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Garota cancelada

“Descobri quando Elza nasceu”, dizia o título do e-mail. O remetente, chamado J., era um desconhecido. Naquela manhã, eu planejava dar só uma olhada rápida no computador, o e-mail que acumulasse: era meu aniversário. Mas o que fazer diante de uma proclamação como aquela? “Descobri quando Elza nasceu.” Anexada, a cópia de uma certidão de nascimento muito antiga (os documentos citados nesta reportagem estão aqui). Uma certidão que trazia a data de 1º de outubro de 1921. Uma data que dava vertigem.

Não sei se entendi na hora ou se a ficha caiu aos poucos, mas eu acabava de receber um dos maiores presentes de aniversário da minha vida. Um documento clamorosamente faltante para contar a história política brasileira do século XX. A heroína ou anti-heroína do meu livro Elza, a garota (2009), uma das personagens mais invisibilizadas e desrespeitadas da nossa história, poderia finalmente morrer em paz.

Para nossa vergonha eterna, o alívio tardou 87 anos desde a tarde de março de 1936 em que Elza Fernandes foi estrangulada com uma cordinha de varal por cinco homens que julgava seus amigos, companheiros do Partido Comunista, antes de ser enterrada no quintal de uma casa suburbana do Rio de Janeiro como uma vira-lata. Ali, deslizou por uma fresta do espaço-tempo histórico brasileiro e desapareceu.

Desapareceram sua identidade, sua idade, sua cidade, seus parentes, sua história. Espremida pelas décadas seguintes entre os polos poderosos da Guerra Fria e seus reflexos locais — e, neste século, entre os ecos renitentes daquele tempo —, Elza foi virando sua própria sombra. Nossa historiografia não era capaz sequer de determinar se ela tinha morrido com 21 anos, sua idade “oficial”, ou 16, como sustentavam algumas testemunhas.

Verdade que ninguém fez muita força para descobrir. A direita por flagrante incompetência (a notícia lhe seria favorável) e a esquerda por cacoete ideológico (lá iria ela “fazer o jogo da direita” e escolher falar logo dessa vítima, entre tantas, da guerra política brasileira?), todo mundo contribuiu seu quinhão para que Elza virasse uma lacuna. O negativo de uma pessoa.

No entanto, descobre-se agora, era só uma menina. Menina mesmo: não tinha nem 21, nem 16, mas apenas 14 anos. Mais precisamente, tinha 14 anos e cinco meses quando seus companheiros do PC a condenaram como traidora e a mataram. Isso muda coisa à beça.

Anticomunismo e recalque

Para começar, deixa tudo muito mais triste. A prolongada ignorância sobre a idade com que morreu Elvira Cupello Calonio (seu nome verdadeiro, Elza Fernandes era codinome) é emblema do apagamento geral que aquela menina sofreu, numa conjuntura de guerra ideológica, pela ação combinada da esquerda, que a recalcou, e da direita, que abusou da propaganda anticomunista até afogá-la em descrédito.

Pensando bem, nunca foi admissível ignorar quantos anos tinha a vítima de um crime que frequentou as primeiras páginas dos jornais e que condenou a 30 anos de prisão, como mandante, um personagem histórico do tamanho do líder comunista Luís Carlos Prestes. No entanto, ignorávamos — e daí? Que importância tinha aquela pessoa? Traidora capaz de tudo ou estandarte da inocência conspurcada por monstros, esqueleto no armário da esquerda e garota-propaganda caduca da direita, por muito tempo não havia espaço entre esses estereótipos para que Elza fosse, no sentido humanista pleno, uma pessoa.

A Garota, como os companheiros a chamavam — de forma, sabemos agora, realista —, levava no corpo as marcas de uma vida de baixíssimo valor na sociedade brasileira dos anos 1930: era mulher, pobre, muito jovem, analfabeta, descendente de imigrantes. Ocupava um lugar na rabeira da fila. Os baixos teores de cidadania da Garota ajudam a explicar seu assassinato por vaga suspeita de traição num momento de pega-pra-capar em que traidores de verdade não estavam em falta.

Sob silêncio geral, Elza passou quatro anos na cova que seus executores tinham cavado no quintal — sua primeira. Em 1940, depois que um informante deu o serviço, foi exumada diante das câmeras e bloquinhos de um batalhão de repórteres. Começava ali a instrumentalização política da sua morte, enquanto, observando tudo de longe, o ditador Getúlio Vargas fumava seu charuto com um sorriso satisfeito.

