A vida no abrigo

Quem gostaria de aparecer no jornal de maior audiência do país durante uma tragédia? Quem desejaria conhecer pessoalmente o âncora do jornal a que assiste diariamente após perder a casa na maior enchente da história de sua cidade?

Luís Carlos Almeida dos Santos, na quarta-feira, 15 de maio, participou do estúdio, ao lado de William Bonner, do último Jornal Nacional a ser transmitido do Rio Grande do Sul. O aposentado de 75 anos havia conhecido o apresentador no dia 10, quando o telejornal foi apresentado do parque esportivo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde estão abrigadas as vítimas das enchentes, entre elas Luís. “Uma celebridade”, disse a Bonner ao encontrá-lo. Ao ir aos estúdios da RBS TV, afiliada da Globo em Porto Alegre, com a esposa Jurema Terezinha Ribeiro, o aposentado conheceu também apresentadores locais. “Terminou, bateram palma e tal. E aí teve uma sessão de fotos com todo mundo, até com a equipe da RBS. Pelo amor de Deus, até o William Bonner. Eu sempre conheci eles, sempre assisti. Fico até emocionado em conhecer pessoalmente”, relatou seu Luís. “Ainda comemos pizza”, completou.

Mais conhecido por Chamaco, Luís é um homem negro, alto, grisalho, com o cabelo baixo. Vaidoso, não gosta que o cabelo fique grande, pois, segundo ele, “fica sem corte”. No período em que está na PUCRS, um colega, como ele mesmo chama, do abrigo fez o corte. “Não gostei. Já disse para o meu filho que na próxima vez vamos em um barbeiro.”

Na quinta-feira, quando conversou com o Meio, não fazia nem 12 horas que havia aparecido em rede nacional e passado pelo momento de estrela. Chamaco não poupou elogios a Bonner. “Ele é um cara de presença, um cara bonito. Ele tá com o cabelo grisalho, mas é um cara que não perdeu o charme. Um cara simples.” Entretanto, Chamaco poderia estar descrevendo a si próprio. Elegante, estava vestindo uma calça preta, uma camisa listrada manga longa, abotoada até o colarinho e pulso. Sobre a camisa, um colete de lã, com uma estampa de losangos em diferentes tons de cinza e preto. O aposentado, que trabalhou por 16 anos entregando jornais, não passa despercebido. Em uma hora de conversa, funcionários da PUCRS, voluntários e abrigados passavam para cumprimentá-lo. “Está famoso, seu Luís”, era a frase mais ouvida.

Chamaco é um contador de histórias que, ao conversar, faz questão de chamar todos pelo nome. Se está narrando uma ida ao médico, ao dentista ou à fisioterapia, menciona o nome e o sobrenome do profissional. Busca na memória dias, meses e anos para que a história tenha o contexto completo. Gesticula ao falar e dá detalhes de como era a casa que morava com a mãe na infância, com o que brincava com o irmão e o amigo do irmão, como conheceu Jurema, sua companheira de 46 anos. Em determinados momentos pausa para buscar na lembrança e retoma dando ainda mais detalhes. Vai abrindo parênteses, relatando outros causos, mas nunca perde o fio da meada, vai finalizando todas até chegar à primeira.

“É uma novidade na minha vida. Uma novidade boa, né. Claro que eu não queria participar nesse momento, uma tragédia que tá acontecendo. Eu nunca tinha visto isso na minha vida. Eu não acreditei. Quando eu saí, dentro da minha casa não tinha água”, afirma. Chamaco não queria deixar a casa que mora há mais de 30 anos na Vila Farrapos, bairro também conhecido como Humaitá, na Zona Norte de Porto Alegre. Com um pouco de água no pátio, foi até a casa do vizinho João para ver como estava a situação. Com a roupa que saiu para a visita, chegou ao abrigo. Foram resgatados de barco. A prótese dentária ficou. “Deve estar boiando por lá”, lamenta. Na sexta, às 8h, consultaria no serviço odontológico oferecido pela PUCRS aos abrigados para refazê-la.

Vivendo no abrigo

São 258 abrigados que estão desde o dia 4 de maio no Parque Esportivo da PUCRS. Moradores da Vila Farrapos, bairro que fica no entorno da Arena do Grêmio, e moradores da Ilha da Pintada, localizada no bairro Arquipélago, localidades que ficam cerca de 10km distantes na geografia portoalegrense, agora dormem no mesmo espaço, compartilham banheiros, lugar no refeitório e a dor das perdas.

O que antes era uma quadra esportiva agora dá lugar às camas. São muitas, mas todas organizadas. Os edredons ficam dobrados e alocados na ponta. É comum ver livros e bíblias sobre os colchões. O presente de dia das mães, uma caixa rosa redonda que continha pantufas, bolos, doces e bijuterias e um balão com os dizeres “forte e corajosa”, enfeita as acomodações. Ao lado da cama, caixas de papelão ou sacos guardam as roupas. As redes no entorno da quadra transformaram-se em varais com toalhas e roupas íntimas. Próximo às redes, há ventiladores para auxiliar na secagem do vestuário. O gol de futsal também foi adaptado, em cima serve como um suporte para roupas e outros itens, e os colchões dispostos dentro dele.

São 56 crianças de zero a 12 anos e 28 adolescentes entre 13 e 18 que estão no alojamento. Os miúdos brincam com o que está disponível aos olhos. Pode ser a caneta e o bloquinho da repórter, os balões que estão espalhados pela quadra ou até os colchões para pular. Em uma lente macro, o mundo está colapsando e as crianças estão ali, brincando, alheias ao sofrimento e à incerteza que os pais carregam. Para o entretenimento, há disponível uma brinquedoteca, onde se encontram crianças vestidas de cinderela, ou desenhando e pintando super heróis, personagens de gibis e desenhos animados. A parede do espaço é tomada destes últimos. O brincar que leva para outros mundos.

