Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

Fernanda Torres é o nosso Oscar

Este artigo é exclusivo para os assinantes premium do Meio. Foi aberto a todos em comemoração ao nosso aniversário de oito anos. Se você gostar e quiser ler e receber todo nosso conteúdo exclusivo, assine o Meio Premium.

Começou em Veneza, há três meses, naqueles dez minutos de aclamação após a estreia no Palazzo del Cinema. Fernanda Torres, de pé e mãos dadas com Walter Salles e Selton Mello, os olhos marejados, encarava seriamente a plateia. Algo começava a mudar em sua vida naquele momento, embora ela não soubesse. Logo após a sessão, sua atuação em Ainda Estou Aqui rompeu a misteriosa barreira que separa o Brasil do mundo e virou assunto em jornais, revistas, sites e emissoras estrangeiros. A revista Variety a definiu como “soberba” e considerou o filme “profundamente pungente”. Elogios ao seu trabalho começaram a se enfileirar: “espetacular” (IndieWire), “extraordinário” (Hollywood Reporter), “incrível” (Guardian), “maravilhoso” (Time Out).

À estreia na Itália seguiu-se o que todos sabem: o filme foi aplaudido com paixão em Toronto, Nova York, Londres, Los Angeles e São Paulo antes de entrar em cartaz em 610 salas de cinema do Brasil inteiro. Número inferior ao de salas de blockbusters como Venom 3 e Gladiador 2 – e, mesmo assim, tornou-se a obra mais vista do país, com dois milhões de espectadores alcançados nesta sexta-feira. Ainda Estou Aqui já é um fenômeno cultural. O livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme passou a liderar a lista de mais vendidos da Amazon. Erasmo Carlos, que embala a trilha sonora com É preciso dar um jeito, meu amigo, foi redescoberto – sexto lugar na lista de músicas que viralizaram no Spotify brasileiro e quarto no ranking do aplicativo Shazam. E a peregrinação de Fernanda está longe do fim.

“Hoje estou em São Paulo em uma reunião, gravo dois comerciais, volto para o Rio e embarco para Londres, Paris, Madri e Lisboa antes do Natal. E dia 2 de janeiro já pego um avião para Los Angeles de novo”, disse ao Meio, antes de brincar falando sério. “Minha cabeça está fundindo.” Não é exagero dizer que Ainda Estou Aqui já é um divisor de águas na carreira da atriz que o Brasil viu pela primeira vez aos 13 anos, no dia 30 de julho de 1979, em uma edição do programa Aplauso, que adaptava peças de teatro para a TV Globo. Nanda, como é chamada por amigos, quis ser engenheira, sonhou com medicina, mas acabou “forçada a ser atriz”, como comentou esses dias nos Estados Unidos, pois sua mãe a obrigava a ir ao teatro – o país agradece, Fernanda Montenegro.

Talvez o brasileiro não tivesse a medida exata de sua admiração por Fernanda Torres. Agora está claro: é amor, amor grande. Oscarito disse uma vez que “nunca deixamos de amar quem nos faz rir”. E ela fez este país rir tanto que muitos achavam que ela era humorista. Como Vani, em Os Normais, e Fátima, em Tapas & Beijos, fez sucesso com pessoas de todas as idades e em décadas diferentes, tornando-se um nome popular já na primeira temporada ao lado de Luiz Fernando Guimarães, em 2001. Quem viveu aquela época, sabe: as pessoas combinavam de sair mais tarde às sextas-feiras para não perder a dupla na série escrita por Alexandre Cardoso e Fernanda Young. Antes de provocar risos na TV, criou outras emoções no cinema, como em Eu Sei que Vou te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, quando ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes aos 21 anos – glória nunca repetida por uma brasileira. Também emocionou o público nos dois primeiros filmes que fez com Walter Salles – codirigidos por Daniela Thomas –, Terra Estrangeira (1995) e O Primeiro Dia (1998), e também no belo Casa de Areia (2005), de Andrucha Waddington, seu marido.

Dona de uma obra plural como atriz, tornou-se uma usina de memes na internet quando já era também uma escritora consagrada, com mais de 200 mil exemplares vendidos em sete países com seu livro de estreia, Fim, lançado como série de ficção em 2023 pelo Globoplay. Os memes, “forma superior de arte” segundo ela, começaram a surgir tanto por cenas marcantes de suas personagens – como Vani batendo panela e cantando “vou transar, vou transar” – como por frases sacadas num átimo em entrevistas. Um repórter lhe perguntou em dezembro de 2022, após sua participação no festival CCPX: “Como você se sente participando do maior evento de cultura pop do mundo e sendo aclamada assim pelos personagens que você fez?”. A resposta veio na ponta da língua: “Eu me sinto Pikachu”. Também é inesquecível sua participação em um programa do Serginho Groisman cantando Vapor Barato, música da cena mais lembrada de Terra Estrangeira, e os comentários que ouviu no dia seguinte – disseram que ela estava “to-tal-men-te drogada”, embora fosse apenas uma mãe cansada, preocupada com sua cria e com o bondinho do Pão de Açúcar (onde foi a gravação), como contou anos depois, em 2019, ao apresentador Fábio Porchat. Basta digitar seu nome no TikTok ou YouTube e comprovar: é a rainha dos memes.

