Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando.”

Safatle não é o único pessimista. Ao Brasil247, o filósofo do direito marxista e professor a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Alysson Mascaro, analisou o “buraco” do qual a esquerda não conseguiu sair nessas eleições municipais e, na contramão dos anseios por uma bandeira para esse campo, ele aponta o desastre de uma esquerda envergonhada de mostrar seu rosto. “Quando a esquerda renuncia a falar que é de esquerda, aí se dá o strike total”. “Se a esquerda se contentar com o centro, ela não é esquerda. Ela é o centro”, critica.

Mas essa convicção não é unânime. O cientista político Jorge Chaloub, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), lembra que o desempenho fraco dos partidos nas eleições municipais não representa um ponto fora da curva. “Talvez o ponto fora da curva seja o que ocorreu em 2012, quando houve um aumento de prefeituras conquistadas por esse campo”, ponderou. Ele indica, no entanto, que não se pode desconsiderar o bom desempenho no âmbito nacional e, a partir desse ponto, tentar identificar o que leva o eleitor a votar na esquerda para a Presidência e não para o governo de estados ou municípios. A esquerda venceu cinco das seis últimas eleições presidenciais no Brasil. Por que ela ganha para presidente e não consegue ter maioria dos governadores, do Congresso, dos municípios ou das câmaras de vereadores? “Parte dessa resposta passa por olhar para que coisas são fundamentais para a vitória da esquerda nas eleições presidenciais. É inegável que, nas eleições presidenciais, a esquerda precisa renunciar a alguns anéis para ficar com os dedos. Ela tem de fazer aliança, ceder cabeça de chave, apoiar partidos que não fecham com ela. Apesar de o PT ser um partido de esquerda e estar à frente do governo, a coalizão que permitiu o PT governar nem sempre foi uma coalizão de esquerda.”

Para Chaloub, não faz sentido esperar da esquerda brasileira, que disputa eleição, um discurso mais disruptivo, característico de segmentos sem peso eleitoral no país como a UP (Unidade Popular), ou mesmo o PCO (Partido da Causa Operária). “A esquerda brasileira tem um ator que é muito grande nas eleições presidenciais que é o PT. Ele acaba sendo uma grande representação de uma esquerda que vê a luta pelas instituições e não contra elas. É uma esquerda que vai agir com o Judiciário, com conselhos, conferências internacionais e até por meio de associações de bairros. É esse partido que tem uma identidade clara à esquerda e que eu diria que é uma esquerda mais institucional.”

A se considerar a matemática que o grande vencedor do primeiro turno fez em sua volta da vitória, o cálculo pelo centro pode fechar melhor a conta. Gilberto Kassab, presidente do PSD, um pé em cada barco ideológico, apresentou a seguinte planilha: “os três partidos de centro tiveram 40 milhões de votos. Se o centro e a direita estiverem juntos, somam 72 milhões de votos.” A esquerda fez 23 milhões.

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