Jejum de dopamina?
Oito átomos de carbono e onze de hidrogênio, que constituem a estrutura base, dando forma a um anel aromático e cadeias laterais. Dois átomos de oxigênio se ligam a esse esqueleto, conferindo solubilidade. É essa propriedade, a capacidade de a molécula dissolver-se, que a permite se mover pelo ambiente aquoso dos fluidos corporais, como o sangue, até alcançar e interagir com receptores em diferentes áreas do cérebro e da medula espinhal. Além disso, um átomo de nitrogênio se conecta ao arranjo, formando uma amina – responsável por dar a luz verde para a transmissão de sinais químicos no sistema nervoso. Quando liberada por um neurônio estimulado, essa substância se funde rapidamente aos receptores da célula vizinha, liberando sensações de prazer. Todo esse processo de liberação e ligação aos receptores acontece em apenas 1 ou 2 milissegundos. O bem-estar dura mais, de 5 a 30 segundos. O suficiente para viciar? Ou ainda, será que você está viciado nesta substância?
A última questão, sobretudo, é aventada repetidamente em vídeos que inundam as redes sociais. “Eu estou me desintoxicando do vício em dopamina”, anuncia a influenciadora Isadora Pompeo em um vídeo de 3 minutos e 52 segundos, e 44,6 mil curtidas no TikTok. “Cada pessoa pode ter uma causa. No meu caso, é a internet. Essa sequência de vídeos curtos, de conteúdo fácil, [desperta o que] se chama dopamina barata. Você adquire um prazer tão rápido que não sustenta ou se satisfaz com aquilo. Então você busca, busca e busca. Porque, afinal de contas, a dopamina é a coisa mais viciante que existe. Consegue ser a melhor e a pior coisa, se usada da maneira errada”, completa.
Outra gravação, essa do hipnoterapeuta João Jucá, indica “5 sinais de que você está viciado em dopamina”. São eles: aumento da ansiedade, muito tempo gasto com redes sociais, não conseguir finalizar leituras de livros e atividades corriqueiras, como arrumar a casa, e a falta de interação social. E alerta: “Existem outros comportamentos que estão associados ao vício em dopamina. Se você quer saber mais, curte para a parte 2 do vídeo”.
A dopamina é um neurotransmissor, um mensageiro essencial para regular diversas funções orgânicas. Até meados dos anos 1950, cientistas entendiam a molécula, que recebia o nome de 3,4-di-hidroxifenetilamina, apenas como uma substância formadora de outros produtos químicos. Em 1952, ela ganhou seu nome e estudos voltados a entender sua função. Nessas primeiras pesquisas, feitas com ratos, os cientistas James Olds e Peter Milner implantaram e ativaram eletrodos em diferentes regiões do cérebro dos animais. Perceberam, assim, que os ratos pareciam gostar de determinados estímulos. Depois, deixaram com que eles mesmos acionassem os impulsos elétricos através de alavancas e voilá: os bichanos passavam o dia estimulando as mesmas áreas cerebrais. Desistiram de qualquer outra tarefa, pararam de comer e de se reproduzir: estavam viciados. As zonas identificadas como os centros de recompensa continham uma série de neurônios com receptores para a dopamina. Daí surgiu a associação entre o vício e o neurotransmissor. No entanto, tal ligação direta caiu por terra nos anos 1980, quando outras pesquisas constataram que, mesmo lesionando ou matando células de dopaminas em animais, eles seguiam vivos e buscando outras fontes de prazer.
Associada majoritariamente ao bem-estar, a dopamina atua de maneira muito mais refinada e em diversos processos do corpo. No Sistema Nervoso Central (SNC), em vez de simplesmente gerar prazer como resposta aos estímulos ambientais, funciona como uma espécie de “farol”, iluminando aquilo que é relevante para o nosso cérebro, com base em experiências passadas. Quando somos expostos a algo familiar, ela chama nossa atenção para isso, ajudando a estabelecer conexões entre memória e estímulos presentes. Esse processo é o que os neurocientistas chamam de “saliência de incentivos”. Ela nos motiva, portanto, a nos conectarmos ao que faz sentido para nossas vivências.
