Órfãos do feminicídio
Aos 49 anos, no dia 14 de janeiro de 2017, Ana Janete Flores foi uma das 1.133 mulheres vítimas de feminicídio no Brasil naquele ano. Ao ser morta pelo marido com um tiro no rosto, ela deixou dois filhos, William Flores Nunes, então com 23 anos, e Jonathas Flores Nunes, com 34. O pai, um policial reformado de 59 anos, suicidou-se* logo depois. O crime aconteceu em Pelotas, na região Sul do Rio Grande do Sul, enquanto os pais viajavam. Os filhos, que estavam na Região Metropolitana de Porto Alegre, foram acordados na madrugada.
“Ele descobriu uma traição e não aceitou. Era um policial militar, uma pessoa orgulhosa, e não concordou. Foi algo que aconteceu, talvez ela não estivesse feliz no casamento, não soube sair. Infelizmente ele tinha uma arma no momento e atentou contra a própria vida. Se hoje não temos uma educação emocional, os casais de 30 anos antes muito menos”, conta William.
Hoje, sete anos depois, William pausa bastante ao falar sobre o fato. Em poucas palavras, ele expressa, transitando entre sentimentos, que foi algo importante, mas também complicado. Com uma notável ansiedade, traz questionamentos sobre a saúde mental do pai na época, além de mencionar a solidão da mãe. “Fomos observando, no passo a passo de como aconteceu, que ele vinha de um quadro de depressão. Foi algo que identificamos só depois, infelizmente. Pelo lado da minha mãe, talvez tenha faltado uma figura feminina próxima para ela se abrir um pouco mais. Hoje a gente vai pensando em ‘talvez’ e ‘e se’, mas aconteceu, este é o presente.” O “e se” é a divagação mais recorrente entre parentes e pessoas próximas de quem comete suicídio, e ainda mais numa tragédia que envolve outra violência.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dos 1.467 feminicídios em 2023, 40 foram seguidos de suicídio, como foi o caso de Ana Janete. Além disso, uma pesquisa apresentada pelo Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio apontou que 67 policiais cometeram homicídio com suicídio em 6 anos no Brasil. Na maioria dos casos, foram após feminicídios. As vítimas eram mulheres com quem os policiais mantinham relações afetivas.
Deserto de números
O Estado não sabe que William e Jonathas são “órfãos” do feminicídio. Eles já eram adultos quando Ana Janete foi assassinada e, por isso, juridicamente, não são considerados tecnicamente órfãos. Mas a reportagem se absteve de procurar entrevistar menores de idade sobre um evento tão traumático, já difícil de concatenar em palavras para homens feitos. O que é certo é que essa dor de ver uma mãe assassinada — e não raro pelo pai — está no limbo estatístico. Há um deserto de números e informações acerca dessas vítimas no Brasil. Apesar de estudos apontarem que um quarto das vítimas de feminicídio em 2023 tinha filhos, o país não tem um levantamento específico nem um órgão que centralize esses dados.
O Monitor de Feminicídios no Brasil, um mapeamento desenvolvido pelo Laboratório de Estudos de Feminicídios no Brasil (Lesfem) em parceria com as Universidades Federais de Uberlândia e da Bahia, é um dos únicos documentos que levantam esses dados. Em 2023, em 400 casos (23,45%) as vítimas tinham filhas ou filhos dependentes, somando 692 crianças ou adolescentes, o que representa uma média de 1,73 órfão de feminicídios consumados.
Os dados obtidos pelo Lesfem são levantados a partir de notícias captadas pela internet, por uma ferramenta de detecção. Muitas vezes são utilizadas mais de uma notícia para um mesmo caso, para que sejam obtidos mais detalhes e também para a confirmação de que o caso foi motivado por gênero. A partir de um crivo de pesquisadoras das duas universidades, o feminicídio é inserido na base de dados.
