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Cinco dias na Ucrânia

Artem foi o único a brindar com um copo de água. O vinho branco, nacional e fresco, foi a escolha dos demais na noite quente de 26 de agosto. A Ucrânia havia passado, naquela manhã, pelo maior ataque aéreo da Rússia desde 24 de fevereiro de 2022. Mais de 200 mísseis e drones atingiram Kiev, Kharkiv e ao menos outras 13 regiões do país. Boa parte da capital ficou no escuro — mas os geradores davam conta de iluminar um restaurante aqui, um bar acolá. Naquela mesa onde Artem se mantinha abstêmio, a luz amarelada emprestava um ar boêmio e refinado ao salão, repleto de gente elegante e aparentemente leve. No cardápio, uma fartura digna da rica terra negra cobiçada por toda a Europa, do país que é comumente chamado de “celeiro” do continente. Kiev é uma cidade cosmopolita. Lindíssima. Verde, no verão. Por vários minutos, quase é possível esquecer que a Ucrânia está invadida pela Rússia. Até que o celular de alguém denuncia o alerta permanente, com o som de uma sirene que avisa que a província está sob ataque. Os moradores, em seu 914º dia de guerra, ignoram os alarmes: aprenderam a discernir o perigo real para decidir quando, de fato, abrigar-se em um bunker. Artem hesita, mas admite: “Eu não estou bebendo. Por causa da depressão”.

Filósofo, jornalista, escritor, tradutor de Noam Chomsky e Mahatma Gandhi para o ucraniano, pacifista transformado em soldado do Exército de Volodymyr Zelensky, Artem Chapeye não se encaixa no estereótipo de um militar. “Eu sou de esquerda. E, para mim, era uma questão de se eu agiria ou não de acordo com as minhas convicções. Decidi que não usaria meus privilégios para escapar da guerra. Na maioria dos conflitos, são principalmente as pessoas que não têm escolha que acabam envolvidas.” Artem, como a maioria dos ucranianos, conta o começo da guerra em 2014, com a anexação da Crimeia. Eles chamam essa nova etapa, a partir de 2022, de “a grande invasão” ou “a guerra em larga escala”. Naquela primeira fase, o escritor considerava o conflito mais regional, e se manteve apenas como “observador”. No dia da invasão, em 2022, Artem levou a mulher e seus dois filhos pequenos para o Oeste, para que eles viajassem para a Alemanha, e em seguida se apresentou às Forças Armadas para lutar. Esteve na linha de frente por um ano e meio. Há alguns meses, absorto pela saudade da família, pediu transferência para Kiev, onde segue na ativa, mas em funções administrativas. “No fim, acabei usando meu privilégio também.”

Artem é um autor celebrado. Das trincheiras, chegou a dar entrevista para a New Yorker sobre um conto que escrevera em 2018 e em que descreve ternamente uma Ucrânia com tudo que ela tem de negativo, mas como justamente esses traços a tornam apaixonante. Assim como os demais ucranianos naquele jantar, ele está convencido de que a guerra da Rússia é contra a cultura de seu país, a identidade dessa nação historicamente ocupada, disputada, subjugada. Artem é um dos conselheiros da PEN Ukraine, organização que convidou a reportagem para viajar à Ucrânia e que é parte de uma rede de entidades que trabalham arduamente para promover a noção de que o país é mais do que a extensão de qualquer império. Um esforço que se mistura ao de “memorializar” a guerra atual enquanto ela ainda se desenrola — e que, inevitavelmente, tomará parte dessa identidade.

Visitar um país em guerra a convite de uma instituição com esse tipo de agenda apresenta um dilema ao jornalista. Fica patente que o que está sendo apresentado é um recorte, uma visão ampliada por uma lupa. Tudo que está aumentado ali é absolutamente verdadeiro. Ainda assim, um recorte. A PEN Ukraine é uma ONG de escritores, poetas, cineastas, jornalistas, tradutores e fotógrafos ucranianos. Existe desde 1989, muito antes do início dessa guerra. Está num empenho legítimo de estabelecer uma conexão desses intelectuais com o mundo, especialmente com a opinião pública do Sul global, onde Zelensky não é muito popular e a influência russa e chinesa é mais sentida. É com essa lupa, mas buscando alcançar além dela, que esta reportagem narra alguns dos principais momentos desses cinco dias de visita à Ucrânia. A primeira parte, em Kiev. A segunda, nas frentes de batalha que já foram retomadas. Imagens produzidas ao longo dessa viagem podem ser vistas no Instagram do Meio.

DIA 1 – Que país é esse?

