Nova era dos extremos

O resultado das eleições para o Parlamento Europeu, realizadas em 27 países do bloco no último domingo, 9 de junho, mostram uma guinada do continente para a direita. Embora o centro democrático ainda domine a maioria da Casa, a votação histórica dos dois superpartidos que compõem a ultradireita, o Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), que conquistou 76 assentos, e o Identidade e Democracia (ID), com suas 58 cadeiras, muda o centro gravitacional da política do velho continente e impacta não apenas o jogo de poder regional como a política interna de cada um dos membros da União Europeia (UE).

Os resultados ainda não estão totalmente fechados, mas de acordo com a projeção mais recente da União Europeia, com dados de ontem, o novo desenho desse jogo de forças é o seguinte. O maior partido continua sendo a coalização de centro-direita Partido Popular Europeu (PPE), dos conservadores cristãos, com 190 assentos, um ganho de 14 em comparação com a última eleição. Em segundo lugar, vem a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), com 136, e uma perda de 3 assentos. Os liberais do Renovar a Europa (RE) estão em terceiro com 80, perdendo 22 cadeiras. O ECR é a quarta força, conquistando 7 assentos a mais, e o ID, o quinto, com um ganho de 9 cadeiras. Os Verdes/Aliança Livre perderam 19 assentos e ficam na sexta posição com 52, e a Esquerda na sétima, com 39 assentos. Já os outros, que incluem deputados independentes e candidatos de partidos da direita dura como o húngaro Fidesz e o Alternativa para a Alemanha (AfD), expulso do ID, somam 99 cadeiras.

O caso da AfD é emblemático de como não se pode colocar todos os partidos de ultradireita no mesmo saco. O partido alemão foi expulso do ID poucas semanas antes do pleito europeu em razão de uma declaração do principal candidato da legenda, Maximilian Krah, de que nem todos os membros da SS, a tropa especial nazista, eram criminosos.  Detalhe, o ID é a casa do francês Reunião Nacional, de Marine Le Pen, do Liga Norte, do vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, e do Partido para a Liberdade holandês, de Geert Wilders. A despeito do desembarque do ID, o partido alemão conseguiu 17 assentos no Parlamento.  Ficou atrás apenas dos democratas cristãos do partido de Angela Merkel, que teve praticamente o dobro da votação dos extremistas, e superou os votos dos social-democratas do SPD, partido do primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz.

O resultado das eleições já causou alguns terremotos de curto prazo. No próprio domingo, o primeiro-ministro belga Alexander De Croo renunciou, após seu partido, o VLD, ter ficado em oitavo lugar com 5,76% dos votos. Na vizinha França, o presidente Emmanuel Macron decidiu dissolver a Assembleia Nacional e convocar novas eleições parlamentares em dois turnos para os dias 30 de junho (primeiro turno) e 7 de julho (segundo turno). A coalizão do partido do presidente, Renascença, teve menos da metade dos votos do Reunião Nacional, 14,60% contra 31,37%.  O racional de Macron ao convocar novas eleições seria o de reunir uma frente ampla democrática para combater o crescimento interno do Reunião Nacional. Uma aposta que pode se provar arriscada.

Ultradireita

Um dos maiores estudiosos do extremismo de direita na Europa e nos Estados Unidos, o cientista político Cas Mudde apontou, em um fio no X, no calor dos primeiros resultados da eleição, que, embora as grandes potências econômicas europeias, como Itália, Alemanha e França, tenham tido votações expressivas na direita radical, em muitos países em que os partidos de extrema direita vinham crescendo, como Hungria, Finlândia e Holanda, a votação foi decepcionante.

Para Mudde, estamos caminhando para a quarta onda dos partidos populistas de direita desde a Segunda Guerra Mundial. O cientista político argumenta que a extrema direita pode ser vista como uma combinação de quatro conceitos amplamente definidos. O primeiro é o exclusivismo,  marcado por traços como racismo, xenofobia, etnocentrismo, etnopluralismo e chauvinismo. O segundo são os vieses antidemocráticos e não individualistas, como o culto à personalidade, à hierarquia, o populismo e uma visão organicista do Estado. O terceiro, um sistema de valores tradicionalista, que lamenta o desaparecimento de molduras históricas de referência, como a lei e a ordem, a família, a comunidade étnica, linguística e religiosa e a nação, assim como o ambiente natural. E, por último, um programa socioeconômico associando corporativismo, controle estatal de determinados setores, o agronegócio, tudo junto com um grau variável de crença no livre jogo das forças de mercado.