A coordenadora do Lesfem, Silvana Mariano, destaca que a imprensa é a principal fonte para se estimar o número de órfãos do feminicídio. Além da falta de centralização de dados, os boletins de ocorrência das Secretarias de Segurança Pública não são padronizados nacionalmente e, muitas vezes, não registram se a vítima tinha filhos.
O monitor aponta que, dos casos levantados em 2023 no país, 261 ocorreram na presença de descendentes ou ascendentes da vítima, o equivalente a 15,3%. No relatório do primeiro trimestre de 2024, dos 905 feminicídios consumados, 17,8% ocorreram na presença do filho ou da filha da vítima.
William e Jonathas já eram maiores de idade ao perderem a mãe, porém, na maioria dos casos de feminicídio, as mulheres deixam filhos menores de 18 anos. Estima-se que uma mulher assassinada deixa, em média, três filhos menores de idade. Um estudo coordenado pelo Lesfem apontou que, das 23 vítimas de crimes que foram julgados na Comarca de Londrina entre 2012 e 2022, 16 tinham filhos menores de idade.
Já um levantamento da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), corroborou que a maioria das crianças que se tornam órfãs de feminicídio são menores de idade. Dos casos analisados, 66% das vítimas deixaram filhos menores, sendo que 58% dessas crianças tinham menos de 12 anos.
“Esse tipo de violência atinge todas as mulheres, em todos os contextos sociais, é estrutural. Porém, alguns grupos de mulheres têm uma maior prevalência e são atingidas em uma proporção maior. São mulheres jovens, em ciclo de vida reprodutivo e com crianças pequenas em comum com o agressor”, explica Silvana.
A partir desses dados, levantados por universidades e instituições da sociedade civil, fica clara a necessidade de o Estado captar informações oficiais para implementar políticas públicas de assistência e acompanhamento a essas crianças e adolescentes.
A coordenadora afirma que a existência desses órfãos é um problema para o qual o Estado precisa dar alguma resposta. “Na ausência de política pública que atenda, tudo fica a cargo das famílias. Uma privatização de um problema que é social. A sociedade cria esses feminicidas e depois fica para as famílias resolverem o problema gigantesco que decorre desse tipo de violência.”
Muito além do sustento
Entretanto, para as especialistas, saber o número de órfãos não seria o suficiente para o desenvolvimento de ações efetivas. Além da quantificação, é preciso a humanização desses dados: quem são, onde vivem, com quem passaram a morar após a morte da mãe. Em certos casos, outros membros da família recebem a criança ou o adolescente, o que acaba pesando no orçamento familiar. Ainda mais se considerarmos que a maioria das vítimas de feminicídio são mulheres negras (66,9%) de classes mais baixas. “Não pode ser apenas uma pesquisa censitária. Precisaria ser um dado qualificado e alimentado com alguma atualidade para ter políticas de fato eficientes, considerando que só o benefício socioassistencial não é, de longe, suficiente”, atenta Rose Marques, coordenadora de projetos do Instituto Maria da Penha.
O benefício socioassistencial a que ela se refere foi sancionado pelo presidente Lula em novembro do ano passado. A lei institui uma pensão especial para os filhos e dependentes, menores de 18 anos, de mulheres vítimas do feminicídio. O benefício de um salário mínimo (R$ 1.412) é concedido aos órfãos cuja renda familiar per capita mensal seja de até 25% do salário mínimo e será destinada aos filhos que eram menores de idade na data do assassinato da mãe, mesmo que o crime tenha ocorrido anteriormente à lei. Entretanto, até o momento essa legislação não foi regulamentada e nenhum benefício foi concedido aos órfãos.
“Um salário mínimo não vai resolver o sustento dessas crianças. Mas, se não temos o mínimo garantido do ponto de vista socioeconômico, que dirá acesso a psicoterapia, orientação profissional adequada”, constata Rose. Para além da pensão, ela defende que o Estado deve pensar a convivência familiar e comunitária, os direitos à educação e, principalmente, à saúde mental.