Chegar a Kiev partindo do Brasil é uma empreitada que consome ao menos dois dias e duas noites. O espaço aéreo da Ucrânia está fechado para voos comerciais. O trajeto se dá principalmente por trem — a malha ferroviária do país, herança dos tempos de domínio soviético, é ampla. Um dos caminhos possíveis é a partir de Chelm, cidade polonesa a 21 quilômetros da fronteira. Atravessar essa metade da Ucrânia é percorrer a fatia “ocidentalizada”, sob forte influência da Polônia, da União Europeia. O ucraniano falado ali tem traços do polonês. Alguns pratos mudam somente de nome: o pierogi polonês é o vareniki ucraniano. Reflexo de um tempo de disputa. Depois da dissolução do império austro-húngaro, no começo do século 20, a Polônia ocupou o pedaço conhecido como Galícia ucraniana. Na metade de lá, onde estão Donetsk e Lugansk, a mistura com os russos prevaleceu. Ao Sul, há uma forte influência turca e os povos tártaros habitam a Crimeia, balneário que contém também um porto valiosíssimo, que garante uma saída pelo Mar Negro para a Rússia.

Como explica Anna Reid em seu excelente livro Borderland (sem tradução para o português), Ukraina quer dizer “na borda” ou “na fronteira”. “Plana, fértil e fatalmente tentadora para invasores, a Ucrânia foi dividida entre Rússia e Polônia da metade do século 17 até o fim do 18, entre Rússia e Áustria no século 19, e entre Rússia, Polônia, Checoslováquia e Romênia entre as duas guerras mundiais. Até a queda da União Soviética em 1991, ela nunca havia sido uma nação independente.” Com um passado assim, com “rebeliões, conflitos armados, pogroms, fome”, a história do país tem quase nenhum capítulo de paz e prosperidade, a autora ressalta. “Do século 10 ao 13, Kiev foi a capital da primeira grande civilização dos eslavos orientais, a Kiev Rus. E aqui a batalha por uma identidade da Ucrânia começa. (…) A civilização Kiev Rus foi transmitida para o Leste, para Moscou e os russos, ou ficou em seu lugar, na Ucrânia? ‘Se Moscou é o coração da Rússia’, diz um provérbio russo, ‘e São Petesburgo é seu cérebro, Kiev é sua mãe’. Os ucranianos, claro, dizem que Kiev não tem nada a ver com a Rússia — e, se ela é mãe de alguém, é dos próprios ucranianos.”

Kiev fica mais ou menos no meio da Ucrânia, mais ao Norte. O centro da cidade forma um triângulo de três pontos históricos fundamentais para se compreender as origens dessa nação e alguns dos traços basilares de seu povo. O Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas, esse da foto que ilustra esta reportagem, começou a ser erguido na Idade Média, de forma rudimentar. No século 11, foi ampliado por Esvetopolco 2º, príncipe de Kiev, para celebrar seu batismo. Os soviéticos consideraram que as modificações foram tantas ao longo dos anos que o prédio não merecia ser conservado e o botaram abaixo em 1930, erguendo em seu lugar, em 1934, o centro administrativo da República Socialista Soviética da Ucrânia. Algumas das obras da igreja foram levadas a museus russos.

Com a independência da URSS em 1991, a Ucrânia recuperou a catedral. E ela se tornou ainda mais simbólica quando em 2014, no levante que ficou conhecido como Revolução da Dignidade, os manifestantes pró-União Europeia e contra o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych se abrigaram ali para fugir dos cassetetes da polícia. (Para compreender o que foi esse episódio, assista ao espetacular documentário Winter on Fire, na Netflix). Hoje, do lado de fora do mosteiro, o muro é coberto de fotos dos soldados e agentes de segurança que morreram em combate desde 2014. Na praça diante dos domos dourados, tanques russos capturados ao longo da guerra simbolizam a resistência que Vladimir Putin não anteviu das forças ucranianas. O presidente russo declarava, em 2022, que tomaria o país em três dias. A guerra já dura dois anos e meio.

Na outra ponta da avenida está a Catedral Santa Sofia, erguida em 1037. É um monumento muitíssimo bem preservado, marcante, reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o que levou o governo ucraniano a pedir que a Rússia não o destruísse em seus ataques. E é uma das provas materiais da história original do país, que sobrevive a conquistadores e tiranos. Mais adiante, está a praça Maidan, cenário do massacre promovido por Yanukovych em 2014. Um obelisco altíssimo com uma garota com asas se apresenta como símbolo do povo ucraniano, tendo a seus pés bandeiras e flores em homenagem aos que morreram pela pátria. “Não acho que ela nos represente”, diz Anna Vovchenko, tradutora da PEN. “Respeito, claro. Só que, para mim, o que melhor traduz o que é ser ucraniano são as abelhas, que se unem por algo maior e lutam juntas.”

