Fogo e cortinas de fumaça

O ar de São Paulo estava irrespirável nesta semana. Na sexta-feira, pelo quinto dia seguido, a capital registrava a pior qualidade do ar entre as grandes cidades do mundo, de acordo com a plataforma suíça IQAir. Claro, existe a poluição natural de uma cidade por onde circulam diariamente cerca de 6 milhões de veículos a combustão e que é afetada pela produção industrial. Mas quem viu o céu da cidade nos últimos dias sabe que alguma coisa está fora da ordem. Ou talvez alinhada a uma nova ordem, regida pelos eventos climáticos extremos, previstos pela ciência há décadas e largamente negligenciados pelos governos mundo afora.

No caso de São Paulo, a qualidade do ar é impactada diretamente pelas queimadas que atingem o Brasil de Norte a Sul. Apenas neste ano, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o país já registrou 159.411 focos de incêndio desde janeiro. Mais do que o dobro dos 79.315 registrados no mesmo período no ano passado. Na última quinta-feira, o relatório mensal do Map Biomas mostrou que a área queimada no Brasil em agosto cresceu 149% em relação ao mesmo período do ano passado e atingiu 5,65 milhões de hectares – área que equivale ao tamanho da Paraíba inteira.

Não é só um problema de São Paulo. A fumaça dos incêndios florestais que acontecem na Amazônia e no Cerrado, aliada aos focos de incêndio nas lavouras do Centro-Oeste e do Sudeste têm impactado Estados no Brasil e países vizinhos. Imagens produzidas pelo CAMS (Serviço de Monitoramento da Atmosfera, na sigla em inglês) do observatório Copernicus, da União Europeia, mostram um aumento expressivo da fumaça decorrente das queimadas de 1º de agosto a 9 de setembro e como os focos de incêndio amazônicos atingem o Centro-Oeste e o Sudeste e já se espalham para o Sul. O Cerrado  foi o bioma que teve mais focos entre 7 e 10 de setembro. Foi essa poluição que causou a chuva preta vista em Porto Alegre. Para os próximos dias, mais três Estados além do Rio Grande do Sul podem vivenciar o mesmo fenômeno: Santa Catarina, Paraná e São Paulo.

Se nesta semana o país foi atingido por uma onda de calor da Amazônia até Santa Catarina, que, somada à baixa umidade é uma receita para o aumento das queimadas, as perspectivas para a próxima semana não são melhores. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) prevê  uma nova onda de calor, que fará a temperatura aumentar em até 5 ºC acima da média histórica pelos próximos dias. Os Estados de Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, além de partes do Rio de Janeiro, Minas, e do Amazonas receberam alerta vermelho de “grande perigo”. Em algumas cidades, as temperaturas devem ultrapassar os 40 ºC.

Na Sala de Justiça

Em um primeiro momento, a reação do governo brasileiro à escalada de incêndios foi buscar a culpa nos suspeitos de sempre. Em 25 de agosto, quando as queimadas em São Paulo apresentavam uma escalada, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva falava que se tratava de um novo dia do fogo, remetendo aos incêndios criminosos que ocorreram na Amazônia e no Pantanal em 2019. Que boa parte dos incêndios é criminosa é uma suspeita que não pode ser descartada. A situação de São Paulo desde a penúltima semana de agosto tem muita semelhança com o que ocorre na Amazônia, e o Estado registrou o maior número de focos ativos de calor desde o início das medições do satélite de referência, em 1998. Um levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), obtido pela Agência Pública, mostra que, apenas entre 22 e 24 de agosto, foram 2,6 mil focos, 81,29% deles em áreas de uso agropecuário como as ocupadas pela cana-de-açúcar e pela pastagem. Essa onda levou o governo federal a acionar a Polícia Federal para investigar as causas dos incêndios no Estado.

O fato é que o país está em chamas e vulnerável a todo o tipo de implicações para a saúde trazidas tanto pela fumaça quanto pela chuva preta. E isso teria que refletir, em qualquer governo, na busca de soluções de curto, médio e longo prazos. Só que isso não ocorre. Na semana passada, quem trouxe o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a realidade foi o Supremo Tribunal Federal (STF). Mais precisamente o ministro Flávio Dino, ex-ministro da Justiça do petista. Ele cobrou o cumprimento por parte do governo da decisão da Corte tomada na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 743, que foi impetrada pelo PT, PSOL, PSB e Rede ainda durante o governo Bolsonaro. Desde março deste ano o governo deve esse plano ao STF. E a implementação deve ocorrer contra as queimadas mesmo que seja necessário pedir crédito extraordinário ao Congresso. O que não pode é não cumprir a decisão.