“Como a gente acompanha essas vítimas em todas as suas camadas do ponto de vista da saúde mental? A elaboração do luto, a construção de uma percepção de vida que não seja só ancorada na tragédia vivida? Quais possibilidades a sociedade e o Estado oferecem para que isso seja considerado?”, questiona Mônica Sacramento, coordenadora programática da ONG Criola. Para os órfãos, os danos psicológicos e a longo prazo são especialmente preocupantes, visto que o feminicídio é o extremo da violência. Até se chegar ao fato consumado, a criança já foi exposta a um ambiente hostil e de violência. “A gente não consegue olhar para cadeias tão complexas, sistêmicas, permanentes, institucionais e estruturais, e pensar que uma solução financeira, de fato, pode resolver um problema tão profundo”, enfatiza Mônica.
É comum que crianças expostas a traumas desenvolvam no curto prazo consequências como depressão, ansiedade, alterações de humor e dificuldades para dormir. “Normalmente, o feminicídio não acontece na primeira violência, há um histórico. Aquela criança é criada num lar com muita violência e aprende que violência é uma maneira de amar. Há uma preocupação, porque ou você está criando pessoas que são dominadoras, ou submissas, que irão reproduzir de alguma maneira violência nas suas vidas. Ser criado em um lar violento é ser criado em um lar de tensão”, explica a psicóloga Mariana Luz.
Quando o feminicida é o pai da criança, o cuidado deve ser ainda maior. Como explicar às crianças que o próprio pai matou a mãe? Ela deve escolher um lado? Há um lado? É comum um dilema psicológico entre crianças nas brigas com os pais, pois elas acreditam que devem escolher um vilão e um mocinho. A psicóloga diz que é preciso trabalhar com essa criança, fazer com que ela entenda o processo do que aconteceu, não só com a mãe, mas com ela também, porque a vida dela foi alterada para sempre.
A Justiça chama os órfãos do feminicídio de vítimas indiretas, sendo a mulher a vítima direta do crime. No entanto, sob a perspectiva social, após a perda trágica e violenta de uma mãe, as crianças e adolescentes seguem sentindo os impactos mais imediatos e diretos. “Não podemos reduzir essa situação só à dimensão jurídica e criminal. A justiça criminal que acontece ali não restabelece de fato a justiça. Convencionamos como sociedade que a responsabilização criminal é suficiente, mas quando estamos falando de várias vidas que estão ali, que vão ter de encontrar um jeito de existir depois, ela não é”, enfatiza a coordenadora do Instituto Maria da Penha.
Como eram considerados vítimas indiretas, os familiares mais próximos da mulher assassinada, como pai e mãe, testemunhavam na presença do acusado, gerando um desgaste emocional significativo. Essas vítimas indiretas eram vistas apenas como um meio de prova para o Judiciário. “Nos últimos anos, há um movimento de reconhecimento da necessidade de que essa vítima indireta seja trazida para um protagonismo, humanizando, mostrando ao sistema de Justiça que ela tem cara”, salienta a promotora de Justiça Alessandra Cunha.
Por meio de um projeto no Ministério Público do Rio Grande do Sul, a instituição iniciou uma busca ativa de vítimas, oferecendo atendimento precoce logo após os crimes, em um processo chamado “custódia reversa”. “ Se o acusado de homicídio tem o direito de, em até 24 horas, relatar as condições de sua prisão e ser orientado por um defensor, por que os familiares das vítimas não têm o mesmo suporte?”, indaga a promotora.
O modelo foi implementado há pouco mais de um ano e visa estabelecer o primeiro contato, em vez de esperar os familiares procurarem o Ministério Público, já que muitas dessas vítimas não sabem onde procurar ajuda nem compreendem os aspectos jurídicos envolvidos. Esse contato permite identificar as necessidades específicas das famílias e das vítimas sobreviventes, indo além das demandas jurídicas. O atendimento procura entender as demandas que surgem após a perda e direcioná-las a locais que ofereçam suporte adequado, como assistência social e psicológica.
