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O IBGE e as ideologias

Em 1994, as antenas parabólicas eram objeto de desejo da classe média brasileira. Quem conseguia instalar a parafernália metalizada no quintal ou no telhado de casa tinha a garantia de assistir aos jogos da Seleção na Copa do Mundo dos Estados Unidos, pegando o sinal direto do satélite, sem os chuviscos das retransmissões das TVs.

Só que, além da conquista do tetra, as parabólicas levaram a vários lares brasileiros gafes monumentais, como o flagrante de Galvão Bueno reclamando dos comentários de Pelé nas transmissões da Globo. Outra que entrou para a história econômica do país: o papo (em off) do então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, com o jornalista Carlos Monforte. “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde“, confessava o ministro, descontraído, no diálogo captado e distribuído via satélite. O “vazamento” foi amplamente explorado pelo PT. A conversa se deu em plena campanha presidencial e o antecessor de Ricupero no cargo era Fernando Henrique Cardoso, candidato tucano à Presidência da República. Era antevéspera do lançamento do Plano Real.

Naquela época, já era costume lançar dúvidas sobre os dados compilados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, tal qual se aventa agora, com a polêmica em torno da indicação, determinada pelo presidente Lula, do economista petista Marcio Pochmann para presidir o órgão. Na mesma conversa ao pé do ouvido com Monforte, Ricupero lançava: “Tem um grupo que diz que o IBGE é um covil do PT. Não sei se é verdade, mas o pessoal está convencido disso”.

Quase três décadas depois, a nomeação de Pochmann para o IBGE reacende a briga no universo do “economês”. “Ele vai impor uma visão ideológica desenvolvimentista. É um heterodoxo que acha todo o resto neoliberal. Ele criticou o Pix”… Por aí vai. O embate entre liberais e desenvolvimentistas está de volta ao centro do debate — e, subjacente, há uma importante disputa política.

Lula impôs à ministra do Planejamento, Simone Tebet, o nome do economista do PT na última segunda-feira. Ela queria a permanência de Cimar Azeredo, servidor de carreira desde 1980 no instituto, e se chateou com o atropelo do ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação do Planalto, que anunciou à imprensa um subordinado a ela. Agora, Simone quer esperar até meados de agosto para ter a primeira conversa com Pochmann. Primeiro, quer fazer com Azeredo uma série de eventos para apresentar resultados do trabalho feito até aqui. Um dos eventos ocorre nos dias 7 e 8 de agosto, em Belém, onde será exposto o Censo Indígena. Interlocutores da ministra argumentam que não tem por que Pochmann anunciar um trabalho que não foi ele que fez e, portanto, dizem que ela só falará com o economista para saber a “proposta de trabalho” dele depois que voltar da capital paraense. Isso se não houver nenhum novo atropelo.

A briga em via pública ocorre em um momento no qual o país começa a ver a economia dar seus primeiros suspiros e apresentar melhoras, chanceladas por duas das principais agências de avaliação de riscos. Nesse contexto, um ingrediente político se coloca como agravante para a emedebista que tinha a intenção de se colocar como uma avalista do governo de Lula para o mercado. Só que esse protagonismo não ficou para ela e, sim, para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que vem contando a cada dia com maior aceitação. Além de não ter o destaque que queria como avalista do governo, Simone experimenta outra situação de desprestígio, dentro do próprio partido. Depois de encarnar a candidatura presidencial em 2022, deixando a chance de buscar a reeleição como senadora, alas do seu partido não veem mais seu nome como preferido para a disputa presidencial em 2026. Caciques apostam mais na habilidade política do governador do Pará, Helder Barbalho, que espera ter destaque nacional sediando em Belém a Cúpula da Amazônia, um dos eventos testes para a COP 30.

Além da querela que tem Simone como epicentro, há a possibilidade de essa movimentação atendendo à ala desenvolvimentista do PT ser um aceno ao partido em caso de perdas em outros cantos em prol do Centrão.

O ringue econômico

Pochmann presidiu o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) entre 2007 e 2012 e a Fundação Perseu Abramo, instituição de formulação de políticas do PT. Com um pensamento econômico heterodoxo, ele é reprovado pelos liberais que ressuscitam a velha briga, alegando que ele tem um perfil intervencionista demais para comandar o órgão responsável pelos dados estatísticos brasileiros. Quando presidia o Ipea, Pochmann foi bastante criticado ao defender, em uma possível reforma tributária, a elevação da alíquota do imposto de renda para os mais ricos. Ele também demitiu dois grandes economistas do órgão: Regis Bonelli e Armando Castelar. Críticos dizem que ele os dispensou porque não se enquadraram na sua forma de pensar. Outro ponto polêmico foi a defesa de uma jornada de trabalho reduzida, em abril de 2007, antes de entrar para o governo, ainda como professor do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Colega de Ricupero na formulação do Plano Real, o economista e ex-presidente do IBGE Edmar Bacha rasgou o verbo: “É um perigo para as estatísticas”, disse Bacha à CNN. A economista Elena Landau, responsável pela política econômica da candidatura de Tebet à presidência, não descarta que a experiência argentina de manipulação de dados seja reproduzida aqui. “Pode acontecer aqui a mesma coisa que aconteceu com o Indec na Argentina, que perdeu a credibilidade. Isso pode acontecer com indicadores importantes, como o IPCA e o PIB.”

