O caminho de Kamala

Kamala Harris for the people”. Pelo povo. Foi resgatando o slogan de sua frustrada campanha presidencial de 2020 — e a frase que usava para se apresentar como procuradora de Justiça — que a vice-presidente aceitou a indicação para ser, agora sim, a candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos. O que pode parecer uma apresentação requentada de Kamala é, na verdade, uma contraposição certeira à imagem de seu adversário, o republicano Donald J. Trump. Os democratas buscaram, ao longo da Convenção Nacional do Partido Democrata (DNC, na sigla em inglês) nesta semana, em Chicago, frisar o quanto Trump serve somente a si mesmo, age apenas em prol de seus próprios interesses e de seus amigos bilionários e está pronto a sacrificar o povo americano para lucrar e se safar. É uma mensagem bastante desconfortável, especialmente quando comparada à trajetória de uma mulher negra, descendente de imigrantes, nascida na classe média baixa, que emergiu para construir uma carreira, para dizer o mínimo, digna de nota. Sem contar que lembra ao eleitorado que essa disputa é entre uma procuradora versus um criminoso.

Seu discurso na noite de quinta-feira encerrou os quatro dias de convenção em que o Partido Democrata se empenhou em exalar a energia de “joyful warriors” que vem sendo martelada nas aparições de Kamala desde que Joe Biden recuou da candidatura. Em uma tradução bastante livre, seria algo como se Kamala fosse a epítome dos “guerreiros alegres”, dos americanos dispostos a lutar por seu país e por seu próprio crescimento, mas sem a amargura de Trump e dos republicanos que foram capturados por seu movimento Maga. Ou seja, quase todos. Além de se apresentar como otimistas, joviais e divertidos, os democratas buscaram colar em Trump a pecha de “weird”, algo entre esquisito, bizarro e tosco. Kamala optou por outra palavra: “unserious”. Mas reforçou o quanto dar poder a um homem pouco sério tem seríssimas consequências.

Kamala foi recebida no palco com três minutos de aplausos e gritos. Fez, então, 38 minutos de um discurso fluido, sem atropelos, sem gaguejar sequer uma vez. (O de Trump, na convenção de seu partido, foi de 92 minutos, o mais longo da história das convenções). As palavras couberam bem em sua boca e o público estava, claramente, torcendo para que ela se saísse bem. No que talvez tenha sido um golpe de sorte, dois dias antes o presidente Joe Biden, muito reverenciado pelos correligionários, havia tido uma performance fraca no mesmo palco, não deixando espaço para qualquer dúvida sobre o acerto que foi substituí-lo. E Kamala soube aproveitar seu momento. “Ela defendeu seu caso como uma advogada, não como uma poeta”, analisou Maureen Dowd, no New York Times. Embora tenha apresentado poucas propostas concretas, a democrata alternou momentos ternos, em que lembrava de sua infância e de seus vizinhos cuja convivência era de comunidade acolhedora, com passagens em que foi dura, como nos casos que travou, como procuradora, batalhas com grandes bancos ou predadores sexuais.

Na vice-presidência, a atuação de Kamala não foi exatamente notável — e muitos no partido se questionavam sobre se ela estaria à altura da tarefa de ser cabeça de chapa contra Trump. O perfil de Kamala foi sempre de conformidade aos comandos de Biden, por lealdade e discrição. Uma das poucas vezes em que se fez ouvir mais fortemente na Casa Branca foi quando ela o pressionou a escolher Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte, quando o presidente estava recebendo conselhos no sentido contrário.

Seu maior desafio na vice-presidência foi, assim como Biden havia encarado quando foi vice de Obama, lidar com a questão da imigração. Ela obteve alguns sucessos, mas não tão vistosos. Deu continuidade a uma política democrata relativamente antiga de buscar atrair capital para os países da América Central de onde mais saem imigrantes, para gerar empregos e mantê-los em casa. Reduziu, com isso, em 36% a entrada de imigrantes vindos da Guatemala, de Honduras e El Salvador entre 2021 e 2023. Hoje, depois de o número de migrantes que cruzaram a fronteira Sul ter atingido níveis recordes durante os primeiros três anos da gestão Biden/Kamala, as entradas caíram para os níveis mais baixos desde que eles tomaram posse. E Kamala se esmerou em apontar para Trump, que tanto explora o tema para incutir medo nos americanos, a culpa por ele ter minado uma lei bipartidária que poderia ajudar a proteger a fronteira.

