Cálculo do futuro

Aos 16 anos, Gabriela Lewenfus sonhava ser bailarina. Pouco depois, pensou em Biologia. Na época do Enem, cogitou Engenharia Química, mas acabou optando por Biomedicina. Excelente aluna em matemática desde a escola, depois de dois anos de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, notou que ia muito bem nas aulas de cálculo. Sem paciência para horas de laboratório, decidiu mudar de curso. E escolheu o que até então jamais havia passado por sua cabeça: Matemática Aplicada. Apesar de o caminho até lá ter sido meio que por acaso, encontrou-se em uma área que oferece muito mais do que poderia imaginar. “Menina nunca pensa em matemática. E eu sempre fui muito boa nessa matéria, mas nunca pensei em fazer nada com isso. Se eu tivesse de escolher o curso agora, teria optado pela matemática desde o início.”

Muitos ainda pensam que fazer graduação em Matemática é sinônimo de lecionar para crianças e adolescentes agitados no Ensino Fundamental ou Médio. A licenciatura segue existindo e é necessária para a sociedade. Mas a realidade da profissão é muito mais ampla. A matemática está em tudo, e o campo é enorme. De petróleo e gás a softwares, conhecimentos matemáticos são necessários nas mais diferentes áreas.

Segundo o Occupational Outlook Handbook, do Escritório de Estatísticas de Trabalho dos Estados Unidos, o emprego global em profissões ligadas à matemática deve crescer mais rapidamente do que a média para todas as profissões de 2022 a 2032. Cerca de 33.500 vagas são projetadas a cada ano devido ao crescimento dos postos de trabalho e à necessidade de substituir trabalhadores que abandonarão suas profissões permanentemente. Nos EUA, o salário médio anual desse grupo que usa aritmética e aplica técnicas avançadas para fazer cálculos, analisar dados e resolver problemas era de US$ 101.460 em maio de 2023, mais que o dobro do salário anual médio para todas as ocupações, de US$ 48.060.

Gabriela, de 29 anos, tornou-se bacharel em Matemática Aplicada em 2018. Depois, fez mestrado em processamento de sinais, uma área da engenharia dominada por machine learning. “A área de ciência de dados geralmente é dominada por pessoas formadas em engenheira, ciência da computação, matemática ou estatística. Mas é perceptível que quem fez matemática ou estatística tem um desenvolvimento diferente. É mais fácil um matemático correr atrás da ciência da computação do que o contrário”, afirma a carioca, que vive em Portugal desde 2021 e trabalha como cientista de dados em uma companhia britânica de solução de software para pequenas e médias empresas, num time que conta com mais dois matemáticos e dois estatísticos. “Com a matemática é fácil porque toda a base de machine learning é o que a gente mais vê. Por isso, escolhi essa área.”

Danielli Sousa também sempre foi muito boa em matemática e adorava a disciplina. Mas não gostava de física nem química, necessárias na engenharia. Até que um professor apresentou a ela a graduação em Matemática. Ela cursou Estatística na Universidade de São Paulo. “Não é só ser professor, tem todo um outro mundo. Entrei sem ter a noção do que eu sairia, não existia o termo cientista de dados que tem hoje. Inteligência artificial era um ciborgue e não um algoritmo.”

Aos 34 anos, Danielli começou a carreira como estagiária em uma empresa de tecnologia com modelagem preditiva. Há três anos, trabalha na gigante americana de softwares Salesforce, que foca na solução de gerenciamento de relacionamento para aproximar empresas e pessoas. “Trabalho com uma plataforma de CRM (Customer Relationship Management ou Gestão de Relacionamento com o Cliente, em português) integrada que oferece uma visão única e compartilhada de cada cliente. Num universo multivariado de banco de dados, analiso e saio com as respostas para engajamento do cliente: com quem falar, quando e por onde. Tudo isso com base em probabilidade. Estudos falam que a percepção humana de regras de negócio atinge cinco características. Com inteligência artificial (IA), isso se expande para um mundo multivariado, com características mínimas, e saio com uma probabilidade. Também trabalho com IA generativa, que gera conteúdo em texto e imagem, e precisa de matemática por causa do algoritmo, que tem de ser treinado com as fontes de dados, com as especificidades do cliente”, explica.