Alessandra considera ser necessária uma lei que torne esses projetos e essa rede de apoio obrigação dos órgãos públicos. Defende que não se pode depender de ações isoladas de algumas instituições ou do esforço de poucas pessoas. “É uma política pública que tem urgência em acontecer “, conclui.
Mortes evitáveis
É consenso entre especialistas que falar de órfãos do feminicídio é como enxugar gelo, uma vez que a morte em decorrência do gênero é evitável. O feminicídio é considerado por estudiosos um crime de Estado, por haver uma anuência e também uma ausência do Estado. Ele não acontece espontaneamente. Antes do crime, a mulher passou por diferentes violências, sejam elas físicas ou psicológicas. Ainda que a vítima não tenha solicitado uma medida protetiva por meio da Lei Maria da Penha, normalmente há sinais de que ela esteja vivendo um relacionamento abusivo.
“É muito improvável que ela não tenha passado em um posto de saúde, que a professora da escola da criança não tenha percebido algo diferente ou que o policial da rua não tenha sido chamado pelo vizinho. É muito improvável que o Estado não tenha tomado conhecimento prévio de uma situação de violência que tenha ocorrido naquela família. É por isso que há um elemento da responsabilização do Estado”, afirma Rose.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, houve um aumento de 0,8% nos feminicídios em relação ao ano anterior. Em números absolutos, esse foi o maior já registrado desde a publicação da lei que tipificou o crime em 2015. Estados como Rondônia, Mato Grosso, Acre e Tocantins têm taxas mais altas do que a média nacional, acima de 2 mulheres mortas por 100 mil.
O feminicídio está relacionado a uma violência estrutural tanto contra as mulheres como contra as crianças. Há muitas ações que o Estado pode adotar para reduzir sua incidência. Para resolver problemas que estão instituídos na estrutura e na cultura de uma sociedade são necessárias soluções a longo prazo. A procuradora do Estado de São Paulo Margarete Pedroso considera que o Legislativo deve criar políticas públicas que não se limitem ao punitivismo exacerbado, como o encarceramento. “Mesmo com esse número assustador de pessoas encarceradas no Brasil, a prisão não é um motivo de temor que impeça um homem de matar uma mulher porque ela é mulher”, enfatiza.
A expansão das Casas da Mulher Brasileira — centros de atendimento especializado na atenção à mulher em situação de violência doméstica —, a criação de mais delegacias 24 horas, um sistema de saúde e um aparato de segurança pública que acolha as mulheres vítimas de violência sem revitimizá-las também estão entre os mecanismos a serem constituídos para alcançar a redução desses crimes.
“Punir é importante, mas educar as polícias para que compreendam o fenômeno do feminicídio e protejam as mulheres ameaçadas também é. Se a mulher tem uma ameaça de morte, ela precisa ser protegida para que a ameaça não aconteça. O Estado precisa levar a sério essa ameaça e construir mecanismos de proteção dessa mulher para que ela não morra”, aponta Luciana Temer, diretora presidente do Instituto Liberta.
Para encontrar soluções de longo prazo, é necessário pensar em um conjunto de ações integradas. A educação desempenha um papel essencial nesse processo, pois é através dela que é possível evitar a necessidade de reparação e punição, promovendo respeito e igualdade. No entanto, as escolas hoje abordam esses temas de forma superficial. O investimento em educação sobre questões sociais, como violência sexual e desigualdade de gênero, ainda é muito limitado. Luciana Temer desenha: “Queremos que a violência não se instale. É lógico que é uma utopia a violência não se instalar, mas diminuir muito eu acredito que é possível, e acredito que só exista um caminho. Não é só a punição do criminoso, é a educação das crianças e dos jovens.”
”*Se você está com pensamentos suicidas, procure o CVV pelo telefone no 188, sem custo de ligação e disponível 24h por dia em todo o Brasil, ou por chat e e-mail pelo site.