Mesmo no tópico que mais gerava apreensão na noite, por ser talvez o mais divisivo internamente no Partido Democrata, Kamala soube controlar a plateia. Ao falar do massacre em Gaza, fez questão de começar por assegurar seu total apoio ao direito de defesa de Israel e seu absoluto choque diante do ataque terrorista do Hamas, em 7 de outubro. Um som de frustração, mas ainda não exatamente de vaia, ameaçou se formar. A estratégia de Kamala foi de mal respirar e já emendar seu pesar pelas vidas inocentes perdidas em Gaza, clamar por um cessar-fogo e pela libertação dos reféns israelenses e expressar o desejo de que “o sofrimento em Gaza acabe e o povo palestino possa concretizar o seu direito à dignidade, à segurança, à liberdade e à autodeterminação”. Apesar de os organizadores da convenção terem vetado a participação de palestrantes pró-Palestina, a posição de Kamala parece ter sido suficiente, num primeiro momento, para arrancar aplausos da multidão.

Essa habilidade de se manter focada e proferir um discurso forte e emotivo ao mesmo tempo — algo dificílimo de se fazer, especialmente depois de o público testemunhar a oratória de mestres como o ex-presidente Barack Obama e sua mulher, Michelle — revela uma Kamala bem mais preparada do que há cinco anos. Mostra também que ela entende claramente quem é seu oponente. Como lembra David Von Drehle, do Washington Post, “toda pesquisa de 2015 para cá mostra que a maioria dos americanos preferiria não votar em Trump”. O contraponto feito na DNC pode ter dado essa opção a muitos deles.

Liberdade x libertinagem

A DNC foi marcada por um contraste e uma surpresa. O contraste foi com a Convenção dos republicanos, um mês atrás. O partido de Kamala levou ao palco um presidente, Joe Biden, e dois ex-presidentes — Bill Clinton e Obama. Só não levou Jimmy Carter porque, a um mês de completar 100 anos, ele tem dificuldades de locomoção e de fala. Ainda assim, Carter disse ao neto que deseja se manter vivo só mais um pouco, para poder votar em Kamala. Não foram só eles. Passaram pelo encontro, e falaram com vigor, todos os nomes relevantes do partido nos últimos trinta anos que ainda estejam em atividade política. Falaram, ainda, as estrelas em ascensão, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, pela esquerda, e o secretário de Transportes, Pete Buttigieg, e o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, pelo centro.

A Convenção Nacional do Partido Republicano foi o contrário. Não estava lá uma estrela das últimas décadas, um único líder. Nem sequer Mike Pence, o vice de Trump em seu mandato. Era um partido inteiramente renovado à imagem e semelhança do candidato.

A surpresa foi o tema escolhido pela campanha de Kamala. A palavra mais repetida em mais discursos. Que ancorou a mensagem da convenção: Liberdade. Aí, sim, uma ruptura com o passado. O Partido Republicano costumava ser por Liberdade; o Partido Democrata, por Igualdade. Assim se equilibravam os dois partidos americanos na tensão essencial das Democracias Liberais. É uma virada e tanto.

A equipe do site FiveThirtyEight, especializada em prognósticos eleitorais e numeralha política, comparou os programas de governo da campanha Biden, em 2020, com o de Kamala, agora. Escravatura, Jim Crow — as leis racistas do Sul na primeira metade do século 20 —, racismo sistêmico ou racismo estrutural, todas eram palavras ou expressões distribuídas pelo documento de quatro anos atrás. Desapareceram neste ano. Pois é. Apareceu “liberdade”.

Esta transformação se compreende pelo mapa eleitoral. Pela Muralha Azul.

A Muralha Azul é um conjunto de dezoito estados nos quais os democratas vencem desde 1992. Ou quase: o pleito de 2016 é a única exceção. A eleição americana não é direta. Cada um dos cinquenta estados faz uma eleição local para presidente. Aí, nomeia um número de representantes que se encontram no Colégio Eleitoral. Ao todo, são 538 votos, distribuídos por estado, proporcionalmente à população de cada um. Em quase todos os estados, o vencedor leva tudo. Pode ter vencido por um único voto, mas ganha todos os eleitores que cabem àquele estado.

Durante a história americana, este sistema de eleição, estipulado quando não se elegia presidentes no mundo, poderia até parecer arcaico, mas fazia pouca diferença. Só que isto mudou. Desde aquele mesmo ano, 1992, o Partido Democrata venceu no total de votos dos cidadãos americanos em todas as eleições, menos na de 2004. Em todas menos uma. Acontece, claro, que não é o total de votos de cidadãos legalmente aptos que conta. Contam, isto sim, os votos no Colégio Eleitoral. Assim, em 2000, o republicano George W. Bush foi à Casa Branca e o democrata Al Gore tomou o rumo do Tennessee. Em 2016 se deu o mesmo. Hillary Clinton venceu Trump no voto popular, mas perdeu no Colégio Eleitoral. Perdeu porque, naquele ano, três dos dezoito estados da Muralha Azul caíram: Michigan, Pensilvânia e Wisconsin.