Perspectivas de futuro

Entre 2012 e 2023, as áreas ligadas à matemática correspondiam a 4,6% do PIB do Brasil, envolvendo 7,4% dos trabalhadores do país, segundo a pesquisa Contribuição da Matemática para a Economia Brasileira, realizada pelo Itaú Social, com apoio do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Mas há espaço para crescer. E muito. Na França, levantamento semelhante, do Centro Nacional de Pesquisa Científica, mostra que, em 2022, os profissionais ligados à matemática somavam 10% dos trabalhadores e representavam 18% do PIB do país. Por aqui, os trabalhos relacionados à matemática estão mais concentrados nas áreas de serviços administrativos e de tecnologia da informação, enquanto no exterior estão voltados à inovação e ao desenvolvimento tecnológico.

E é nesse espaço para crescimento de atividades ligadas à matemática que as graduações estão atentas e preparadas para as novas demandas. Não à toa, o Impa abriu neste ano sua primeira turma de graduação, o Impa Tech. Com quatro anos de duração, o novo bacharelado tem o objetivo de formar profissionais capacitados para se inserirem no mercado de tecnologia e inovação.

“Se olharmos para os dados da pesquisa e virmos que o Brasil pode chegar a 16% do PIB com áreas ligadas à matemática, isso representa cerca de R$ 1 trilhão a mais por ano. É muito recurso para jogar fora. A formação em matemática é um problema econômico”, explica Marcelo Viana, diretor-geral do Impa, que em 2021 deu início ao projeto da graduação.

Inaugurado em abril passado, o Impa Tech ocupa um espaço moderno de 10 mil m², no Porto Maravalley, hub de tecnologia na região portuária do Rio de Janeiro. O projeto prevê que, até 2026, 30 startups e empresas do setor de tecnologia também estejam hospedadas ali, reunindo em um só lugar a academia e o mercado de trabalho. Vinte empresas já estão em processo de negociação.

Das 100 vagas oferecidas neste ano, 79 foram preenchidas por 68 alunos vindos de escolas públicas e 11, de privadas. Houve duas formas de ingresso. A maior parte das vagas (80) foi oferecida a alunos medalhistas nas olimpíadas de matemática (Obmep), física, química e informática. As outras 20 foram disponibilizadas com base na nota de matemática no Enem. Além disso, todos passaram por entrevista online.

Tomaz de Lucena Cavalcante, de 18 anos, conheceu o Impa Tech por indicação de uma professora de matemática da escola. Foi medalhista de ouro e prata na olimpíada de astronomia, não considerada na seleção, mas nunca chegou à segunda fase da Obmep. Por isso, achava totalmente improvável conseguir uma vaga. Mas os 958,6 pontos em matemática e suas tecnologias no Enem — a nota máxima na disciplina — garantiu que ele fizesse as malas e trocasse o Recife pelo Rio de Janeiro, deixando para trás a opção de Ciência da Computação na Universidade Federal de Pernambuco. “Para mim, era improvável, mas me inscrevi e aconteceu.”

Utilizar os resultados olímpicos como forma de seleção teve o objetivo de oferecer um acesso mais democrático ao Impa Tech, privilegiando o mérito de alunos majoritariamente da rede pública, como Tomaz. Mas estudar na Cidade Maravilhosa só foi possível porque o curso é gratuito e oferece a todos os alunos moradia e auxílio-alimentação e financeiro, custos que, no total, somam cerca de R$ 5.300 por mês, arcados pela Prefeitura do Rio de Janeiro e pelo governo federal. Hoje, os alunos estão hospedados em um hotel que fica em frente à faculdade. No ano que vem, vão se mudar para apartamentos da prefeitura.