O péssimo exemplo da Argentina, com quase dez anos de dados maquiados pelo Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec), é argumento recorrente entre os liberais para criticar Pochmann. De 2007 a 2016, Néstor e Cristina Kirchner determinaram que os números oficiais do país fossem maquiados para manter a inflação anual em até 10%. O PIB e os índices de pobreza também foram falseados. Tudo começou em janeiro de 2007. Dias antes da divulgação oficial da inflação, representantes do governo ligaram para o Indec e informaram a taxa que deveria ficar entre 0,9%, mas se contentaram com 1,1%. O dado era menor que o 1,5% efetivamente apurado. Técnicos do instituto renunciaram como forma de denunciar a intervenção política. “Quando as estatísticas de custo de vida perdem credibilidade, as de pobreza, de indigência e de distribuição de renda também perdem valor”, afirmou, em fevereiro de 2007, Roberto Lavagna, que entre 2002 e 2005 foi ministro da Economia de Néstor Kirchner. Segundo o Indec, a inflação argentina fechou em 2007 em 8,7%, menor patamar em quatro anos. A distância da realidade levou ao surgimento de números alternativos, que indicaram um índice entre 22% e 26% naquele ano. O governo ameaçou multar quem produzisse dados paralelos. Em 2008, foi a vez de o PIB começar a ser manipulado para mostrar que a economia crescia no mesmo ritmo dos primeiros anos do kirchnerismo e que a inflação não era um problema.

A pressão do FMI, que a partir de 2012 ameaçou retaliar a Argentina, ajudou a mudar esse cenário. Mas não de forma imediata. Em 2013, o Fundo aprovou um voto de sanção ao país por “mentir e falsificar” as estatísticas oficiais. Na ocasião, o Brasil foi um dos poucos a apoiar o vizinho, assim como fizeram Venezuela, Chile, Rússia e China. Só em 2016, já sob o governo de centro-direita de Mauricio Macri, que assumiu em dezembro de 2015, o Indec refez sua metodologia para seguir normas internacionais. No último dia 13, o instituto argentino anunciou que a inflação acumulada em 12 meses até junho chegou a 115,6% em junho, maior nível desde agosto de 1991.

A ideologização ou a manipulação de dados, no entanto, não é algo esperado pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE (ASSIBGE). Elvis Vitoriano da Silva, diretor da Executiva Nacional, afirma que a própria estatística tem protocolos internacionais e metodologias que acabam impedindo ou dificultando interferências governamentais. Além disso, o IBGE tem um corpo técnico muito sólido. “Nós conseguimos sobreviver ao governo Bolsonaro sem uma interferência na questão técnica. Foi um dos períodos mais complicados que a gente viveu. Mas a casa, os técnicos, conseguiram blindar. Não é o presidente que chega e altera. Há pesos e contrapesos que fazem com que qualquer mudança precise passar por comitê, por avaliações do corpo técnico, o que não é tão simples assim”, disse. Foi sob Paulo Guedes e Jair Bolsonaro que o IBGE se viu sob forte corte orçamentário, o que levou ao atraso no Censo de 2020 e à beira de um apagão de dados.

O líder sindical destaca também que Pochmann é um pesquisador, uma pessoa que utiliza os dados do IBGE, que tem livros publicados, um professor universitário. “Ele vem de uma tradição de uso e respeito aos dados estatísticos. Nesse sentido, analisando o currículo, a gente acha pouco provável que isso aconteça.” Assim que o nome de Pochmann começou a circular, o sindicato do IBGE consultou a diretoria da AFIPEA, que representa os servidores do Ipea. “A informação que a gente tem é que a gestão dele foi positiva, com inovações para o órgão, ampliação e diversificação do plano de trabalho. Agora, como uma pessoa que faz muita coisa, existe uma situação ou outra de divergência interna e isso é normal. Mas nada perto da tônica de interferência política no órgão.”

O economista e ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman Vianna também não vê possibilidade de interferência política ou ideológica no instituto. “Não sou um correligionário dele [Pochmann]. O ponto é que o IBGE está isento e protegido de intervenções por fatores estruturais relevantes”, avaliou em entrevista à Folha. “O IBGE foi criado um ano antes do Estado Novo [em 1936], passou por todo o regime ditatorial militar. Não houve interferência.” A Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde Pochmann se formou, em 1984, saiu em defesa do economista. “Reconhecemos nele um profissional competente, cujos serviços prestados à academia e à gestão pública merecem o nosso mais elevado respeito. Desejamos a ele sorte e sucesso em todas as suas atividades profissionais.”

Pochmann vai assumir um IBGE com alguns desafios: recomposição de verbas, aumento do corpo funcional, elevação do salário dos trabalhadores temporários e mudanças na carreira para atrair mais mão de obra ainda mais qualificada. O órgão tem hoje cerca de 3.900 servidores, sendo que quase 900 já podem se aposentar. Já o total de temporários supera os 6 mil, com contrato mensal e remuneração muito baixa, próxima ao salário mínimo. Em 2010, o quadro era bem diferente: havia 7.435 trabalhadores efetivos. O IBGE é responsável por recolher, analisar e divulgar dados sobre PIB, inflação, população, emprego, indústria, comércio, serviços, construção. Tem a missão de “retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania”. Seja quem for seu presidente.

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