O renascimento de um santuário
Durante as queimadas recordes que atingiram o Pantanal no ano passado, o empresário e ambientalista Roberto Klabin teve consumidos pelo fogo mais de 40 mil dos 53 mil hectares de sua propriedade no município de Miranda, no Mato Grosso do Sul. A área incinerada equivale a 40 mil campos de futebol padrão Fifa. “Tive um prejuízo de mais de R$ 7 milhões, fora a perda de vida selvagem, que é incalculável. Foi uma coisa horrorosa ver aqueles bichos todos queimados”, lamenta o proprietário da pousada e refúgio ecológico Caiman, referência no turismo de observação de fauna selvagem.
Aos 69 anos, o empresário de jeito assertivo, raciocínio rápido e forte sotaque paulistano acumula mais de quatro décadas de militância na área ambiental. Na segunda metade dos anos 1970, quando era estudante da Faculdade de Direito da USP, Klabin conheceu nomes como Fábio Feldman, com quem viria a fundar, em 1986, a organização não-governamental SOS Mata Atlântica.
O fato de ser herdeiro da gigante de papel e celulose fez com que fosse visto com desconfiança por outros ativistas. Ao mesmo tempo, era tido como excêntrico e comunista por seus pares do mundo empresarial. Mas foi juntando as facetas de homem de negócios e ambientalista que Klabin presidiu a SOS Mata Atlântica por 22 anos, captando recursos e dando visibilidade à instituição. Em 2009, cofundou o Instituto SOS Pantanal e hoje está à frente do Instituto Life, voltado para conservação da biodiversidade. Integra também o conselho de administração e o comitê de sustentabilidade da Klabin e é presidente do conselho da Brazilian Luxury Travel Association.
Vida selvagem
A menina dos olhos do empresário, no entanto, é a Caiman. “É ali onde quero experimentar minhas ideias doidas e deixar o meu legado.” No começo dos anos 1980, o empresário herdou as terras onde passava as férias de infância e adolescência no Pantanal e criou um refúgio ecológico que abriga mais de 500 espécies de animais, incluindo onças-pintadas, antas, jacarés, tamanduás-bandeira, queixadas, veados-campeiros, capivaras, lobinhos e centenas de espécies de aves.
No local, estabeleceu uma pousada de alto padrão, onde os turistas pagam diárias de mais de R$ 5 mil para fazer safáris, trilhas e passeios de canoa em meio à vida selvagem. O ator norte-americano Harrison Ford, o príncipe japonês Akishino, o fundador da Intel, Gordon Moore, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estão entre as figuras conhecidas que já se hospedaram na Caiman.
Com a ideia de unir turismo com pesquisa científica, Klabin abriu a propriedade para projetos pioneiros de conservação ambiental. É o caso do Instituto Arara Azul, da bióloga Neiva Guedes, que, desde 1998, desenvolve ali seu trabalho de preservação da espécie que é símbolo do Pantanal. Guedes e sua equipe foram responsáveis por criar ninhos artificiais que ajudaram a arara azul a sair, em 2014, da lista brasileira de animais ameaçados de extinção.
Foi também na Caiman onde, a partir de 2011, a ONG Onçafari passou a oferecer passeios para avistar onças se movimentando livremente na natureza. O modelo de habituar o maior felino das Américas à presença de veículos com turistas foi inspirado nos safáris da África e trazido para o Brasil pelo ex-piloto de corridas Mario Haberfeld.
“Achavam que era coisa de maluco, mas o Roberto apostou nessa ideia. Sem ele, não teríamos tido um lugar para iniciar nossas atividades”, conta Haberfeld, fundador e CEO do Onçafari, que promove a conservação das onças por meio do ecoturismo. Antes das queimadas, a estimativa era de cerca de 60 onças circulando pela propriedade de Klabin.
Paraíso em chamas
A maior parte desse paraíso ecológico, no entanto, virou cinzas com os incêndios de agosto de 2024. “Ao sobrevoar de avião, vi aquilo tudo indo pro vinagre. Foi terrível”, recorda Klabin. O fogo começou a mais de 40 quilômetros da sede da Caiman no dia 23 de julho, quando um caminhão atolou e explodiu numa fazenda da região da Nhecolândia. Por conta da estiagem prolongada, dos ventos fortes e do acúmulo de matéria orgânica, as chamas rapidamente se alastraram pela região e, nove dias depois, chegaram à Caiman.
Mesmo com a ação dos brigadistas, pouco se pôde fazer para conter a força avassaladora das labaredas. “O fogo veio muito bravo, estrilando e arregaçando com tudo. Parecia filme de terror: nosso corpo ficava quente, os olhos ardiam e mal dava para respirar por causa da fumaça. Os bichos corriam de um lado para outro, desesperados. Eu me senti inútil porque não conseguia nem apagar o fogo e nem ajudar os bichos”, conta o assistente de campo Lucas Rocha, que atuou nos combates.