“Desde 2005, a Obmep nos dá acesso aos jovens mais talentosos do país. E usamos isso como forma de seleção. Olimpíada é raciocínio, independe do estrato social, da escola”, diz Viana, reconhecendo que, apesar do talento matemático, os alunos chegaram com lacunas importantes de formação, como falta de aulas durante o Ensino Médio, de acesso a computador e de base sólida em inglês.

Tainá Drumond, de 19 anos, também é aluna do Impa Tech. Participou da primeira Obmep aos 12 anos, no 6° ano do Ensino Fundamental, que cursava na rede municipal de Belo Horizonte. Conquistou durante o período escolar três ouros e três pratas e uma bolsa de iniciação científica. Filha de uma motorista de ambulância e de um comerciante, precisava trabalhar durante a faculdade. Por isso, optou pelo curso noturno de Sistemas da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais. Mas seguiu de olho no edital de criação do Impa Tech. Incomodada com o viés de administração e computação da graduação que cursava, ela queria mais matemática. E não hesitou em deixar para trás dois semestres já completados para se inscrever no novo curso. “Fazer a seleção pelas medalhas foi algo muito legal, tem gente do país todo aqui.”

Esporte olímpico

A primeira prova da 19ª edição da Obmep acontece nesta terça-feira. E o concurso deste ano bateu dois recordes: maior número de escolas, com 56.513 instituições, em 5.564 cidades, o que representa uma cobertura de 99,9% dos municípios brasileiros. Ao todo, 18,5 milhões de estudantes do 6º ano ao 3º do Ensino Médio vão participar da maior competição científica do país. A segunda fase será em 19 de outubro e a divulgação dos vencedores, em 20 de dezembro. Serão distribuídas 8.450 medalhas nacionais, sendo 650 de ouro, 1.950 de prata e 5.850 de bronze, além de 51 mil certificados de menção honrosa. Quem conquista medalha nacional de ouro, prata ou bronze garante ingresso no Programa de Iniciação Científica Jr., que oferece aulas avançadas em matemática e uma bolsa de R$ 300 para estudantes de escolas públicas.

O objetivo do Impa Tech, explica Viana, é oferecer uma formação ampla, voltada à tecnologia e à inovação. “O mercado de trabalho está percebendo que, com formação em matemática, o profissional faz qualquer coisa. Matemática não é uma profissão, é uma vocação, é um talento. E o Brasil é carente de pessoas à vontade com a matemática. Há um espaço enorme para matemática em qualquer área: agricultura, IA, farmácia, aeronáutica”, afirma, destacando que a saúde é a grande fronteira da matemática. “Exames podem dizer muito mais do que os médicos são capazes de ler. Para ler os dados com IA.”

Necessidades de mercado

A UFRJ já está atenta a essas necessidades de mercado há mais de 20 anos. Felipe Acker, professor titular do Departamento de Matemática Aplicada da UFRJ, escreveu os projetos que levaram à criação dos cursos de Matemática Aplicada, em 2003, e de Engenharia Matemática, em 2020. Para ele, há um deslocamento da economia e das atividades de engenharia, que valoriza o conhecimento matemático.

“Há um mundo que se abriu para a matemática. A grande mudança é o computador, que permite tatear com velocidade incrível e não simplesmente calculando previamente para onde você vai. Certamente, há um deslocamento da economia e das atividades de engenharia mesmo. A engenharia do imaterial está muito viva hoje. Mesmo as tradicionais, como mecânica e civil, fazem software, criam modelos matemáticos para engenharia. Modelo matemático, simulação, testar hipóteses. Há um avanço enorme e está só começando”, diz Acker.