É tão mais complexo que a dopamina pode, inclusive, gerar diferentes respostas de acordo com os receptores que ativa. Por exemplo, na região do estriado dorsal, se ela estimula o impulso elétrico nos receptores D1, o cérebro interpreta o estímulo como um reforço positivo — daí a sensação de prazer. Agora, se ativa os receptores D2, o sentimento é de perda ou punição. Essa molécula, então, atua como um modulador que nos orienta a focar no que é relevante para nossa adaptação ao ambiente, com base em experiências passadas.
Em outras palavras, a associação direta entre dopamina e vício simplifica o papel desse neurotransmissor, reduzindo-o a uma explicação fácil para o comportamento vicioso. A visão reducionista sugere que o problema poderia ser resolvido evitando estímulos específicos.
É possível jejuar?
Uma das medidas mais populares, e mais rasas, é o chamado “jejum de dopamina”. Esse conceito se espalhou como rastilho de pólvora pelas redes, ganhando notoriedade como uma solução para os excessos da vida moderna. Ele parte da ideia de que nossos cérebros estão sobrecarregados devido à constante exposição a estímulos, e que uma redução drástica nessas fontes de prazer imediato poderia ser uma forma de restabelecer o equilíbrio, diminuindo os níveis de dopamina e, assim, nos permitindo sentir mais bem-estar. Ou seja: basta parar de scrollar a tela do celular, de encontrar amigos, tomar um bom vinho, fazer sexo ou apreciar seu cigarro por um intervalo determinado de tempo. Integrar períodos de restrição ao cotidiano.
O mais curioso é que este termo, que não possui qualquer respaldo científico, tomou forma justamente no meio acadêmico. Foi criado pelo psicólogo Cameron Sepah, que estudou em Harvard e na Universidade da Califórnia. Ativo no Vale do Silício, Sepah também é investidor e mentor de muitos empresários do polo tecnológico. Ele alegou ter adaptado uma técnica de terapia comportamental chamada “controle de estímulos”, originalmente usada para tratar dependentes químicos, e aplicada aqui para reduzir comportamentos que geram picos de dopamina.
Contudo, um artigo publicado pela própria universidade na Harvard Health Publishing desmentiu a ideia de que o jejum de dopamina seria eficaz. A publicação esclareceu que muitas pessoas estavam encarando a molécula como uma substância nociva, como a heroína ou a cocaína, e realizando esses “jejum” com a crença equivocada de que, dando uma “pausa” para seus cérebros, os prazeres se tornariam mais intensos ao serem consumidos novamente, como se o estoque de dopamina pudesse se reabastecer.
Levar o conceito de “jejum” ao pé da letra, por exemplo, revela uma faceta ainda mais grave porque é impossível jejuar de dopamina sem consequências fatais. Ela é essencial para vários processos vitais do organismo. Atuando em áreas críticas do cérebro, como o hipocampo (responsável pela memória e pelo sono), o hipotálamo (que regula o sono e as funções hormonais), o tálamo (que controla a respiração e a atividade cardíaca) e os gânglios da base (que influenciam a atividade motora), esse neurotransmissor é indispensável para o nosso funcionamento diário. O sistema de recompensa, do qual faz parte, não pode ser desligado sem prejudicar a sobrevivência e o equilíbrio das funções do corpo. “O jejum de dopamina, criado pelo psiquiatra da Califórnia Dr. Cameron Sepah, tem muito pouco a ver com jejum ou dopamina. Infelizmente, com um nome tão chamativo, quem poderia resistir? É aqui que os equívocos começam”, cravou o médico Peter Grinspoon no artigo de Harvard.