Foi o melhor momento de Elza, aquele em que pelo menos a viram. Pena que ela fosse a essa altura só um esqueleto, cujo crânio sujo de terra foi apresentado a Luiz Cupello Calonio, seu irmão mais velho, trazido da prisão onde cumpria pena por atividades comunistas para que o reconhecesse. Ele imediatamente obedeceu, como se aquilo fizesse algum sentido — e, claro, como estava combinado com a polícia. Aproveitou o embalo e rabiscou ali mesmo um bilhete em que renunciava ao seu passado de militante do PC do B, como o Partido era então chamado.

A foto hamletiana

A foto é impressionante: impecável num terno de linho branco, chapéu panamá e sapato bicolor no meio das escavações, o delegado Hugo Auler mostra a caveira de Elvira a Luiz. Naquele momento, todos viram Elza. E nunca mais ninguém concordaria sobre o que tinha acabado de ver — até a foto hamletiana bater na tela do estudante carioca de matemática J.M.P., 22 anos, que pediu para não ser identificado com seu nome completo e que tem como hobby pesquisar arquivos primários na internet, em especial sobre o Rio antigo. Ele conta que ficou “um pouco em choque por aquilo ter acontecido tão próximo de mim, geograficamente”.

Morador do bairro carioca de Bento Ribeiro, na Zona Norte, foi a vizinhança com a cena da exumação de 1940, num endereço a cinco minutos de caminhada do Guadalupe Shopping, que o levou a perseguir o assunto. Não demorou a chegar à leitura de Elza, a garota, e me procurar. Trocando mensagens com j., começou a me impressionar como são misteriosos os caminhos dos livros e das histórias depois que eles ganham o mundo.

Eu não tinha a menor intenção de voltar a Elza; também a havia abandonado. Foi um estudante com a idade da minha filha mais nova que, trancado no quarto com seu computador, descobriu o que escapou por quase nove décadas aos pesquisadores brasileiros: a certidão de nascimento de Elvira Cupello Calonio, lavrada à moda antiga dos cartórios em um caderno pautado de tamanho grande e na caligrafia cursiva do escrivão — bem longe de Sorocaba, que até então se acreditava ser sua cidade natal, e bem perto de mim. Como toda a sua família, Elza era carioca.

Hoje está claro que foi aquele papo de Sorocaba, uma mentira destinada a enganar a polícia, que driblou todo mundo. Não houve pessoa a escrever sobre essa história (foram poucas, é verdade) que não acreditasse numa Elza sorocabana, e eu não fui exceção. Como os cartórios da “Manchester paulista” não registravam o menor traço de uma Elvira Calonio, dava-se a questão como indeterminada, com graus variados de frustração, e pronto.

J. foi o responsável por reabrir — para que se possa enfim fechar — esse caso antigo. Em meu livro, eu deixava um convite: “Tomara que alguém possa acrescentar nos espaços em branco aquilo que eu não tive como descobrir”. Dito e feito, mas agora eu não conseguia me livrar de uma impressão diferente. A de que, da sua solidão cósmica, era a própria neta de imigrantes italianos abandonada por todos — literatura acadêmica, memória histórica, memória familiar — quem dava um passo à frente para dizer que existia.

Nesse ponto a revolução digital trabalhou a seu favor. Quando escrevi o livro, em 2008, havia poucos arquivos primários digitalizados e disponíveis para consulta online; de modo geral, o único jeito de obter um documento era ir aonde ele estava guardado, preencher fichas, aguardar, torcer, e no caso de encontrá-lo solicitar uma cópia, preencher fichas, aguardar…

Voltado para quem se dedica a pesquisar árvores genealógicas, o site FamilySearch informa ter disponíveis hoje para consulta mais de dois bilhões de documentos de nascimento e óbito de todo o mundo, digitalizados por multidões de voluntários. Foi lá que J., entre uma e outra pesquisa sobre seus próprios antepassados, encontrou Elvira — e levou um susto. “Eu não tinha nenhuma intenção de encontrar a certidão de nascimento dela porque se ninguém, em oitenta anos, encontrou, eu no meu quarto não encontraria”, conta. “O meu objetivo era chegar até algum parente vivo.”