Hoje os alunos já têm os cursos de Matemática Aplicada e Engenharia da Matemática como primeira opção, segundo o professor da UFRJ. “Temos evasão e invasão. Não era usual engenharia mudar para matemática. E agora acontece.” Mas ainda existe uma cultura entre os engenheiros, que se consideram uma categoria acima. “Não chega a ser uma casta. Mas já vi ex-aluno de Matemática Aplicada na área de energia elétrica ter de brigar por remuneração igual. Essa visão tem mudado”, afirma.

Mas não é apenas com matemáticos em sala de aula que se vai gerar a riqueza potencial do país. É preciso que outras áreas se sintam à vontade com a matemática. “É necessário romper essa barreira. E a melhor maneira é pelo exemplo, mostrando que vale a pena conversar com matemáticos desde cedo”, defende Viana.

O Pisa, que avalia o desempenho de estudantes de 15 e 16 anos, é realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 81 países. A avaliação mais recente, de 2022, mostra que o Brasil registrou uma média de 379 pontos em matemática, 93 pontos abaixo da média da OCDE. Outro problema é alta taxa de evasão de jovens no Ensino Médio. Antes da pandemia de Covid-19, um a cada 10 jovens deixava a escola a cada ano no Ensino Médio. Cada jovem que não conclui o Ensino Médio deixa de receber em média R$ 154 mil, ao longo da vida, em razão de menores remunerações e de maior tempo em que passa desocupado. Quando contabilizados os efeitos indiretos da pior qualificação, o custo total de cada jovem evadido chega a R$ 395 mil. No total, são R$ 220 bilhões perdidos a cada ano ou 3,3% do PIB brasileiro. E muitos dos que ingressam no Ensino Médio têm de conviver com os prejuízos da sua formação anterior. No Brasil, apenas 41,4% dos estudantes que concluem o Ensino Fundamental o fazem com aprendizagem adequada em português e 24,4% em matemática.

Mudar na escola

Por isso, mudar a dinâmica na escola é essencial. O desafio do professor é apresentar em sala de aula para que serve aquele conteúdo que com o tempo vai ficando mais abstrato e manter a atenção. Para lidar com esse problema, a rede de escolas Firjan Sesi iniciou em 2012 em programa específico para matemática com o objetivo de tirar a cara de má e difícil da disciplina. A meta é fazer com que escolas, professores e alunos entendam a matemática de forma mais interativa e divertida. Para isso, materiais concretos, sólidos geométricos e digitais foram parar na sala de aula. A tecnologia também é uma aliada fortíssima, com plataforma de games para conceitos matemáticos e exercícios, tudo para ser mais dinâmico. A formação de professores é um outro desafio. Já que as licenciaturas em geral focam apenas na resolução de exercícios.

“E tem de ir muito além, é preciso reflexão, resolver problemas em vez de só repetir fórmulas para se chegar a resultados mais interessantes e ajudar os alunos a gostar mais da aula”, explica Vinícius Mano, gerente de Educação Básica da rede Firjan Sesi, que tem 17 escolas, com 12 mil alunos, sendo 6.300 no Ensino Médio.

De modo geral, a formação é considerada inadequada. “Há professores inseguros que repetem o que está no livro. Por isso, o livro didático é imprescindível no Brasil. A ideia de que a matemática é para fazer algo ou chegar a algo é mais ausente aqui do que nas principais instituições lá fora. É preciso ensinar em profundidade o que é necessário”, afirma Viana.

Outra ação adotada a partir de 2019 pelas escolas Firjan Sesi é o programa Math en Jeans em parceria com a França. Trata-se de uma estrutura de iniciação científica no Ensino Médio que permite que um grupo da escola tenha contato com professor da universidade, que mostra como é fazer pesquisa. “Tornando a matemática interessante, a gente consegue contribuir para que as universidades tenham bons alunos que vão para as engenharias, para a matemática, para as exatas. Não precisa ser um gênio, mas se empenhar”, diz Mano.

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