Naquela noite, Artem, já do lado de fora do restaurante, contribuía para essa imagem. Dizia que a tese de que os neonazistas estavam prontos para dominar a Ucrânia é forjada pelos russos e que esses grupos extremistas, como todos sabem, se relacionam internacionalmente. “Os nazis daqui eram íntimos dos nazis de lá, foram alimentados por eles. Mas são minoria da minoria. Com a invasão, o povo ucraniano se uniu contra os russos.” A versão oficial do Exército é de que os extremistas que sobraram entre os militares foram diluídos em diferentes batalhões, para que ideologias políticas não contaminassem as forças. Artem argumenta ainda que, diferentemente de outras potências, a Rússia não colonizou além-mar, mas vizinhos fronteiriços. Com isso, foi bem-sucedida em promover uma substituição populacional em diversos territórios, inclusive na Crimeia.

O escritor se incomoda com a noção de parte da esquerda internacional de que a Ucrânia é submissa aos desejos dos Estados Unidos. Alega que o país está pronto a aceitar ajuda de quem quer que seja, mas em nome de sua própria liberdade. “As teorias da conspiração da esquerda me magoam, todos querem estar certos, e ninguém nos ouve. A gente só quer ter a liberdade de cometer nossos próprios erros.” Naquela madrugada, as sirenes tocaram três vezes.

DIA 2 – A morte cultural

Ainda em Kiev, representantes de entidades de Direitos Humanos e de defesa da cultura ucraniana apresentavam seu caso numa manhã muito quente, em que a eletricidade era intermitente. Tetiana Pechonchyk, diretora da ZMINA, conta de uma pesquisa recorrente feita na Ucrânia para acessar os valores da população e suas preocupações. Ouvindo mais de 2.000 pessoas em todas as regiões livres do país, para sua surpresa, mesmo durante a guerra os ucranianos valorizam mais a liberdade (90,7% dos entrevistados) do que a segurança (79%). “É curioso que o termo ‘liberdade’ é o mesmo em ucraniano e em russo, mas seus significados são muito diferentes para cada cultura”, ela diz. “Para os russos, liberdade é caos. Para nós, é autodeterminação.”

Em seguida, é a vez de Halyna Chyzhyk, diretora-executiva da Lemkin Society, ONG fundada com o nome do criador do termo “genocídio”, Raphael Lemkin. Não é fácil avançar a causa de que a Rússia comete um genocídio cultural, nem mesmo entre aliados ocidentais. A resistência passa, claro, pelo fato de que quase toda potência global já cometeu algo assim, seja com populações indígenas e originárias em seus próprios territórios, seja em colônias distantes. Ainda assim, recorrendo aos conceitos de Lemkin, ela explica que a destruição completa de 116 museus e galerias e 131 bibliotecas pela Rússia até o momento é a definição clássica de extermínio cultural de uma nação. As estimativas são de 187 milhões de cópias de livros perdidas e mais de 100 mil artefatos de museus roubados só da cidade de Kherson.

Figuras relevantes da cultura ucraniana foram exterminadas, como o escritor de livros infantis Volodymyr Vakulenko, em Izium, e o maestro Yurii Kerpatenko, que se recusou a reger uma orquestra russa. Na véspera, Tetyana Teren, da PEN, já havia pontuado que 103 artistas ucranianos e 80 jornalistas, ucranianos e estrangeiros, foram mortos na guerra. Para concluir sua argumentação, Halyna fala ainda das mais de 700 mil crianças ucranianas que foram levadas para a Rússia, segundo o Kremlin — esse, sim, um exemplo de genocídio já aceito pela lei internacional.

Apesar disso, ou por causa disso, a premiada cineasta e poeta Iryna Tsilyk enxerga um renascimento cultural na Ucrânia. Nos encontros literários de que participa, diz que se sente uma rock star, atendendo a pedidos de selfies de jovens e recebendo plateias de quase mil pessoas. Tetyana também aponta que hoje há mais livrarias abertas no país do que antes da guerra — e que membros da PEN que antes escreviam em russo não o fazem mais. Se há um evidente interesse em literatura nacional, há também um claro impulso de renegar qualquer herança cultural russa. Nos cinco dias de viagem, só se ouviu música ucraniana, recente ou antiga, e os anfitriões fizeram sempre questão de frisar que não estão dispostos a valorizar nada que venha da Rússia, tidos como seus colonizadores. É uma posição que reflete bem o tipo complicado de nacionalismo que se engendra em tempos de guerra.

