Quatro estrelas e uma sentença
Cinco votos, não necessariamente em uníssono, mas com a mesma conclusão, escreveram nesta semana um novo capítulo no manual de como o Brasil lida com as tentativas de solapar a democracia. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) transformou em réus por tentativa de golpe de Estado oito acusados, encabeçados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Tão importante quanto — talvez até mais importante que — a abertura do processo contra o antigo chefe do Executivo é a inclusão de quatro nomes: os generais de exército Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa e da Casa Civil), Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-comandante do Exército) e o almirante de esquadra Almir Garnier Santos (ex-comandante da Marinha), todos hoje na reserva. O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, completa a lista de réus fardados.
Pela primeira vez em nossa vida como país, militares de alta patente vão passar pelo devido processo legal em função de uma tentativa de golpe. É um precedente importantíssimo, mas, para que seja de fato efetivo e mude nossa maneira de lidar com o desrespeito à ordem constitucional, é necessário que, se condenados, os réus cumpram suas penas e sirvam de exemplo para quem venha a ter a mesma ideia. Essa, infelizmente, jamais foi a regra no Brasil.
Golpes de Estado ou tentativas estão ligados de maneira indissociável a nossa República, ela própria nascida de uma insurreição militar comandada em 1889 pelo marechal Deodoro da Fonseca. Pesquisadores ainda debatem se a intenção dele era de fato derrubar o regime do imperador Pedro II ou apenas o gabinete do visconde de Ouro Preto, mas o fato é que o vício de origem golpista estava instalado, como lembra o historiador Carlos Fico, um dos maiores especialistas brasileiros em regimes autoritários. “Até hoje prevalece nas Forças Armadas a visão de que elas são um ‘poder moderador’ com o dever de tutelar a República. Daí a necessidade até pedagógica de punir os golpistas”, avalia.
Três em um
O ineditismo que estamos vendo hoje se refere a uma investigação da Polícia Federal, uma denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República e uma deliberação do juízo competente, o STF, o que se espera em uma democracia liberal. Mas oficiais de alta patente, ex-ministros militares e até ex-presidentes serem presos por tentativa de golpe não são um fato único. Houve um precedente que, aliás, concentrou as três características, o do marechal Hermes da Fonseca. Como conta Pedro Doria — sim, o diretor de jornalismo cá deste Meio — em Tenentes – A Guerra Civil Brasileira (Record, 2016), a prisão de Hermes na noite de 2 de julho de 1922 acabou catalisando a insurreição contra o presidente Epitácio Pessoa e seu sucessor eleito, Arthur Bernardes.
Oficial mais graduado das Forças Armadas, ministro da Guerra de 1906 a 1909 e presidente da República entre 1910 e 1914, o marechal cavou a própria prisão ao repreender por telegrama o coronel Jaime Pessoa, primo distante de Epitácio, por comandar uma ação contra manifestantes que resultou em civis mortos em Pernambuco. A repressão atendia a uma ordem presidencial, o que transformou o telegrama em insubordinação.
Hermes passou apenas 17 horas preso no 3º Regimento de Infantaria, na Urca, mas sua detenção colocou em movimento uma rebelião que tinha entre os líderes seu filho caçula, o capitão Euclides, comandante do Forte de Copacabana. O movimento começou na noite de 4 de julho, e cabia ao velho marechal sublevar a Escola Militar e a Vila Militar, ambas em Realengo, na Zona Oeste do Rio. Foi bem-sucedido com a primeira, mas não com a segunda, e acabou mais uma vez preso. A revolução, como chamavam seus participantes, havia fracassado, e na manhã do dia 6, somente o Forte de Copacabana continuava sublevado. O capitão Euclides foi detido ao tentar negociar uma rendição, e os homens que restavam na guarnição decidiram enfrentar as tropas legalistas, no episódio conhecido como os “18 do Forte”, embora o número fosse maior. Somente os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes sobreviveram.