O trabalho de Kamala Harris é, desta forma, simples. Ela precisa vencer nos três. Se vence neles, Trump está fora. Derrotado em definitivo. E o Partido Republicano entrará numa crise profunda. Rompeu por completo com seu passado, terá de se reinventar das cinzas deixadas por um demagogo autoritário que matou sua plataforma tradicional.

De acordo com as pesquisas eleitorais, seis estados estão rachados ao meio. É impossível dizer qual dos dois candidatos está de fato na frente. Nevada e Arizona, no Oeste, Geórgia, no Sul, e o trio no Cinturão da Ferrugem: Michigan, Pensilvânia e Wisconsin.

A demografia dos três ajuda a explicar a crise. A população se divide entre aproximadamente metade urbana e metade rural. São estados que produzem comida e com muitas fábricas. O voto dos operários urbanos era democrata e, dos agricultores, republicano. Ocorre que a crise da desindustrialização do mundo bateu fundo nos três. E, para a classe média empobrecida com o fim do trabalho operário, o discurso de Donald Trump passou a ser atraente. Não foram muitos que viraram, mas alguns viraram. A pequena margem de diferença que Trump atraiu, em 2016, foi o suficiente para elegê-lo presidente.

Os partidos podem ser nacionais, mas a disputa Kamala contra Trump envolve grandes máquinas, grandes verbas e o pleito em apenas seis estados, ênfase particular no trio de vizinhos. Só num deles, o Wisconsin, metade da população vive em cidades de quinze mil habitantes. Grandes máquinas disputando, voto a voto, os eleitores de cidades mínimas. E, hoje, esses eleitores são no conjunto um tanto mais brancos e um tanto mais velhos do que a média do país. O percentual de pessoas com diploma superior é um quê menor do que o padrão nacional, a presença de imigrantes um tanto mais rarefeita. E este conjunto de eleitores, brancos sem nível superior, é quem deve definir a eleição.

De certa forma, com J.D. Vance de vice na chapa de Donald Trump, a plataforma republicana se afastou de vez da ideia dos princípios liberais. O argumento é de que ênfase demais em liberdade individual levou a uma sociedade atomizada, com mais gente solitária, casais com menos filhos, e empregos sendo exportados. Eles veem nisso a decadência americana. Quando Vance criticou Harris por não ter filhos, aludindo à imagem das “cat ladies”, mulheres sem filhos mas com gatos, é a isso que ele se referia. Uma ideia de que o país se perde em ateísmo, libertinagem, e que o Estado deveria regular, com incentivos financeiros para que casais tivessem mais filhos e cultivassem famílias. Um Partido Republicano ainda mais conservador do que era. Ou reacionário.

E assim, por isso, que o Partido Democrata foi atrás da ideia âncora da república americana. A da liberdade. E uma das principais liberdades a respeito das quais se falou na Convenção foi a de escolher fazer um aborto. É uma causa particularmente popular entre mulheres nos três estados. A pobreza, assim como os estupros, pesam. A escolha de Tim Walz como vice, governador de Minnesota, segue a mesma lógica. É um estado colado no Wisconsin, só que ainda mais rural. Ele, descreveu Ezra Klein, colunista do New York Times, é “uma pintura de Norman Rockwell” ambulante. Mais tipicamente americano, impossível.

Convencer o público americano que eleger uma democrata com os atributos de Kamala não é dar um voto ao radicalismo woke, como Trump tenta desesperadamente fazer crer, já era missão relativamente fácil para ela. Sua trajetória não é a da esquerda identitária, mesmo com tudo que ela carrega em sua própria identidade. Suas políticas, tampouco. Mas a acertada escolha de Walz, e seu jeito de “paizão” aberto e acolhedor, ajuda muito nessa desmistificação. Walz, provavelmente, lançou outro slogan bem-sucedido em seu próprio discurso. Quando falou em aborto e casamento homoafetivo, sugeriu a quem se opõe: “Mind your own business” — ou “Cuide de sua vida”. E ajudou a reconfigurar o que as pessoas entendem por liberdade dos dois lados da política americana.

A convenção foi encerrada com Born in the USA, de Bruce Springsteen, o roqueiro operário americano ideal. Também, ora, a música tema da campanha de Ronald Reagan, em 1984.

Sim, Kamala Harris é negra. Mas o Partido Democrata está menos identitário e mais liberal do que há quatro anos. De certa forma, parece o retorno do partido de Barack Obama e Bill Clinton.

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