Naquela noite, partimos para Kharkiv, a 40 quilômetros da fronteira com a Rússia. Desembarcamos numa cidade totalmente escura. Mas as pessoas estavam sentadas nos bancos da praça diante da estação de trem, conversando na penumbra. Na plataforma, um homem pediu a namorada em casamento. A vida se reinventa na guerra.

DIA 3 – O fantasma do colaboracionismo

Passada a fase introdutória e mais teórica da visita, os membros da PEN nos levaram para ver mais de perto, ainda que em bastante segurança, as marcas da invasão russa.

A primeira parada foi Izium, na beirinha da fronteira com a região de Donetsk, totalmente ocupada pelo Exército de Putin. A pequena cidade ficou tomada pelos russos entre abril e agosto de 2022. Quando foi retomada pela Ucrânia, revelou-se cenário de uma prática cruel, dessas que só as guerras produzem: as covas coletivas. Foram 449 os corpos de ucranianos enterrados ali, na areia, sob árvores altas e atrás das trincheiras cavadas pelos russos para camuflar seus equipamentos e armamentos. Mas quem cavou as sepulturas foram os próprios ucranianos, parentes e amigos das vítimas — em troca de comida. Apesar de dois anos de libertação do local, a erosão não danificou esse cemitério a céu aberto e o cenário do crime de guerra está totalmente preservado. Uma placa foi colocada logo na entrada. O processo de memorializar a guerra enquanto ela acontece está bastante evidente ali.

Num outro canto da cidade, Halyna Ivanova, diretora de um pequeno museu, relembra os dias de ocupação com uma firmeza e serenidade notáveis. Articuladamente, reconta como foi “convidada” por um ex-aluno a colaborar com os russos na administração da cidade. Recusou-se, alegando estar doente. Antes de a invasão se completar, ela e os outros funcionários dos museus enterraram artefatos para escondê-los. Aos poucos, ela viu alguns de seus conhecidos da vila se incorporando às forças russas. Uns, sob a coação de uma arma. Outros, voluntariamente. “Não raro, justamente aqueles que se diziam mais patriotas“, ela ri com desdém. Agora, Halyna se empenha na construção de um “Museu da Ocupação”, com materiais coletados depois da retomada. Entre eles, fotos da passagem de um notório ultranacionalista russo, Zakhar Prilepin, que Halyna diz ser neonazista e querer transformar Izium num entreposto.

O eventual colaboracionismo de ucranianos com russos e a pecha de que há neonazistas do lado anti-Rússia são temas de profundo desconforto para os anfitriões. Até Halyna falar com naturalidade daqueles que, ainda que minoritários, realmente escolhem retornar para o domínio russo, o tom predominante foi o de que só se fazia isso à força. Ela sublinha que, quem assim o quiser, que vá morar na Rússia. Quando a jornalista Lesya Hanzha, feminista e hoje operadora de drones para o Exército ucraniano, chegou para nos dar uma entrevista, o pingente em seu colar fez os jornalistas brasileiros se entreolharem. Parecia uma suástica. “Foi por isso que o pessoal do Le Monde borrou minha foto”, ela lembra. Mas garante que o símbolo é o da folha de samambaia, a fern flower, tradicional dos contos eslavos. Perguntada sobre neonazistas e sobre os combatentes do Batalhão de Azov, notadamente ultranacionalistas, diz que, como militar da ativa, não pode comentar. Lesya se alistou motivada pela mãe. Mas pediu à filha, de 28 anos, que também queria lutar, que ficasse longe das batalhas.

Comunismo e nazismo são desses movimentos históricos que passaram por tanto revisionismo ao longo das últimas décadas e por tantas apropriações que levam, hoje, facções da extrema direita a se unir com facções de extrema esquerda, sem qualquer senso crítico, numa esquizofrenia ideológica. O imperialismo de Putin é relativizado por Jair Bolsonaro e PCO, sem escalas. Há um pedaço relevante da Ucrânia para quem comunismo é a lembrança de um pacto entre Josef Stálin e Adolf Hitler ou sinônimo puro e simples de Holodomor, a Grande Fome promovida por Stálin, que levou ao extermínio de algo entre 4 milhões e 7 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933.

