Meta sem filtros
Mark Zuckerberg vestia uma corrente dourada, camiseta preta e um relógio de US$ 900 mil ao gravar um vídeo no qual anunciou mudanças profundas na forma como a Meta lida com desinformação em suas plataformas.
Pelo tamanho e escala da Meta, o anúncio de que o maior conglomerado de redes sociais do mundo vai encerrar seu programa de checagem terceirizada de fatos, inicialmente nos EUA, pode ter implicações profundas na forma como 3 bilhões de usuários diários ativos interagem no Instagram, no Facebook e no Threads — inclusive no Brasil.
A ideia da Meta é substituir essas checagens, inicialmente nos EUA, por um modelo que utiliza verificações feitas pelos próprios usuários, similar ao que faz o X (antigo Twitter) com suas Notas da Comunidade.
Embora seja um modelo interessante de colaboração entre pessoas, é também um sistema que deveria ser, no máximo, complementar à checagem profissionalizada feita por jornalistas, considerando que estudos mostram resultados bastante limitados no combate à desinformação (quando conseguem comprovar alguma correlação).
Quando o programa de checagem começou, lá em 2016, logo após a vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA, a Meta estava sob fogo por causa do caso Cambridge Analytica. Nesse escândalo, informações de mais de 50 milhões de usuários do Facebook foram utilizadas sem autorização para fazer propaganda política. A empresa fazia parte da campanha do então candidato à presidência dos EUA, Donald Trump.
A Meta foi condenada múltiplas vezes pelo caso e estabeleceu o programa de checagem de fatos como tentativa de recuperar os danos de imagem que sofreu, além de reestabelecer parte da confiança perdida com público e autoridades americanas. O programa já dura 8 anos, e foi frequentemente renovado e publicizado pela Meta como um bom modelo.
Não é por menos, então, que jornalistas e especialistas em desinformação do mundo inteiro viram com decepção os comentários mais recentes de Zuckerberg, acusando a imprensa profissional de promover censura e pesar a mão contra liberdade de expressão. “Os checadores de fatos simplesmente foram muito enviesados politicamente e destruíram mais confiança do que criaram”, disse o bilionário.
Por trás desse comentário está um certo ranço com o jornalismo, que nunca pegou leve com ele nem com a Meta. A empresa, que sempre buscou se posicionar como uma força do bem que conecta pessoas e promove boa informação, sempre se viu nos holofotes da imprensa por conta de problemas, gerando uma publicidade negativa. Um bom exemplo são os chamados Facebook Papers — vazamentos de estudos internos da empresa mostrando questões como saúde mental de adolescentes e falhas em lidar com conteúdos tóxicos que geraram grande repercussão mundial em 2021 (quando a empresa ainda se chamava Facebook).
Seja como for, as declarações inflamadas de Zuckerberg tensionaram ao máximo a corda que une a Meta aos checadores, colocando em dúvida um dos maiores financiamentos à checagem de fatos que complementam orçamentos de centenas organizações de todo o mundo, e arriscando desfazer anos de trabalho para limpar a plataforma de seus conteúdos desinformativos mais virais.
Uma carta assinada por 30 agências de checagem de todo o mundo, de Nigéria e Iraque à Ucrânia e Brasil, buscou desmentir essas declarações politicamente carregadas de Zuckerberg, explicando claramente como funciona o programa e quão rigorosa foi a seleção para escolher organizações capacitadas a fazer o trabalho.
“Seus comentários sugerem que os verificadores de fatos foram responsáveis pela censura, embora a Meta nunca tenha dado a eles a capacidade ou a autoridade para remover conteúdos ou contas. Alguns usuários frequentemente culpavam e assediavam os checadores pelas ações da Meta. Seus comentários recentes, sem dúvida, alimentarão essas percepções”, disse a carta.
“Se a Meta decidir encerrar o programa mundialmente, haverá danos reais em muitos lugares”, disseram os checadores.
Da construção ao desmonte
O programa de checagem, que começou no Facebook, foi expandido para o Instagram em 2019 e para o Threads em 2024. A ideia por trás era a de fornecer uma avaliação de especialistas de fora da empresa, tirando um pouco do ônus de moderação de desinformação de suas costas.