O céu noturno ganhou coloração laranja por conta das labaredas. “Não havia nada que parasse o fogo. Tínhamos 200 pessoas no combate, entre bombeiros, o pessoal da fazenda e do PrevFogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais), sete aviões jogando água e, sinceramente, aquilo não fazia nem cócegas”, lembra Haberfeld.
Diante do cenário apocalíptico, os hóspedes foram retirados às pressas do local. Após oito dias de combates aos incêndios, que só foram apagados com a chegada da chuva, a operação hoteleira da Caiman ficou suspensa por quase dois meses. “Não havia o que mostrar aos turistas. A paisagem ficou toda preta, queimada. Foi uma desgraça total”, lamenta Klabin.
Injeção de ânimo
Em meio ao clima de terra arrasada e desânimo geral, o empresário buscou agir rapidamente. “Chorar não adianta. Tenho essa habilidade: quando estou diante de um problema sério, coloco a cabeça para pensar e parto para ação.”
Klabin convocou uma reunião com os gerentes da Caiman e os principais encarregados dos projetos de conservação com objetivo de injetar ânimo na equipe traumatizada pela tragédia. A bióloga Fernanda Fontoura, coordenadora dos trabalhos de campo do Instituto Arara Azul lembra de ver os ninhos das araras azuis carbonizados e as palmeiras que fornecem os frutos que servem de alimento a elas todas queimadas.
“Isso aqui é um momento, o Pantanal vai se recuperar”, declarou o empresário em vídeo divulgado nas redes sociais, ressaltando que é preciso aumentar a resiliência da propriedade e adaptá-la para um futuro de queimadas que virão.
Restauração da natureza
Numa primeira etapa, foi criada uma força tarefa junto com os projetos parceiros para restaurar a fauna e a flora da região. “Demos uma missão aos funcionários: como a pousada estava fechada e não havia mais hóspedes para atender, botamos todo mundo para trabalhar na restauração da natureza. Isso trouxe ânimo às equipes”, afirma Klabin.
Tanto a Caiman como o Onçafari e o Instituto Arara Azul lançaram campanhas nas redes sociais para arrecadar recursos e conseguiram levantar mais de R$ 2 milhões. Haberfeld, do Onçafari lembra que houve doações de pessoas físicas de alguns centavos até outras de R$ 100 mil, além da ajuda de patrocinadores e organizações internacionais.
Seguindo protocolo do Ibama, foi implementado um programa de alimentação suplementar para a fauna, já que boa parte das fontes de nutrientes tinha virado cinzas. Caminhões foram enviados duas vezes por semana para o CEASA de Campo Grande para buscar ovos, frutas e verduras. A cozinha do hotel passou a produzir comida para os animais. Funcionários cortavam os alimentos e os distribuíam próximos a locais onde os bichos bebem água.
Abrigos para os animais
Uma série de abrigos foram construídos para proteção da fauna. A ideia surgiu após uma soneca de Klabin. “Achei estranho porque o Roberto nunca se retira às 3 da tarde para descansar. Aí ele volta um tempo depois e diz: ‘Tive uma ideia. E desenhou o que tinha imaginado’”, conta Luciana Fabbri, gerente de operações da Caiman.
A inspiração para os abrigos veio da observação de fotos de onças se refugiando dentro de manilhas (estruturas de concreto normalmente usadas para escoar água) durante os incêndios. “Pensei: se as onças se escondem nas manilhas, posso espalhar pela fazenda um monte de manilhas cobertas por terra. Manilhas de tamanhos diferentes, para animais de maior ou menor porte. Ao lado, furo poços e cavo açudes, que servirão de bebedouro para os animais”, explica Klabin.
Turismo regenerativo
Bichos que ficaram feridos pelo fogo — incluindo duas antas, Melancia e Valente, que tiveram queimaduras graves nas patas — foram resgatados e tratados em recintos do Onçafari. “Usamos pele de tilápia para ajudar na recuperação das lesões”, explicou Ricardo Arrais, veterinário da ONG. Segundo Haberfeld, a ideia é criar uma mini clínica de emergência no local. “Nesse último incêndio, resgatamos duas onças que ficaram feridas e foram enviadas para tratamento em Campo Grande e em Brasília. Muitas vezes esse transporte é feito de helicóptero. Isso causa um grande estresse nos animais. O melhor é levar veterinários para atuarem onde os bichos estão”, explica.