O marechal Hermes passou seis meses preso, até ser libertado por um habeas corpus em janeiro de 1923 devido à saúde debilitada — ele morreria em setembro daquele ano. Na presidência, Arthur Bernardes se recusou a anistiar os revoltosos, o que motivou outras insurreições do chamado movimento tenentista. Mas todos acabaram recebendo anistia e sendo reintegrados às Forças Armadas quando Getúlio Vargas tomou o poder na revolução de 1930.
Golpes, contragolpes e anistias
Getúlio permaneceria no poder por 15 anos, mais da metade como ditador, após instituir o Estado Novo em 1937. Enfrentou sublevações de comunistas e integralistas, movimento de inspiração fascista que havia apoiado inicialmente o autogolpe do presidente, mas sua relação com as Forças Armadas foi tranquila até 1945, quando o regime já dava sinais de exaustão. Pressionado, Vargas suspendeu a proibição de partidos políticos e convocou eleições presidenciais, mas, paralelamente, estimulou um movimento para se manter no poder, o “queremismo”, derivado do slogan “queremos Getúlio”. No dia 29 de outubro de 1945, os militares convenceram Getúlio a assinar uma carta-renúncia, marcando o fim da ditadura. Em troca, nem ele nem integrantes do governo responderam pela quebra da ordem constitucional em 1937 ou pelos crimes cometidos pelo regime. Mais uma vez a pacificação se sobrepôs à Justiça.
Cinco anos depois, Getúlio se mudou de novo para o Palácio do Catete, agora pelo voto, mas seu governo foi marcado por intensa instabilidade política. Um de seus opositores mais ferozes, o jornalista e futuro político Carlos Lacerda sofreu um atentado na noite de 4 de agosto de 1954. Escapou com um ferimento leve, mas o major da Aeronáutica Rubens Vaz, que lhe fazia segurança, foi morto, dando início a um confronto cada vez mais intenso entre o Executivo e os militares. No dia 22, 19 generais do Exército assinaram um manifesto pedindo a renúncia do presidente, que propôs se licenciar do cargo. O golpe para depô-lo estava em marcha, mas Getúlio o abortou de forma radical: matou-se com um tiro no peito na madrugada do dia 24.
Em vez de pacificar o país, a morte do “velho” acirrou ainda mais os impulsos golpistas, agravados pela vitória de Juscelino Kubitschek (PSD), em dezembro de 1955, tendo como vice João “Jango” Goulart (PTB), herdeiro político de Getúlio. A Constituição não exigia maioria absoluta, mas o fato de o presidente eleito ter obtido apenas 35,68% dos votos deu margem para que a UDN, principal partido de oposição, e setores militares questionarem a legitimidade de JK. Uma tentativa de golpe parlamentar para impedir sua posse e de Jango foi abortada por um contragolpe do ministro da Guerra, o marechal Henrique Teixeira Lott.
Mas a rebelião estava em marcha. Juscelino havia assumido havia apenas dez dias quando, no sábado de Carnaval, dois oficiais da Aeronáutica, o major Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão, roubaram um avião com armas no Rio de Janeiro e tomaram a Base Aérea de Jacareacanga (PA). De lá, pretendiam iniciar um movimento que derrubasse o presidente, mas faltou quem os apoiasse. Lameirão fugiu e Veloso foi preso, mas ambos acabaram anistiados imediatamente por JK.
Se a ideia com a anistia era serenar os ânimos, o tiro saiu pela culatra. O ciclo do getulismo parecia estar se encerrando com a perspectiva de vitória do governador de São Paulo, Jânio Quadros, apoiado pela UDN, nas eleições presidenciais marcadas para outubro de 1960. Em dezembro de 1959, porém, Jânio desistiu da candidatura – ele desistiria da desistência, mas foi o suficiente para levar pânico aos antigetulistas, derrotados nas três eleições anteriores. Boatos (como se chamavam as fake news da época) de que JK mudaria a Constituição para se reeleger e de que Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, tentaria uma revolução esquerdista acirraram ainda os ânimos.