Tragicomédia de erros

A lacuna ter durado quase 90 anos fica mais compreensível quando se considera que a vocação para a falha está no DNA dessa história. O assassinato de Elza foi gestado num ambiente que era, desde o princípio, o de uma comédia — ou melhor, tragicomédia — de erros. Em 1935, o Brasil estava tão maduro para uma revolução comunista quanto para ser campeão mundial de rúgbi. No entanto, nas palavras da historiadora comunista Marly de Almeida Gomes Vianna no livro Revolucionários de 1935, sonho e realidade, os conspiradores viviam num “mundo demencial”.

A tresloucada e natimorta tentativa de levante militar que ficaria conhecida como Intentona Comunista, em novembro de 1935, foi provavelmente o maior erro da história da esquerda brasileira. Na imagem usada pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro no livro Estratégias da ilusão: A revolução mundial e o Brasil, foi produto de um circuito fechado em que o Comintern — ou Internacional Comunista, braço do PC soviético encarregado de fomentar revoluções mundo afora — se deixou empolgar por uma versão de segunda mão das suas próprias ideias.

Essa versão lhes foi apresentada pelos dirigentes de um PC brasileiro fraco, suspeito de desvios anarquistas e pequeno-burgueses — o que só o deixava mais ansioso por impressionar os chefes. Por excesso de confiança em seu prestígio nos quartéis, Prestes também abraçou a versão delirante da maturidade da revolução brasileira. Tinha início a pantomima em que uma adolescente acabaria por desempenhar o papel de bode expiatório, cordeiro sacrificial ou vítima gratuita — ao gosto do freguês.

De fama nacional como chefe de campanha da mítica coluna que passou à história com seu sobrenome (1925-27), o jovem militar gaúcho Luís Carlos Prestes convertera-se ao comunismo depois de romper com Vargas. Com a mãe e as irmãs, vivia na URSS desde 1931. Os 30 mil dólares que tinha recebido do político e militar de São Borja para ajudá-lo a fazer a revolução de 1930 ficaram sem uso, mas não foram devolvidos — e logo voltariam ao Brasil com o nome midiático de “ouro de Moscou”, embora só fossem de Moscou por tabela.

Acompanhando Prestes, que entrou clandestinamente no Brasil em abril de 1935, veio um time graduado de revolucionários profissionais: além de Olga Benário, encarregada de sua segurança pessoal e com quem ele acabaria por se casar, destacavam-se o ucraniano Pavel Stuchevski e o alemão Arthur Ewert — mais conhecidos por seus codinomes Leon Jules Vallée e Harry Berger. Detalhe importante: a essa altura, Prestes era membro da Internacional, mas não do PC brasileiro, que o encarava com um misto de reverência e pé-atrás, subserviência e rancor. Isso se provaria decisivo no rumo dos acontecimentos.

Em nossa historiografia, a insurreição de 1935 costuma ser analisada por dois prismas divergentes. À esquerda, sempre foi entendida como fenômeno doméstico, capítulo do tenentismo e válvula de escape desesperada para as forças progressistas reunidas na Aliança Nacional Libertadora (ANL), que Vargas pusera na ilegalidade em julho de 1935. À direita, ganha as cores de uma intriga internacional em que Moscou mexeu seus pauzinhos para tentar depor o governo brasileiro. Convém reconhecer que a Intentona foi as duas coisas ao mesmo tempo, mas Prestes e seu grupo já estavam no Brasil três meses antes de Vargas proscrever a ANL.

Canalha rodriguiano

O baiano Antônio Maciel Bonfim, secretário-geral do Partido Comunista, levava o codinome de Miranda, como um canalha de Nelson Rodrigues. Tinha mais que o dobro da idade de Elza: 30 anos. Essa diferença etária entre os membros de um casal não era incomum no Brasil da época, mas os bons costumes recomendavam levar a menina ao altar antes de levá-la para casa.

Se Miranda e Elza pularam essa etapa, ele dizia a todos que a amava e que se casaria com ela na primeira oportunidade. Antes disso, porém, a agenda dos adultos previa certos inconvenientes, como uma revolução para tomar o poder no maior país da América do Sul. O plano matrimonial foi adiado para um futuro mais tranquilo.