É esse tipo de memória coletiva que levou Halyna Prudeus, uma senhora de 83 anos, a estocar comida no seu paupérrimo porão, na vila de Kamianka, próxima a Izium. Assim que nos vê, ela agarra a mão da repórter, e não larga por quase uma hora. Halyna chora. A dor dos dias em que passou trancada no depósito úmido e gelado, comendo enlatados, trancafiada com o filho, Sergii, sob intenso bombardeio, extravasa em lágrimas. A casa paupérrima contrasta com a memória da Kiev pujante e farta. O vilarejo aniquilado está repleto de minas e isolado parcialmente. Mas Halyna e Sergii não têm nem nunca tiveram para onde fugir. Halyna chora. Ela ensaia um sorriso quando posa para uma foto. Encontra forças para brincar: “Sou a mulher mais bonita de Kamianka”.

Kharkiv, ali pertinho, a segunda maior cidade da Ucrânia, é alvo constante de ataques russos. Principalmente depois da contraofensiva de Zelensky na região de Kursk. Dois dias depois, um míssil atingiu um prédio residencial e um playground. Uma criança que brincava no parquinho e outras cinco pessoas morreram.

DIAS 4 e 5 – O poder da memória

É difícil imaginar o quão perto os russos estiveram de entrar em Kiev até estar diante da ponte destruída que liga a capital a Irpin. Foi o próprio exército ucraniano que a bombardeou, para evitar que os russos atravessassem. Imagens do povo se equilibrando nos escombros para fugir rodaram o globo naqueles primeiros dias da guerra. Hoje, a ponte é como uma peça de museu a céu aberto, com bancos de madeira para quem quiser contemplar a paisagem bélica e um display com vídeos e fotos dos dias de êxodo. A decisão de não reconstruí-la — e erguer uma nova ao seu lado — é estratégica. Assim como a opção por manter os carros abandonados ou atacados na invasão empilhados numa espécie de cemitério de veículos. Uma fração do dinheiro que Zelensky recebe do Ocidente, principalmente de Estados Unidos e Reino Unido, está claramente aplicada nessa missão.

Da mesma maneira, Bucha, localidade vizinha que ficou conhecida por também abrigar o horror de um cemitério clandestino, está em processo acelerado de museificação. Os nomes dos corpos encontrados ali já estão gravados em painéis metálicos no local, assim como os dos desaparecidos na batalha travada na cidade. Uma escultura feita toda com restos de mísseis, bombas e balas traz a inscrição: “No iron is enough as our will is tough”. Borodyanka, a cidade que completa a trinca das cercanias de Kiev que estiveram sob domínio russo, tem um condomínio quase inteiro destruído, já em reconstrução, ladeado por uma obra do artista Banksy, isolada como uma Monalisa dessa guerra.

Reconstruir e preservar são ações que caminham juntas nesse momento da Ucrânia. E um dos recintos onde esse intento duplo e ambíguo mais se evidenciam é na vila de Yahidne, em Chernihiv, ao Norte da Ucrânia. Assim que chegamos lá, a luz acabou. O macabro tour pelo porão da escola do vilarejo foi feito nas sombras da lanterna de Ivan Polhui, espécie de curador desse subsolo tornado mausoléu. Ali, as forças russas prenderam 368 civis, incluindo 70 crianças, por 27 dias. Sem luz. Sem janelas. Com pouquíssima comida e água. Dez pessoas morreram — asfixiadas ou sem remédios. Não sem antes sofrerem violentas alucinações. Não havia espaço para deitar. Não havia banheiro. Os soldados russos, vindos de províncias remotas e inóspitas, evacuavam e urinavam no chão do andar de cima. Os dejetos respingavam nos prisioneiros. Uma refém conseguiu fazer fotos do horror. Nas paredes, as anotações de quem pereceu ali e de quantos dias de cativeiro haviam se passado.

Os restolhos de roupa, comida, de um jornal russo com notícias falsas, de livros e brinquedos infantis, tudo está etiquetado. Está sendo catalogado. As caminhas improvisadas para as crianças, o pequeno quarto onde um cadeirante se alojou com outras nove pessoas, que ficavam em pé. É quase inconcebível estar ali. Testemunhar o nível de monstruosidade que um ser humano pode infligir a outro. Do outro lado da rua, as casas, que haviam sido ocupadas por oficiais russos e foram totalmente desmanteladas na retomada, não existem mais. Foram substituídas por outras novinhas. Boa parte dos sobreviventes do porão de Yahidne retornou.

Não é certo que essa visita tenha ficado por último na programação com essa intenção. Mas depois de dias de gastronomia vibrante, conversas com intelectuais interessantes e engajados, apreciação da vida cultural, ainda que em frangalhos, a crueza daquele subsolo e a lembrança de que se trata de uma guerra brutal ficou lapidada. A viagem de volta ao Brasil começaria poucas horas depois.

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