No final de setembro, a Caiman retomou suas atividades hoteleiras, após as chuvas que fizeram o verde voltar a brotar em meio à paisagem queimada. Além das atividades habituais, a pousada passou a oferecer aos hóspedes um “turismo regenerativo”, que permite acompanhar as ações de restauração. Mais de 1.500 mudas de espécies nativas, como piúva e manduvi, começaram a ser espalhadas pela propriedade e, em breve, caixas com abelhas serão distribuídas para ajudar na polinização.
Construindo resiliência
Na visão de Klabin, é preciso aumentar a resiliência aos incêndios do Pantanal como um todo, já que serão cada vez mais frequentes por conta da crise climática. A solução, segundo ele, começa pela prática da queima prescrita, que faz uso controlado do fogo para “limpar” a biomassa de áreas específicas após as chuvas. Com isso, cria-se uma barreira natural para evitar o espalhamento do fogo quando ocorrem os incêndios florestais na época da seca, já que não há matéria orgânica para queimar nesses locais “limpos”.
Para adotar a prática do uso controlado do fogo, os proprietários rurais precisam de autorização dos órgãos ambientais estaduais. Klabin defende que a queima prescrita seja feita logo após as primeiras chuvas, com as licenças dadas rapidamente pelos órgãos responsáveis e acompanhamento das autoridades durante o processo.
“Se a Caiman não tivesse feito queima prescrita em determinadas áreas em maio e junho, a propriedade inteira teria queimado em agosto, inclusive a pousada e a vila dos funcionários”, aponta Eder Merino, professor do departamento de Geografia da Universidade de Brasília. Ex-guia turístico da Caiman, Merino faz o monitoramento de imagens de satélite, umidade do solo e risco de incêndio do local.
Brigadas e retardantes
Klabin propõe o monitoramento e a criação de brigadas por todo o bioma, dividindo o Pantanal em quadrantes de 200 quilômetros quadrados. Cada quadrante teria uma brigada contra incêndio, avião, pista de pouso, infraestrutura de monitoramento e gente treinada. Assim, quando um foco de incêndio começar, a ação é imediata, evitando que o fogo se alastre e se torne incontrolável.
O fogo que atingiu a Caiman no ano passado teve início com um caminhão que explodiu na região da Nhecolândia e andou 80 quilômetros de norte a sul e 60 quilômetros de leste a oeste, queimando um total de 300 mil hectares. “Se tivesse sido apagado no início, nada disso teria acontecido”, diz Klabin.
Tanto Klabin como Haberfeld defendem o uso de retardantes de chamas, produtos químicos misturados à água que é lançada pelos aviões para potencializar os combates contra o fogo. Tais retardantes são usados contra incêndios florestais nos EUA e no Canadá, mas há temores em relação ao risco de contaminação em áreas úmidas como o Pantanal. Mas dizem que vão estudar junto com o Ibama formas de usar esses produtos de maneira segura no Pantanal.
Pacto pela natureza
Klabin integra um grupo de mais de 50 executivos, economistas e empresários — incluindo Candido Bracher, ex-presidente do Itaú Unibanco; Walter Schalka, ex-CEO da Suzano; e Pedro Bueno, vice-presidente do conselho executivo da Dasa — que assinaram um pacto no final de agosto de 2024 para unir esforços no enfrentamento às mudanças climáticas.
“Não temos à mão fórmulas prontas, soluções fáceis. Mas, como cidadãos perplexos com o impacto socioeconômico dos eventos extremos e com o despreparo da nossa nação, manifestamos aqui nosso compromisso de buscar as saídas em conjunto com toda a sociedade”, afirma o “Pacto Econômico pela Natureza” publicado como anúncio pago em jornais de grande circulação.
Klabin integrou o grupo que foi à Brasília entregar o documento à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. “O que gente quis dizer é o seguinte: ‘Em vez de nós, da iniciativa privada, ficarmos reclamando e apontando o dedo para o governo, vamos trabalhar em conjunto?”, afirma o empresário que filiou-se ao Partido Verde na primeira candidatura de Marina Silva à presidência em 2010, mas nunca exerceu atividade partidária.
A primeira bandeira do grupo de empresários e economistas foi atuar pela aprovação do projeto de lei que cria o mercado regulado de créditos de carbono no Brasil. O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro último. “Agora há um pedido para que a gente contribua com o governo com sugestões para o Brasil mostrar bons resultados de descarbonização na COP 30 em Belém”, diz Klabin.
Na avaliação do empresário, a geração de seus netos enfrentará tempos difíceis e perigosos nas próximas décadas, com migração em massa de refugiados climáticos, desertificação, perda de alimentos e de biodiversidade.
“Será uma situação extremamente complexa, mas temos que nos preparar para ela. Não adianta ficar se lamentando: ‘Ai, o mundo vai acabar’. Essas coisas, na realidade, me dão ânimo, fico pilhado, querendo resolvê-las. Posso fazer um monte de besteiras, mas uma coisa ou outra dá certo”, aposta.