A tramitação dessa arguição no STF apresenta traços de ironia. Além do fato de ter sido provocada pelos partidos da base de Lula, o julgamento realizado em março acabou tirando a relatoria das mãos do ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, André Mendonça, e a colocando nas mãos de Dino, titular da mesma pasta de Mendonça nos primeiros anos de Lula e indicado pelo petista para a vaga na Corte. Isso porque, no julgamento da “pauta verde” do STF, Flávio Dino abriu divergência e derrotou a tese de Mendonça. Regimentalmente, portanto, herdou a relatoria da ADPF. O prazo dado pelo STF para o governo apresentar as ações para o Pantanal e Amazôna era de 90 dias. Além disso, o Executivo teria que desenvolver um plano de recuperação da capacidade operacional do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo).

O tempo passou e nenhuma resposta foi dada à Corte. Diante disso, Dino, em 10 de setembro, convocou uma audiência pública para tratar do tema. Foram chamados a Advocacia Geral da União (AGU), o Ministério do Meio Ambiente, o Superior Tribunal de Justiça, uma vez que, na época, o ministro Herman Benjamin comandava o observatório do clima dentro do judiciário. Também estiveram presentes representantes da Procuradoria-Geral da República (PGR) e dos Ministérios da Justiça, dos Povos Indígenas e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, além dos partidos políticos autores das ações e de representantes de entidades que atuam como terceiras interessadas na causa, como WWF e Greenpeace Brasil. A ideia era ter efeito prático, o que fez o ministro avisar, na ocasião que era para ninguém ir para a audiência de “mãos abanando”, como disse ao Meio uma fonte do Supremo. Na reunião, só a AGU foi representada por seu titular, ministro Jorge Messias. As demais pastas enviaram secretários executivos. O Meio Ambiente mandou o secretário João Paulo Capobianco.

Dino resolveu cobrar novamente o governo e marcou para o dia 19 de setembro uma nova audiência com representantes do governo federal e dos Estados que compreendem a Amazônia e o Pantanal. No dia 3 de setembro, Dino já havia definido o que queria que o governo respondesse, designando a AGU como responsável pelas respostas. Foram 9 perguntas encaminhadas pelo ministro sobre o plano de combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia. Entre elas, Dino quer saber se estava sendo criado e implementado o plano e quais medidas já estão sendo adotadas. O que foi feito para a recuperação da capacidade operacional do Prevfogo? Qual foi o incremento de pessoal nos próximos anos? Se existe um sistema nacional que faça a integração dos dados federais e estaduais? O ministro quer saber também a quantas anda a formação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um tema espinhoso para muitos ruralistas com mandato na Câmara e no Senado. Dino sabe que o CAR pode deixar explicitas pelas tecnologias de georeferenciamento situações de lavouras que avançam sobre terras indígenas ou áreas florestais, garimpo e até mesmo o local exato onde o fogo começa.

Para responder aos questionamento dos ministro, técnicos do governo chegaram a se reunir na última quarta-feira. Foi um encontro online. Em paralelo, na última quinta-feira, a Ministra do Meio Ambiente Marina Silva disse que prepara uma medida provisória para implementar o Estatuto Jurídico da Emergência Climática. “Ele embute a ideia de uma emergência climática permanente. Vai prever, nas regiões identificadas pelo Cemaden como suscetíveis a crises climáticas, a possibilidade de que seja decretada situação de emergência antes de o desastre acontecer”, disse Marina à CNN. Marina também quer uma medida para retirar do teto de gastos despesas com emergências climáticas, seguindo o exemplo do que ocorreu com o Rio Grande do Sul nas cheias que atingiram todo Estado. Além disso, só agora o governo anunciou a decisão de se criar de uma autoridade climática, promessa de campanha de Lula.

Ao olhar para como o governo tem se comportado em relação aos temas ambientais, é possível levantar algumas dúvidas de se terá capacidade de levar a cabo esses planos. A primeira é uma questão orçamentária. O governo teria como custear essas ações? A segunda é de visão. Nesta semana, ao lado de Marina Silva, em Porto Velho Lula disse que vai retomar as obras da rodovia BR-319, que liga Porto Velho a Manaus. Um obra que começa em 1970, idealizada pelo governo militar. A justificativa é a seca do Rio Madeira, e a impossibilidade do transporte fluvial.

Além disso, o quanto um pensamento voltado para extração de combustíveis fósseis, como a defesa do presidente de explorar petróleo na bacia da Foz do Amazonas, está alinhado às necessidades reais de mitigação dos efeitos do aquecimento global?

