Feito por amor
Los Angeles, fim dos anos 1980. No pequeno apartamento do DJ Matt Dike, que abrigava mais discos de vinil do que móveis, um jovem brasileiro nascido em São Paulo mas criado na cidade dos anjos montava seu primeiro estúdio em Hollywood. Matt tinha comprado uma bateria eletrônica com sampler, a E-mu Sp-12, que permitia samplear 5 segundos de música, e Mario Caldato Jr já era dono de um gravador de rolo e alguns equipamentos de gravação. Mais do que isso, meio nerd, já entendia o processo de gravar discos de vinil e sabia como deixar o som bom para a pista. As produções que Mario e Matt faziam eram funcionais. Tinham de bater bem na pista de dança, nos clubes que tocavam hip-hop em uma época em que o som da Costa Leste ainda não era dominado pelo gangsta rap de Dr. Dre e Snoop Dogg.
“Matt tinha um monte de discos, e foi muito inspirado pelo Rick Rubin, por essa mistura de rap e rock. A gente ficava sampleando de tudo, umas guitarras do Van Halen, uns trechos dos Rolling Stones e montava as bases”, conta Mario enquanto almoça no fim de tarde em uma padaria no Bexiga, em São Paulo. Ele está acompanhado de sua mulher Samantha Caldato, e os dois conversaram com o Meio pouco antes de assistir a um show no Teatro Oficina.
Com esse estúdio minimalista montado e tendo aprendido o necessário para prensar singles de vinil de 12 polegadas para tocar na balada, eles começam a assinar uma série de produções, que acabam sendo lançadas pelo selo independente Delicious Vynil, parceria com um terceiro amigo, Michael Ross. Mike e Mario criavam as bases e chamavam rappers para colocar a voz. Muitas vezes orientando sobre o que rimar. E logo de cara conseguiram emplacar hit em cima de hit.
Quem passasse pelo pequeno apartamento não imaginaria que anos depois aquelas produções caseiras, que emprestavam do punk rock o ethos do faça você mesmo, seriam a base para uma carreira repleta de discos de platina, de artistas como Beastie Boys, Björk, Beck, Jack Johnson, sem falar de brasileiros como Marcelo D2, Nação Zumbi e Seu Jorge.
Os responsáveis pela explosão de Mario na produção e na mixagem de discos são sem dúvida os Beastie Boys. Mike, Mario e os Dust Brothers produzem Paul’s Boutique, o segundo álbum do grupo, para muitos um dos pontos altos da carreira desses inquietos exploradores dos limites do hip-hop e rock’n’roll. Os Beastie Boys tinham mudado para Los Angeles e trocado de gravadora. Deixaram a Def Jam para trás e conseguiram um contrato de três discos com a Capitol. Nessa mudança, Adam Horovitz foi parar no apartamento de Mike e ficou maluco com as produções deles. Os Beastie Boys tinham total autonomia sobre o contrato, e conseguiram chamá-los para o time de produção.
“Eles tinham contrato para três discos e um budget fechado. Ninguém na gravadora estava dando muita bola para eles, então eles tinham muita liberdade”, lembra Mario. “Para a sequência de Paul’s Boutique eu dei uma ideia de eles alugarem uma casa, em vez de pagar estúdio”. E foi o que fizeram, alugaram uma casa com quadra de basquete e montaram o estúdio por lá, em vez de gastar um mês de estúdio, dava para pagar um ano de aluguel da casa. Um dia, Mario chamou seu amigo carpinteiro e ex-companheiro de banda na adolescência Money Mark para arrumar o portão de madeira da casa. Mark levou seu teclado e eles começaram a mesclar jams com partidas de basquete. A sacada de gênio do disco seguinte dos Beastie Boys foi usar como samples trechos dessas sessões instrumentais. No disco anterior, eles haviam pago uma fortuna para bancar os samples das bases criadas pelos Dust Brothers. Depois de 3 anos saiu Check Your Head, marcando uma outra virada no som dos Beastie Boys e consolidando Mario como o produtor dos melhores discos da banda. O resto é história e nos traz para o momento atual.
Do pequeno estúdio numa sala no Santa Monica Boulevard, em Hollywood, corta para hoje, em que Mario tem um estúdio dos sonhos, montado no terreno vizinho à sua casa em Los Angeles. “O Mario chegou em um momento da carreira dele que pode escolher o que quer fazer, e faz o que dá mais tesão”, diz Samantha para introduzir a mais nova paixão do casal, o selo Amor in Sound. Carioca, cellista que tocou no trio de Black Alien, criadora de hortas urbanas, Samantha é quem puxa a conversa sobre o selo. “Nos últimos anos, o Mario veio mais ao Brasil e acabou gostando da pluralidade, da musicalidade daqui”, diz. “Muitos artistas queriam fazer coisas com ele, mas os projetos não viravam”, completa. Agora, com o selo eles conseguem ter controle total sobre os projetos e apostar naquilo que realmente gostam.
O primeiro lançamento do selo foi de um monumento da música negra do Brasil, o disco que comemora os 80 anos da Orquestra Afro-Brasileira, depois eles gravaram em Los Angeles um grupo de jazz gospel, Jimetta Rose & The Voices of Creation, e agora acabam de lançar o novo álbum do sambista carioca Alvaro Lancellotti, Arruda, Alfazema e Guiné. É um trabalho que mergulha no som do candomblé para trazer essa dimensão espiritual da música de percussão, influenciado tanto pelos experimentos de Pedro Santos e do seminal Krishnanda, de 1968, quanto das cantigas de terreiros.
Nos planos futuros, estão regravar faixas clássicas dos Tincoãs, grupo baiano que fez uma aproximação com o som da África nos anos 1970. Mateus Aleluia, líder dos Tincoãs, inclusive participa do disco de Alvaro Lancellotti. O que o casal tem vontade de lançar? “Basicamente música negra, da diáspora, dos tambores”, diz Mario, apontando para onde o coração deve levar o Amor in Sound.