Mudde propõe então uma subdivisão da extrema direita em inclinações moderadas e radicais, de acordo com seu grau de adesão a essas quatro macro temáticas.

Medo do estrangeiro

Um dos pontos que sustentam os partidos de extrema direita é o medo do inimigo externo, que leva a uma postura muito forte contra a imigração, mas também anti-Islã. Elizabeth Pearson, na Universidade de Londres, estuda essa relação. Ao Meio, ela fez questão de destacar dois pontos que considera importantes sobre a ascensão da direita radical nessas eleições.

O primeiro é que há diferenças regionais nas mensagens anti-Islã relacionadas a eventos específicos. “Por exemplo, os ataques em Paris em 2015, o ataque ao professor Samuel Paty, ou na Alemanha, narrativas em torno dos ataques de Ano Novo contra mulheres mobilizaram muita atividade. No entanto, partidos e narrativas estão interconectados, e os argumentos tendem a girar em torno da islamização do Ocidente — não apenas de países específicos. Alguns grupos também são antissemitas, outros menos”, pontua. Ela completa o raciocínio dizendo que mesmo entre esses partidos há diferenças de quem eles apoiam após os ataques do Hamas em 7 de outubro. “Há apoios declarados a Israel ou para o povo palestino.”

O segundo diz respeito à participação feminina nos partidos de ultradireita. “Líderes mulheres em grupos populistas de extrema direita são muito importantes para sanitizar e moderar a mensagem, dando a eles uma borda mais ‘suave’ e palatável. Marine Le Pen foi, portanto, vital para a reabilitação da Front Nacional como Reunião Nacional. Elas também conseguem apelar com sucesso para eleitoras. Observamos que mulheres em cargos de liderança também têm muito sucesso em persuadir homens e mulheres em torno de valores conservadores relacionados à família — apoiando famílias nucleares heteronormativas dentro do casamento, por exemplo, ou em argumentos de que o ‘feminismo foi longe demais’ e as mulheres precisam ser valorizadas no lar.”

A pesquisadora diz ainda que muito do sentimento anti-Islã que os eleitores têm está relacionado à igualdade de gênero — grupos de extrema direita retratam o Islã como opressivo às mulheres. Portanto, líderes mulheres na extrema direita conseguem capitalizar a ideia de que elas representam genuinamente os direitos das mulheres, criando argumentos que ressoam.

Um jogo de nuances

Analistas acham muito pouco provável que os dois partidos continentais da ultradireita se aproximem. Mas, no jogo do Parlamento Europeu, não descartam uma aproximação com a centro-direita cristã, sobretudo por parte os membros do ECR. Um movimento similar com o ID é visto como mais complexo, principalmente por conta das visões mais nacionalistas e antiglobalização desse agrupamento de partidos linha-dura.

ECR e ID diferem consideravelmente quando se analisa como votaram na última legislatura no Parlamento Europeu, como apontado pelos dados da Plataforma de Pesquisa EU Matrix. Enquanto no último mandato legislativo a extrema direita do ECR votou unida 79% do tempo, esse número cairia para 64% se eles se juntassem ao ID. A coesão de voto dentro de um grupo é um fator crucial para a colaboração com outros partidos no Parlamento Europeu, uma vez que porcentagens baixas nesse quesito denotam menos confiabilidade.

Ainda de acordo com a pesquisa da EU Matrix, a taxa de sucesso das emendas apresentadas pelo ID foi inferior a 1%, já o ECR conseguiu alcançar 17%.  O que abre uma porta para conversar com os conservadores cristãos liderados pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Outro ponto de distanciamento dos dois partidos da ultradireita é a posição em relação à guerra na Ucrânia. Enquanto quase todos os partidos dentro do ECR condenam a agressão da Rússia, com uma coesão de votos de 92%, o ID tem lutado para encontrar uma posição comum sobre a questão. “Os principais partidos do grupo ECR, Irmãos da Itália e o PiS polonês, estão entre os maiores defensores de laços estreitos entre a UE e a OTAN e entre os maiores críticos das ações da Rússia”, disse Davide Ferrari, Chefe de Pesquisa da EU Matrix, ao Euractiv.