Nem é exato dizer que Elza fosse comunista. De família comunista, sim; conheceu Miranda por meio de seu irmão Luiz — o da cena hamletiana. E, de repente, lá estava ela acompanhando o namorado poderoso em reuniões secretas nas quais lhe cabia fazer café, servir lanche, lavar a louça. Somando a pouca idade ao analfabetismo, é legítimo supor que entendesse tanto da conspiração cascuda em que Miranda a envolvera quanto eu entendo de física quântica.

Em novembro de 1935, a Intentona foi esmagada em poucas horas pelo governo Vargas. Seguiu-se a repressão feroz e assassina do chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, apelidado pela esquerda de “patrono dos torturadores do Brasil”. Presa com Miranda, Elza foi fichada como uma paulista nascida em 1914. Mentiras como essa ajudavam a despistar a repressão numa era de arquivos manuais e paquidérmicos, mas a polícia sabia bem disso. Por que a cascata de Elza colou na delegacia e depois no tribunal é algo que só podemos especular.

De todo modo, o fato de que logo a puseram em liberdade, mantendo Miranda preso, deixou indóceis os conspiradores que ainda não tinham caído em poder de Müller. Estaria Elza “inteiramente ao serviço do adversário”, nas palavras de Prestes?

Sentimentalismo, não!

Naquele ambiente de pânico — o governo fazendo uma prisão após a outra, Prestes e Olga tendo que se mudar às pressas do esconderijo em Ipanema para outro no Méier —, um “tribunal revolucionário” improvisado na base de bilhetes nervosos trocados entre aparelhos condenou Elza à morte. No entanto, cadê que a sentença era cumprida? Os camaradas hesitavam. Elza não oferecia perigo imediato porque estava isolada, sob escolta permanente, numa casa erma nos arredores da cidade. Honório de Freitas Guimarães, membro da direção, escreveu a Prestes propondo que mantivessem por ora o “statu quo” — isto é, Elza viva.

Prestes lhe passou uma descompostura: “Fui dolorosamente surpreendido pela falta de resolução e vacilação de vocês. (…) Companheiros, assim não se pode dirigir o Partido do proletariado, da classe revolucionária consequente. (…) Por que modificar a decisão a respeito da Garota? Há ou não há traição por parte dela? É ou não é ela perigosíssima ao Partido, como elemento inteiramente ao serviço do adversário, conhecedora de muita cousa e testemunha única contra um grande número de companheiros e simpatizantes? (…) Não é possível dirigir sem assumir responsabilidades.”

A tréplica ressentida, mas servil, não veio de Honório, mas de Lauro Reginaldo da Rocha, o Bangu, que na ausência de Miranda era a maior autoridade do PC nacional: “Se não pusemos logo em execução as medidas que você propôs, foi devido às razões, que nos pareciam justas, de que poderiam resultar numa desligação do Partido com a massa. (…) Agora, não tenha cuidado que a coisa será feita direitinho, pois a questão sentimentalismo não existe por aqui. Acima de tudo colocamos os interesses do Partido”.

Com as faces queimando pelo pito tomado de Prestes, aflito por impressionar os soviéticos no auge da política stalinista de eliminar dissidentes como quem matava moscas, o PC do B escalou uma menina de 14 anos no papel de traidora justiçada. Será que poderia ter escalado Rodolfo Ghioldi, o líder do PC argentino, que viera acompanhar de camarote a revolução no país vizinho e, preso, contou tudo o que sabia antes de apanhar? Não: Ghioldi era homem e tinha poder. Farsa é farsa.

Do assassinato de Elza por estrangulamento participaram cinco homens feitos, com idades entre 28 e 53 anos. Uns seguravam braços e pernas, outros apertavam o laço: Cabeção, Gaguinho, Tampinha, Abóbora e o mais graduado de todos, Honório, aquele que Prestes tinha espinafrado. Consumado o ato, coube a Honório fazer um pequeno discurso solene, dizendo que tinham eliminado “uma bandida”. Prestes nunca admitiria isso, mas, ainda que o tribunal fosse o de uma ditadura, sua condenação como mandante foi inteiramente consistente com as provas.

Em 1945, com o fim do Estado Novo, os assassinos de Elza foram todos anistiados.

Segredo de família

A família de Luiz Cupello Calonio nos recebeu com gentileza na casa confortável construída por ele num condomínio de classe média da Taquara, Zona Oeste do Rio: a viúva Maria Luiza, de 89 anos, cunhada de Elvira; o filho mais velho do casal, João Maia Calonio, de 67, coronel PM aposentado; e o neto João Luiz, de 34. Mais uma vez, as pesquisas de J. no FamilySearch fizeram a diferença, abrindo caminho para o encontro.