O encontro desse amor antigo que os brasileiros têm por Fernanda com a interpretação comovente e delicada que ela faz de Eunice Paiva – advogada, defensora dos povos originários, mãe de cinco filhos, esposa de Rubens Paiva, mulher que lutou contra a ditadura militar – fez o país abraçar a missão do filme para chegar ao Oscar. Tarefa que consiste em fazer a obra ser vista em sessões organizadas para pessoas estratégicas – leia-se votantes do maior prêmio do cinema mundial. Em um post no Instagram da Academy Awards, responsável pela premiação, uma foto sua ganhou quase três milhões de curtidas, engajamento centenas de vezes maior que o gerado por imagens de outras estrelas.

Há também um inegável desejo de vingança por sua mãe não ter vencido o prêmio de melhor atriz com Central do Brasil, a obra-prima de Salles que mora no coração do país. Fernanda examina com cuidado o maior anseio da nação no momento: “É preciso reduzir as expectativas e entender que estar lá [ser finalista do Oscar, o que só será descoberto no dia 17 de janeiro] já é uma vitória para um filme falado em português. Isso já é furar uma bolha”, disse em entrevista à repórter Maria Fortuna, do jornal O Globo. “O não é certo. É com ele que eu lido. Se não, depois, um filme maravilhoso que você faz vira uma decepção.” Na mesma conversa, contou que, com tantas viagens e red carpets, ultimamente só pensa em looks. “Meu trabalho virou maquiagem, cabelo e look.” E voltou a falar sobre o Oscar em coletiva recente, arrancando risos para variar: “Pode estourar champanhe, vai pra lá sem expectativa porque não vai levar. Só explicar isso para as pessoas já ficarem contentes.”

No dia em que assisti ao filme no Cine Odeon, na Cinelândia, Rio de Janeiro – um cinema longe de casa porque todos os mais próximos não tinham mais ingressos –, fiquei emocionado em muitas cenas. É um filme que se divide em dois momentos: o primeiro de luz e alegria, de uma casa à beira-mar sempre aberta e reluzente; o segundo, radicalmente oposto, é de silêncio, ausência e escuridão, que tem como cena-símbolo as janelas da casa sendo fechadas por agentes da repressão, após Rubens Paiva ser levado para sempre. O som das cortinas é cortante como uma faca afiada. Muda diante do terror, Fernanda diz tudo com o olhar – a emoção contida elevada a uma altíssima potência. A cena da foto, em que Eunice/Fernanda diz para seus filhos sorrirem – quando o fotógrafo da Manchete queria uma imagem mais triste –, foi construída por ela. O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega indicava que a personagem já chegava para a foto decidida a sorrir.

Estranho sair do Odeon após a sessão na Cinelândia noturna e nublada. Aquela praça histórica no Centro do Rio foi palco de muitas dores nos anos de chumbo, como o velório do estudante Edson Luís, em 1968, assassinado ali perto, no Calabouço. Cinquenta anos depois, em 2018, a vereadora Marielle Franco foi velada no mesmo prédio, sede do parlamento municipal, após ser executada por matadores de aluguel em um crime encomendado, pelo que indica a investigação da Polícia Federal, por dois políticos e um delegado. O Brasil que hoje abraça Ainda Estou Aqui é o mesmo que, no ano em que Marielle foi morta, elegeu um presidente um fã de torturadores. Mesmo país que, há apenas dois anos, quase sofreu um novo golpe militar, com detalhes revelados há poucos dias. Walter Salles demorou 12 anos para voltar a dirigir um filme de ficção, mas o timing do projeto escolhido não poderia ter sido mais exato.

O Oscar será entregue no dia 2 de março de 2025. Nada menos que um domingo de Carnaval. Ainda Estou Aqui está inscrito em oito categorias, entre elas melhor filme estrangeiro, melhor diretor e, claro, melhor atriz. Se o sonho brasileiro se realizar, os blocos de rua tocarão Tremendão. Beberemos até o amanhecer e brindaremos, to-tal-mente drogados, o cinema nacional do qual Fernanda, Walter e Selton são parte tão importante. Sentiremos alguma justiça nas leis do universo, saudaremos Xangô por ela e Exu pelos caminhos abertos. Buscaremos Nanda no aeroporto e a levaremos nos ombros, em um cortejo desvairado do Galeão à sua casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Cantaremos alto que “é preciso dar um jeito, meu amigo” em homenagem a Eunice, Rubens e cada um dos 434 mortos e desaparecidos na ditadura, e aos milhares de torturados com suas cicatrizes visíveis e invisíveis. E se a estatueta de 34 centímetros não vier, pouco importa. Fernanda Torres é nossa.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.