No dia 2 de dezembro, um voo da Panair que ia do Rio para Manaus foi tomado — nosso primeiro sequestro de avião — e desviado para a cidadezinha goiana de Aragarças, na divisa com o Mato Grosso. Lá também chegaram três aeronaves roubadas de bases aéreas com armas. A semelhança com Jacareacanga não ficava por aí. Entre os conspiradores estava o mesmo major Haroldo Veloso, e o destino foi igual: derrota por falta de apoio.
“Dessa vez Juscelino não queria conceder anistia”, revela Carlos Fico. “Ele estava arrependido de ter anistiado os revoltosos de 1956 e achava que um novo perdão seria prejudicial, mas o Congresso aprovou a anistia de uma forma meio envergonhada”, explica.
Jânio foi eleito em 1960, mas logo entrou em conflito com a UDN e renunciou em 25 de agosto do ano seguinte — supostamente como parte de um plano malsucedido de voltar ao poder “nos braços do povo”. Como na época o vice-presidente era eleito separadamente, o cargo era ocupado mais uma vez por Jango, odiado pela UDN e por boa parte dos militares. Para que ele tomasse posse, foi instituído o parlamentarismo, derrubado com folga em um plebiscito. Em março de 1964, um golpe civil-militar o depôs e mergulhou o país em uma ditadura que duraria 21 anos.
Em 1979, com o ocaso do regime já no horizonte, foi aprovada uma anistia que abrangia não só os exilados e presos políticos mas também os agentes do governo que cometeram uma infinidade de crimes ao longo da ditadura. Em tese, o perdão cobria o que acontecera até ali, mas crimes posteriores de militares como a tentativa de atentado ao RioCentro, em 1981, também ficaram impunes.
Caráter pedagógico
Esse padrão nos ensina que, em vez de pacificar, uma anistia ao golpismo funciona apenas como incentivo a novas tentativas de desmontar a democracia. Daí a importância que Carlos Fico atribui à decisão da Primeira Turma do STF. “São dois ex-comandantes de armas e dois generais ex-ministros. Acredito que a eventual condenação deles pode ter uma expressão pedagógica muito importante sobre as Forças Armadas. Deve afetar a prevalência dessa ideia de poder moderador. Porque há o efeito inverso. Esse intervencionismo permanece em decorrência das sucessivas anistias”, avalia.
Em um sinal de que esse efeito pedagógico já pode estar presente, o Superior Tribunal Militar (STM) confirmou na última quinta-feira a condenação por desobediência do major do Exército João Paulo da Costa Araújo Alves. Ele foi preso em 2022 e condenado em primeira instância no ano seguinte por ignorar uma orientação do comando e fazer publicações de cunho político, sempre em apoio a Bolsonaro, mesmo estando na ativa, o que é proibido. Segundo analistas, a confirmação da pena de prisão sinaliza que a Justiça Militar está interessada coibir o uso político da caserna e deve ser rigorosa com os militares golpistas que forem condenados pelo Supremo.
Mas por que somos tão lenientes com os ataques à democracia, especialmente por parte de militares? Na crônica Touradas, publicada em 1988, Luís Fernando Verissimo arriscava uma analogia do rescaldo das ditaduras no Brasil e na Argentina e com a pouco conhecida tourada portuguesa, na qual, ao contrário da espanhola, o touro sai da arena estressado, mas vivo. “Os argentinos são da raça que mata o touro, nós somos da que o poupa. (…) Eles julgaram e condenaram os responsáveis por seus anos de martírio e nós deixamos o touro sair da arena vivo e ainda indiscutivelmente touro”, escreveu. Carlos Fico, que está prestes a lançar o livro Utopia Autoritária Brasileira (Planeta), vê o outro lado: “Aqui no Brasil compõe muito o imaginário social a ideia de que nós temos uma história incruenta, uma história pacífica, o que é uma grande tolice. Nossa história é muito violenta. Mas os mitos têm muito mais força do que a realidade histórica”. Ou seja, quanto mais somos gentis com o touro, mais ele é violento conosco.