Dificilmente este teria ocorrido de outra forma. Ao cair num desvão político-ideológico da história do Brasil, aquela menina desapareceu também da história familiar — ou, pelo menos, da história familiar que pode ser contada abertamente, em vez de trancada no porão.

O irmão mais velho de Elvira quase nada falava do passado. Operário da Fábrica Nacional de Motores (FNM), em Xerém, no município fluminense de Caxias (RJ), até se aposentar em 1978, cultivava o perfil de uma pessoa meio apolítica, segundo o filho, e na hora de votar tendia ao centro. João conta que só após a morte de Luiz, em 1996, aos 83 anos, soube por um amigo dele que o pai cumprira pena na Ilha Grande por “atividades comunistas”.

Dona Maria Luiza parece saber um pouco mais — lembra-se de folhear “uma revista velha, toda despedaçada”, que mais tarde viu o marido queimar —, mas, talvez por isso mesmo, é a mais relutante da família em remexer o passado. “Eu tinha medo”, diz. Medo de quê? “De me meter em confusão. Eu gosto de ficar tranquila na minha casa, na minha vida.” De todo modo, sendo 22 anos mais nova que o marido, não teve tempo de conhecer Elvira, de quem Luiz lhe falou “uma vez só, nos anos todos de casados”, com “uma tristeza muito grande”.

O neto João Luiz, artista gráfico e ex-militante anarquista, se espanta: “Eu só fui saber da minha tia-avó poucos anos atrás. Um dia o meu pai estava com o teu livro lá e me explicou a história. E eu: cara, que surreal isso!”. Seu pai conta que sabia vagamente que uma tia morrera jovem em circunstâncias trágicas, mas só foi se inteirar da história real de Elvira Calonio ao ler Elza, a garota, anos atrás, não se lembra exatamente quantos. Mesmo assim, não lhe ocorreu procurar o autor do livro, pois “não teria nada a acrescentar”.

Eu lhe pergunto por que concordou em falar agora sobre um segredo de família tão bem guardado. “Justiça”, responde prontamente. “Como pode uma menina de 14 anos ter se envolvido com um partido aí, que a gente sabe quais são as características dele, né? E acabou morta covardemente. Isso é um tributo a ela, independente de ser minha tia, mas até mesmo, num contexto agora do politicamente correto, à mulher.”

O lado humano

“Justiça” talvez seja uma palavra forte demais para o que pode ser feito hoje por Elvira, mas contar sua história da forma mais honesta possível é o mínimo. Isso nada tem de simples. Ela ficou tão identificada com o que representou num contexto de polarização máxima entre direita e esquerda que até hoje pode passar despercebida sua capacidade de revelar com nitidez, por baixo da guerra ideológica, nosso solo comum de miséria, misoginia, fanfarronice, violência e covardia.

João Maia Calonio, que se define como de centro-direita e que votou em Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2022, sonha para a tia uma justiça com tintas políticas. J.M.P., que ao votar pela primeira vez, ano passado, optou por Lula, acha que suas preferências não vêm ao caso. “Eu prefiro não olhar tanto para o lado político disso tudo, mas para o lado humano”, diz. “É realmente triste. Ela foi morta a troco de nada e ficou por isso.”

Naturalmente, não há nada que obrigue uma pessoa, qualquer que seja sua inclinação política, a defender Prestes no caso Elza — acredito que pelo contrário. O historiador comunista Jacob Gorender examinou os fatos e preferiu acusá-lo. “Quando afirma, quase cinquenta anos depois, que o crime brutal devia ser evitado — Prestes diz a verdade. Quando se isenta de culpa e joga toda responsabilidade sobre o Partido — mente”, escreveu no livro Combate nas trevas, de 1987.

Mesmo assim, falar de Elza ainda é visto por parte da esquerda como de mau gosto, quando não como um ato de direitismo explícito. Como se algum dia a direita tivesse mostrado preocupação especial com a vida de adolescentes analfabetas descendentes de imigrantes. Quem leu o conto “O gato preto” aprendeu com Edgar Allan Poe que emparedar os mortos, em vez de lhes dar um enterro decente, é a melhor forma de garantir que eles continuem voltando para denunciar os vivos.

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