Náufragos do Sarandi
“Aline,
Que estes seus 18 anos estejam repletos de alegrias e muita felicidade. Que a cada dia nossa amizade se fortaleça e se torne como um bando de andorinhas, que após cada inverno voltam para seus ninhos cada vez mais fortes, deixando para trás a tristeza da perda de companheiros, porém trazendo inúmeras alegrias! Feliz aniversário.”
A mensagem é escrita à mão e assinada por Aline Garmatz e destinada à outra Aline, de Castro, que chegava à maioridade em 08 de janeiro de 2001. No cartão, ainda um pequeno incenso e um marcador de livro. Estavam em um envelope branco fechado com um adesivo de estrela. Aline de Castro, hoje com 41 anos, guardava cartas, telegramas, cartões de feliz aniversário e boas festas datados de 1997. Da mãe, dos avós, de amigas. Parabéns pelos 15 aninhos, escreveu em 1998 a amiga Milene.
Na terça-feira, 28 de maio de 2024, os escritos estavam em meio à rua Rodrigues da Costa, no bairro Sarandi, Zona Norte de Porto Alegre. O território foi um dos mais atingidos pelas enchentes e, quase 30 dias depois dos primeiros registros de chuva na capital gaúcha, ainda conta com áreas que não podem ser acessadas por conta da água.
As cartas de Aline, úmidas por conta da água, se juntam a centenas de outros itens que passaram de pertences pessoais e memórias a lixo, que estão prestes a ser recolhidos por uma retroescavadeira. Enquanto limpam as casas, tomadas por lama, moradores da rua Rodrigues da Costa, uma das que não têm mais água, veem os garis da Cootravipa levando os resquícios da vida, desde as cartas trocadas com amigas da adolescência, ao guarda roupa e colchões pesados de tanta água absorvida.
A uma quadra dali, na rua paralela Vidal Barbosa, Bia Becker está no pátio de casa e limpa com uma mangueira uma pequena bacia rosa, que até pouco estava marrom por conta da lama. É o suporte da gaiola em que ficava o passarinho. Não sabe se o animal fugiu ou não resistiu. Na sexta-feira, 4 de maio, saiu para trabalhar e recebeu a ligação do filho, dizendo que o bairro estava sendo invadido pela água. Retornou, porém já não conseguiu entrar em casa. O filho, cadeirante, foi resgatado pelos vizinhos. A água que adentrou em todo o terreno de Bia ainda não baixou. Do portão para fora, ainda está inundado. “Só as paredes aqui. Não tenho mais nada. É muito triste”, diz em meio ao que há pouco mais de um mês eram os móveis, eletrodomésticos e utensílios de sua casa. Com a voz embargada, lamenta constantemente a perda do que tinha na pequena casa de dois cômodos. Deixa a água da mangueira correr enquanto conversa e explica que, a partir de agora, quer reconstruir a vida apenas com uma cama, geladeira, fogão, uma mesa para comer e uma televisão para assistir ao noticiário. É o medo de conquistar e perder tudo outra vez. “Um prato para eu comer. Dois pratos, né, se vem alguém. E uma mesinha daquelas pequenininhas. E só. Não quero mais nada dentro da minha casa”, diz.
Bia é uma senhora de 67 anos, com olhos claros, tem cabelos grisalhos compridos, presos com uma piranha. Fala com pesar das roupas e cobertas recém compradas que agora se amontoam ao lado de fora da casa, completamente úmidas e inutilizáveis. “Não tenho mais o que chorar”. Repete inúmeras vezes sobre o violão que havia comprado de presente para a neta. “Vou batalhar e vou comprar um novo. Eu disse para ela ‘não chora, porque a vó vai te dar um violão’, e eu vou mesmo”, afirma, com uma voz que demonstra segurança mesmo diante do caos.
Coleções de DVDS, vinis, fita cassete. Malas com documentos. Álbuns de fotografia. Lembrança de um aniversário de 15 anos. Pacote de queijo ralado fechado com um prendedor de roupa. Pacote de café fechado. Quadros. Tudo isso se mistura pelas ruas do Sarandi. Fragmentos do dia a dia com os simbolismos materiais que cada pessoa guarda como recordação. Por onde recomeçar uma vida? Novas mobílias e eletrodomésticos, mas também novas coleções, novas fotos, novas memórias.
Cecílio está há 26 dias fora de casa. “Moro lá naquela parada de ônibus”, mostra ele. A placa do ônibus está colada em um poste de energia elétrica, que ainda está cerca de um quarto debaixo d’água. Com a mão enfaixada por conta de uma mordida do cachorro Scooby, Cecílio encontra conforto em ter encontrado o vira-lata caramelo, no qual foi obrigado a abandonar por conta da própria sobrevivência. Empolgado, mostra os vídeos do cão restabelecendo a amizade com o dono. Por outro lado, lastima a provável perda dos 200 vinis, da vitrola e outros equipamentos musicais. Acredita que não será possível permanecer na casa, que é de madeira e foi construída há 90 anos.
Moradores do Sarandi têm protestado por conta da demora em baixar a água no bairro. A principal reivindicação é o conserto do dique que rompeu durante a enchente e a drenagem das regiões que permanecem alagadas. Soldados do Exército Brasileiro fazem a travessia de áreas secas até pontos alagados com residentes que ainda não conseguiram voltar para suas casas. Relatos de saques e assaltos amedrontam os moradores que ainda não puderam voltar.
Na esquina da Avenida Faria Lobato com a Avenida Tolêdo Piza, Luiz Carlos Silva Bicudo do Amarante, dorme embaixo da marquise do Mercado Alberti. Aos 70 anos, estava há três noites dormindo na rua e enfrentou os dias mais frios até agora em Porto Alegre para estar mais perto de casa. Sentado em uma cadeira, vestindo um poncho, uma calça de abrigo laranja, estava rodeado de doações de cobertores e um fardo de água mineral. Resiliente, com poucos dentes na boca, apenas os laterais embaixo, afirma que “o negócio é ficar vivo”. Com a água ainda alta, não sabe os prejuízos que teve, mas a voz calma traz a tranquilidade de que o cartão do banco que escondeu com a senha, ainda permanece no mesmo lugar.
Mesmo ainda não tendo conseguido voltar para casa, os náufragos do bairro Sarandi transitam entre o desespero de perder tudo e o alívio em estar vivo. São dias de limpeza, recomeço, mas também protestos e reivindicações na Zona Norte porto alegrense.
“Aline,
Existem momentos na vida da gente incomparáveis. Momentos inexplicáveis e pessoas especiais como você, que conseguem fazer de pequenos momentos grandes instantes. Te desejo todo sucesso e um amor para virar a sua cabeça.
Queria te dizer muitas coisas, mas o sono e o ônibus não deixam.
Feliz aniversário.”