Durante o período, a empresa de Mark Zuckerberg fechou contratos com mais de 200 organizações, que são independentes e precisam ser certificadas pela Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN), do Instituto Poynter, uma organização sem fins lucrativos.
No Brasil, as agências certificadas pelo IFCN são: Aos Fatos, Estadão Verifica, Lupa e UOL Confere. Nos EUA, há 10 agências certificadas: AFP, Check Your Fact, FactCheck.org, Lead Stories, PolitiFact, Science Feedback, Reuters Fact Check, TelevisaUnivision, The Dispatch e USA Today. Veja aqui a lista de checadores parceiros da Meta no mundo inteiro.
Segundo a Business Insider, os contratos com os parceiros dos EUA serão encerrados em março deste ano, embora os pagamentos estejam garantidos até agosto. A Meta vai observar primeiro os efeitos do encerramento de seu programa terceirizado de checagem nos EUA antes de decidir o que fará em outros países.
O novo chefe de políticas públicas da Meta, Joel Kaplan, disse que o novo sistema de checagem feita pelos próprios usuários vai “levar tempo” para ser estruturado.
Segundo post no blog da Meta, quando os checadores classificam uma notícia como falsa, a plataforma reduz o alcance orgânico do conteúdo em cerca de 80%. Sem os verificadores profissionais, a ideia é que os próprios usuários decidam o que é ou não desinformação.
No vídeo gravado sobre as mudanças, Zuckerberg diz que esse novo sistema reduzirá o julgamento tendencioso de fatos. Mas, ao site da Poynter, especialistas dizem que, na prática, o recurso encontrará uma grande dificuldade quando depender que pessoas de diferentes ideologias cheguem a um consenso. Como resultado, a desinformação sobre política ou outros tópicos controversos muitas vezes não é controlada, como já vemos no X.
Um artigo de pesquisadores das Universidades de Illinois e Rochester, de novembro de 2024, concluiu que o recurso de checagem pública usado pelo X e citado por Zuckerberg aumenta a probabilidade de retração voluntária de posts falsos pelos autores. A pesquisa indica que esse efeito é principalmente impulsionado pela reação observável dos usuários que interagiram com a informação falsa, e não pela influência presumida sobre usuários passivos.
Mas, ao mesmo tempo, o próprio estudo questiona se a verificação realizada pela comunidade pode ser considerada confiável, contextualizada e ter credibilidade, especialmente por não terem experiência necessária para fazer isso — além de potencial manipulação da pontuação de uma checagem.
Já um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Luxemburgo e Oxford, de 2023, não encontrou evidências de que as Notas de Comunidade no X tenham reduzido o engajamento com posts enganosos. E uma investigação da Wired em 2023 apontou que o sistema de Notas de Comunidade no X pode ser vulnerável a manipulações coordenadas e a brigas internas de voluntários.
A reportagem da Wired mostrou como esse recurso é vulnerável a interesses de certos grupos, chegando até a entrevistar um colaborador do X que coordena com outros voluntários para dar notas a checagens que acham boas ou ruins, aplicando o poder de mostrá-las ou de se certificar de que permaneçam escondidas dos outros usuários da plataforma.
De acordo com o Poynter Institute, de 122 mil Notas de Comunidade feitas até meados de 2023 no X, menos de 10% haviam sido publicizadas na plataforma.
Como bem mostrou o Aos Fatos, a ineficiência do sistema foi explorada por certos grupos para uso político, também em 2023, inclusive para incluir comentários transfóbicos e classificar posts verdadeiros como falsos.
O tamanho do risco
Para se entender o tamanho do risco, convém lembrar que, no fim de 2021, a própria empresa divulgou que removeu mais de 1 milhão de posts, stories e comentários de suas plataformas por desinformação sobre Covid-19, apenas no Brasil. Já em 2022, 600 mil postagens sobre eleições presidenciais brasileiras foram removidas por incitação à violência e discurso de ódio.
Mas, mais do que alterações profundas de abordagem, o anúncio sinalizou um alinhamento (oportunista) entre o jovem CEO bilionário e o novo governo americano liderado pelo presidente-eleito Donald Trump, que assumirá o cargo em 20 de janeiro. É essa harmonia de diferentes poderes (tecnologia de massa + política) que, no fundo, assusta ainda mais uma comunidade de jornalistas e especialistas em desinformação.