Preparando o futuro

Quando pensamos nas questões climáticas, existe uma certeza: não há respostas fáceis para problemas complexos. Entretanto, a ciência tem dado subsídios para que se saiba com bastante precisão os custos da negligência com o aquecimento global. E os chefes de Estado sabem. Sabiam em 1992, no Rio de Janeiro, quando participaram da Eco-92, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento e ratificaram a Agenda 21. Os principais pontos eram, basicamente, implementar mudanças necessárias aos padrões de consumo, a proteção dos recursos naturais e o desenvolvimento de tecnologias capazes de reforçar a gestão ambiental dos países. Durante a conferência, outros tratados foram firmados, como as convenções da Biodiversidade, das Mudanças Climáticas e da Desertificação, a Carta da Terra, a Declaração sobre Florestas. Se o que foi discutido lá tivesse sido posto em prática, não estaríamos na situação em que estamos hoje.

Desde a Eco-92, são realizadas as COPs,  ou conferência das partes, encontros entre os países os signatários da convenção de mudanças climáticas. A próxima acontece em novembro, em Baku, no Azerbaijão. Se sabemos e acompanhamos de perto os efeitos das mudanças climáticas, por que não conseguimos de fato seguir o princípio da precaução e manter a meta do aquecimento global abaixo dos 2ºC até 2030, estipulada no Acordo de Paris?

O economista e ambientalista Sérgio Besserman, que, na semana que vem estreia o  novo curso do Meio “Crise Climática: A História do Século 21”, tem claro que não vamos cumprir o Acordo de Paris. Ele lista uma série de fatores que seriam necessários para diminuir as emissões de gases do efeito estufa, lembrando que, mesmo que parássemos totalmente as emissões, o que é impossível, o problema ainda seria sentido porque a questão “não é o fluxo de gases, mas o estoque”.

Um primeiro ponto é ter uma governança global. Não um governo global, ele frisa, mas um organismo internacional com poder de aplicar sanções, de deliberar em nome dos países e cobrar o cumprimento de metas. O segundo ponto seria obviamente a transição das matrizes energéticas abandonando os combustíveis fósseis. “Você pode até ter uma mar de petróleo, mas é areia, porque aquilo não vale mais nada porque não pode ser usado”. Um terceiro seria uma mudança de cultura em relação ao consumo: produzir menos, comprar menos, comer menos carne, por exemplo. “Nós temos todas as possibilidades tecnológicas e de engenharia social. Podemos criar sistemas de incentivos e desincentivos para mudar a cultura”, diz, em um momento otimista.

Hoje, pensando em como a sociedade está estruturada, é muito difícil acreditar em uma mudança significativa. “Quem comanda o mundo hoje, sejam os chefes-de estado, sejam os CEOs das grandes empresas, são pessoas com mais de 50 anos, que estão mais preocupadas com as eleições próximas e com seus bônus do que com o futuro. Não existe esse espaço decisório para que se possa reverter essa questão em um curto espaço de tempo”, argumenta.

Para entender como estamos hoje, ele usa uma metáfora. Você está em um carro prestes a fazer uma curva. Se a fizer a menos de 120 km/h, todos se salvam ilesos. “Hoje estamos a 460 km/h, se cumprirmos todas as promessas feitas, o carro desacelera para 240k/h. Ainda vamos todos cair na ribanceira.”

E ainda ressalta que nos últimos cinco anos, a realidade tem superado as previsões. “O mais recente relatório da IPCC foi muito contundente, muito explícito e acusado de catastrofismo. Mas muita coisa que a era para acontecer daqui a 15, 20 anos, está acontecendo agora”, diz citando, por exemplo, o aumento das ondas de calor.

A mesma percepção tem uma das maiores autoridades em clima no Brasil, o climatologista Carlos Nobre, que construiu sua carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e foi diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Em entrevista ao Estadão nesta semana, ele diz “A crise explodiu. Temos a maior temperatura que o planeta experimentou em 100 mil anos. Desde que existem civilizações, há dez mil anos, nunca chegamos nesse nível, em que todos os eventos climáticos se tornaram tão intensos e muito mais frequentes. São secas em todo o mundo, tempestades, ressacas e, agora, a explosão desses incêndios”.

Ele afirma também que todos os biomas brasileiros estão ameaçados. Se continuarmos nesse ritmo de desmatamento, ele acredita que não teremos mais Pantanal em 2070 e a Amazônia irá perder 50% da área de floresta até o mesmo ano, além de a Caatinga avançar sobre o Cerrado.

Olhando por esse prisma, o que acontece neste ano no Brasil, seja agora com as queimadas, seja nas chuvas do Rio Grande do Sul em maio, são alertas muito contundentes. Mantendo esse ritmo de emissão de gases do efeito estufa, a estimativa mais conservadora apontada por Besserman é termos 350 milhões de migrantes ambientais até 2060 e, para completar o quadro distópico, ele diz que a diferença do aumento de 0,5 ºC  da temperatura mundial significa em número de mortos o equivalente a 65 holocautsos. “Só não sei se consideram holocausto 6 milhões de judeus mortos ou os 65 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial”.  Independentemente de quais forem, não é fácil ignorar esses números.

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