“O brincar salva, é a base da saúde mental. Freud diz que as crianças brincam ativamente do que elas vivem passivamente. Só no brincar simbólico e livre é que elas conseguem fazer uma compreensão e dar sentido para o mundo. A criança vai construindo a possibilidade de esperança, de organização de sentimentos e ansiedade na medida que ela tenha um ambiente tranquilo e seguro para brincar. É isso que precisamos oferecer agora para elas: o ambiente. Depois, elas são potentes, capazes de agenciar essas forças”, explica a psicóloga Bianca Stock.

O mundo pode tudo é uma frase pintada em rosa por um dos adolescentes, em duas folhas de papel na horizontal, que está num mural na entrada do abrigo. Um pouco acima, está uma pintura do cavalo Caramelo em cima da casa em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre. O resgate do animal foi amplamente divulgado e acompanhado.

“Diante de cenários de desastre, calamidade e eventos traumáticos, as crianças elaboram e lidam de forma diferentes que os adultos, mesmo que atravessados pela mesma tragédia. As crianças também se reconhecem muito umas nas outras, por isso o brincar é importante, através dele muitas intervenções e conversas podem surgir por parte dos adultos com elas”, complementa a psicóloga clínica e social, Giany Morigi Bortolozzo.

No 3º andar do parque estão instalados e separados em salas os cerca de 60 cachorros, gatos e os dois porquinhos da índia. Há horário para os tutores visitarem os felinos e os donos buscam os cães para passear na área externa. Há também a sala com o aviso “Cão solto e brabo”.

Henrique da Silva, 55 anos, demorou para sair de casa na Ilha da Pintada principalmente por conta dos cachorros. Ao sair, colocou os cinco em cima do telhado. Quatro se salvaram, segundo ele, o filhote ele acredita que não conseguiu se manter no telhado e caiu na água. Abrigado na PUCRS desde o dia 4, tem a cama posicionada logo na entrada da quadra, perto dos vizinhos da Ilha. A região é alagadiça, mas até então, a casa que mora com a filha mais nova e a casa da filha mais velha, situada no mesmo terreno, não tinham sido atingidas nessa magnitude. Havia perdido um guarda roupa, conta. Subia as camas e estava dada a solução. “Desta vez, fui dormir e acordei com a cama boiando”, relembra.

Ele já havia ordenado às filhas que saíssem, pois percebeu que a água estava invadindo. Ao ver que a água subia rápido, foi até a casa de dois andares de um amigo e vizinho. Abrigaram-se no segundo andar, então, foram obrigados a colocar uma roupa vermelha na janela para sinalizar que ali havia pessoas precisando de resgate. Os vizinhos foram resgatados de jetski. Passou uma semana sem comunicação com as filhas, aflito para saber se estavam bem.

Henrique é um homem branco, de média a baixa estatura e usa um boné com a aba para frente. É comunicativo, tenta transparecer tranquilidade ao falar, mas a voz também não esconde as aflições que sente. Conta que trabalha há 21 anos em uma tradicional peixaria do Mercado Público de Porto Alegre. Mesmo com tanta experiência, diz que sempre é possível aprender algo a mais. O Mercado também foi invadido pela água e está inoperante. A empresa ainda não entrou em contato com o funcionário. Assim como não sabe quando voltará para casa, se algo poderá ser recuperado, tampouco sabe se terá emprego. Mas carrega consigo a esperança que encontrará Moana, Mandy, Felícia e Piquitucha. “Aqui [no abrigo], não dá pra ficar muito tempo sem fazer nada, se não a gente começa a pensar no que tá acontecendo e é desesperador. Perder tudo que a gente construiu por uma vida inteira”, lamenta. Para passar o tempo, Henrique caminha na área externa do abrigo, às vezes joga cartas com os companheiros de alojamento e “paro para conversar com as pessoas, assim como estou aqui conversando contigo”, diz à repórter.

Pela manhã, é comum ver no alojamento rodas de chimarrão, filas para os serviços jurídicos e assistenciais oferecidos. Entre eles, na fila, o assunto é o nível do Guaíba, a previsão do tempo, questionamentos se o governo vai liberar dinheiro, até quando precisarão ficar em um abrigo e para onde vão depois, já que perderam tudo. Às 12h, começa a se formar outra fila. Agora para pegar uma marmita para o almoço. Dentro da quadra, foi adaptado um espaço de refeitório com mesas e cadeiras de plástico. Diariamente, são servidas aproximadamente 1.300 refeições.

À tarde, são oferecidas atividades esportivas e recreativas com jogos de tabuleiro, para crianças, adolescentes e adultos. Vai se aproximando o fim da tarde, e uma terceira fila começa a se formar em frente ao local destinado à retirada de roupas. É um sobreaviso que o horário do banho se aproxima. Até as 19h30 todos têm que estar de banho tomado. O jantar é servido entre 19h e 20h.

Na quarta-feira, 15 de maio, o time do Internacional, que também teve seu estádio inundado, treinou no campo de futebol da PUCRS. O treino foi aberto e os colorados que estão alojados da universidade puderam assistir. Com a arquibancada cheia, estavam incrédulos e felizes com a oportunidade de verem de perto o time do coração e tirar fotos com os jogadores. “É um alento, um momento de alegria para nós”, disse um torcedor em depoimento.

“Eu saí de uma tragédia e caí no céu”, disse Chamaco no início da conversa, o que pode resumir a vida no abrigo. Transitar entre a felicidade, que é encontrada em meio a uma tragédia que os tirou tudo, e lastimar a perda da geografia da vida que se perdeu, do lar que carregava e também moldava a identidade de cada um.

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