Zuckerberg acusou governos e a imprensa tradicional de pressionarem por “censura” de opiniões em suas redes. Ele só se esqueceu de explicar que é a Meta que controla a tecnologia e as regras de seu próprio programa contra desinformação, e que jornalistas parceiros não possuem poder nem para derrubar posts nem aplicar rótulos.
A “censura”, portanto, só podia ser aplicada pela própria empresa, mesmo que a partir de feedbacks gerados por profissionais terceirizados. Além disso, em boa parte dos casos, eram os sistemas da própria Meta que selecionavam conteúdo para ser avaliado por checadores, principalmente a partir de métricas de viralização de conteúdo estabelecidas e priorizadas pela empresa.
Os mais recentes comentários de Zuckerberg são uma notável mudança de posicionamento em relação à postura anterior da Meta. Até poucos meses atrás, a empresa mostrava certo orgulho em patrocinar esse tipo de iniciativa, que conta com mais de 200 parceiros em 115 países.
Essa nova rota do bilionário não acontece por acaso. A eleição de Trump nos EUA, em novembro de 2024, mostrou que agora é mais cômodo para as grandes empresas de tecnologia se aliarem a movimentos conservadores, que tendem a ser muito persistentes em suas pautas de liberdade de expressão e desregulamentação.
Com movimentos regulatórios sobre plataformas acontecendo em muitos países e regiões, como Canadá, Austrália e até no Brasil, as empresas querem agora se aliar àqueles que as deixarão correr com a rédea solta.
É importante notar que grandes empresas de tecnologia, especialmente Google, Amazon, Apple, passaram por quatro anos de muitos atritos regulatórios nos Estados Unidos durante o governo Joe Biden, assim como na Europa, com o início de regulações de serviços digitais que colocam as grandes plataformas em um lugar de maior escrutínio e conformidade. A Meta, em menor escala, também passou por pressões do governo Biden para que moderasse conteúdos anti-vacina durante a pandemia de Covid-19, algo que Zuckerberg aparentemente não conseguiu superar.
Com a rapidez de desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (LLMs), essas grandes empresas temem que o governo possa interferir demais em suas iniciativas para acelerar a implementação de ferramentas de inteligência artificial para consumidores. O regulador de mercados dos EUA, a FTC, deixou claro durante o governo Biden que tinha toda intenção de ir atrás do poder de mercado dessas empresas.
Ironicamente, tanto Trump quanto seu vice-presidente-eleito, JD Vance, fizeram muitas críticas às Big Techs e seus executivos na campanha presidencial de 2024, inclusive clamando por regulação. Trump chegou a fazer ameaças claras a Zuckerberg: “Estamos observando-o de perto e se ele fizer algo ilegal desta vez, passará o resto da vida na prisão — assim como outros que trapacearem na eleição presidencial de 2024”, disse o presidente-eleito em agosto de 2024.
Desde então, Zuckerberg parece ter mudado — obviamente atento ao calendário eleitoral — e assumido uma postura muito mais amigável em relação aos duros discursos intervencionistas de Trump. Se não se pode enfrentá-los, junte-se a eles.
Muito dessa aproximação veio na forma de afagos verbais, mudanças de políticas internas da Meta e, claro, dinheiro. Zuckerberg pessoalmente doou US$1 milhão para o fundo de cerimônia de posse de Trump, junto a outros grandes nomes de tecnologia como Sam Altman (OpenAi) e Jeff Bezos (Amazon).
Quaisquer que sejam as novas direções que a Meta (e, nesse sentido, outras grandes empresas de tecnologia) vá tomar em relação a moderação e desinformação, é seguro presumir que agora a empresa está jogando com os conservadores.
Como bem disse o advogado e diretor do InternetLab, Francisco Brito Cruz, em entrevista ao Intercept Brasil, a Meta não ganha nada atualmente ao tentar agradar a imprensa e a base política mais progressista nos EUA. O Partido Republicano, conservador em essência, controla o Congresso, é maioria na Suprema Corte e prepara uma onda de mudanças estruturais assim que assumir a Presidência. “O peso do pragmatismo é alto e quem paga o pato são os usuários, em especial de geografias e grupos marginalizados”, disse o advogado.
Para Zuckerberg, apenas começou sua jornada no trumpismo.