Por outro lado, há pontos que conectam os dois partidos, como as questões da imigração, das mudanças climáticas e dos projetos de transição verde, por exemplo.

Ao olhar para o resultado das eleições, o cientista político italiano Mirko Crulli, da Universidade LUISS, disse ao Meio que é importante perceber as nuances que diferenciam os partidos integrantes da direita radical populista, como gosta de agrupá-los.

Ele destaca o cenário italiano, em que o partido da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, os Irmãos da Itália,  que considera populista moderado, teve uma vitória muito grande sobre a corrente mais radical representada pela Liga Norte. “Giorgia Meloni e o ECR foram os grandes vitoriosos dentro do campo da direita radical, justamente porque conseguem atrair os votos das pessoas que se sentem ameaçadas pelos estrangeiros, pela nova ordem econômica, mas não buscam uma ruptura drástica com a política, e com a própria ideia da União Europeia. Já a Liga Norte, que já defendeu inclusive o separatismo na Itália, busca uma mudança drástica e tem como eixo central um nacionalismo que vai de encontro com a ideia de União Europeia.“

Crulli estuda a geografia do voto de extrema direita e argumenta que, do ponto de vista eleitoral, além da primazia de homens brancos descontentes com as perdas econômicas nas grandes cidades, o que se percebe, ao olhar com mais atenção para de onde vêm os votos da extrema direita, é que na maior parte dos países “essa força vem essencialmente das zonas rurais, que se sentem mais ameaçadas pelas mudanças econômicas na Europa”.

A brasileira Graziela Aires, que mora em Budapeste e faz doutorado na Universidade de Coimbra sobre o uso dos monumentos e da história para fins políticos no governo do Viktor Orbán, também vê gradações na extrema direita. Ela se diz mais conectada ao que acontece na Hungria e em Portugal, e aponta que os principais partidos da direita dura tiveram votações menores do que as esperadas. Na Hungria, embora o partido de Orbán tenha saído vitorioso, com 44,81% dos votos, há uma força emergente: o Tisza, partido de Peter Magyar, que foi do governo do Fidesz, e agora conseguiu 29,81% dos votos. “Pela primeira vez há uma oposição forte na Hungria, mas a realidade é que se trata de mais uma oposição anti-sistema, com um líder carismático que se coloca  ‘contra tudo o que está aí’, sem apresentar propostas concretas”, diz a pesquisadora. Já o caso de Portugal é diferente. O partido de extrema direita Chega, que havia crescido internamente, não alcançou nem 10% dos votos. “Minha leitura é de que o Chega gastou toda a bala nas eleições internas e não teve fôlego para movimentar as bases para as eleições continentais.”

O espectro do passado

Para quem não acompanha de perto a política europeia, há uma inclinação natural de incluir todos esses partidos de extrema direita em um mesmo macrogrupo fascista, ainda mais para aqueles que conhecem um pouco de história e lembram que há cem anos, em 1924, o partido de Benito Mussolini conquistou dois terços do parlamento italiano, um primeiro passo para o líder dos camisas negras instaurar a ditadura fascista no ano seguinte. E que, no mesmo ano na Alemanha, Adolf Hitler sai da prisão e começa a escalada nazista.

Antes de começar a entrar em pânico, é preciso colocar as coisas em perspectiva. Em um artigo na Revista Estudos Políticos, a cientista política brasileira Aline Burni, pesquisadora da extrema direita europeia, situa as principais diferenças entre as primeiras ondas fascistas e nazistas e a extrema direita de hoje, sublinhando uma diferença sutil, mas importante. “O Nazifascimo olhava para frente e queria uma ruptura total com a ordem social existente, instalando um modelo totalmente novo de sociedade. Considerava que a sociedade iria passar por uma mudança profunda. A nova extrema direita, por outro lado, não tem a intenção explícita de trocar o sistema atual por uma nova ordem, antes busca promover mudanças pontuais na sociedade e na política, apesar de drásticas. Esses partidos são majoritariamente orientados ao passado — ou à uma idealização do passado —, e desejam a restauração de um status quo passado, intimamente ligado à tradição cultural nacional.”

Em seu artigo, Burni defende que uma questão importante é que, ainda que forçando os limites, muitos desses partidos da direita radical  aceitam a democracia liberal, e descartam o uso da violência organizada como forma de ascender ao poder. Ao menos até aqui.

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