A dança do corpo político lésbico brasileiro

Lá se foi o tempo em que confissão sobre sexualidade servia para estampar uma capa de revista. Há 19 anos, a revista Veja trouxe a cantora e compositora Ana Carolina se declarando: “Sou bi, e daí?”, o que rendeu o imediato deboche de Preta Gil: “Se ela é bi, eu sou penta”, disse a amiga, para deleite do Brasil lésbico que, na época, só se surpreendia com a possibilidade de a compositora mineira se relacionar com o sexo oposto. O humor da baiana virou música, e embalou o carnaval do Bloco da Preta anos depois.

Hoje, a abordagem é bem diferente no universo musical sapatônico – termo que nasceu pejorativo, foi popularizado na marchinha Maria Sapatão, de Chacrinha e de pianista José Roberto Kelly, mas que foi adotado, orgulhosamente, pela banda L, da sigla LGBTQIAP+ – termo que não para de crescer na tentativa de abarcar a diversidade humana.

Há uma cena musical e de comportamento acontecendo no Brasil que conversa com mulheres das mais diversas orientações sexuais, justamente porque lida com conceitos feministas e com a libertação de padrões impostos sobre o corpo feminino. Uma onda que é produto de um olhar mais libertário e que força ainda mais essa mirada para se desprender de caminhos estéticos aprendidos.

Barriga positiva

Contatar o “punk rock brega psicolésbico” de Roberta de Razão, por exemplo, é um convite à libertação de preconceitos rítmicos e de amarras estéticas e comportamentais. A princípio, ela choca ao se despir em figurinos nada convencionais para um corpo fora dos padrões impostos socialmente às mulheres. Nessa performance Roberta tem mesmo razão, originalidade, verdade. Ela se mostra genuína ao usar um biquini, com calcinha boxer  – hit entre as lésbicas “desfem”. Rola no palco, exibindo a sua tatuada “barriga de cerveja” e deita-se despojada vestindo um maiô preto cavadíssimo e colado.

Revolucionário? Sim. Mas, antes de tudo, natural, como propõe a foto de um de seus álbuns em que ela aparece tomando sua cervejinha, no copo americano, na mesa de plástico, nas areias da Praia da Costa, em Vila Velha. Cena cotidiana que nada tem a ver com corpos perfeitos esculpidos, típicos das cantoras que se acompanham por balés sempre precisos. “Barriga positiva”, como já havia exibido Mart’nalia em suas redes sociais.

Roberta de Razão é o nome artístico de Lorena Bonna, neta de caminhoneiro, que aprendeu a tocar violão, cantar e compor. Em junho ela lançou seu primeiro álbum: Mais Forte que Trovão, referência à intensidade do “amor de sapatão”. Um auto deboche! É com esse personagem que ela ironiza a hipocrisia social. “A ideia é sempre bater de frente com esse sistema que prega a padronização dos corpos, né?”, disse ao Meio. Mas seu desprendimento sobre “o que vão achar” percorreu um caminho difícil partindo da menina tímida, encolhida no corpo que não se enquadrava aos olhares. “Sempre é difícil quando a gente não se encaixa, por isso é importante termos representatividade.” No próximo dia 31 ela se apresenta no Rebu Clube em Brasília, no último dia deste mês dedicado à visibilidade lésbica.

“As portas do armário”

A libertação da geração de cantoras sapas não passa só pela forma. Passa também pela cor da pele, passa pela crença. Há um momento no show de Bia Ferreira que é como estar em um culto. Ela chama o louvor “Sharamanaya” e o público, grande parte mulheres lésbicas, responde, com braços levantados e com os dedos formando um losango, o “símbolo da vulva”. E ela prossegue: “O culto tá bonito, todo mundo abençoado”. E expurga: “Declaro vão cair todas as portas dos armários. Primavera solar a queda do patriarcado”.

Filha de uma família tradicional evangélica, ela entra em cena benzendo o palco com Brilha Minha Guia, antes de levantar a discussão feminista, antirracista e anti-homofóbica em seus cânticos na “igreja”: a Lesbiteriana. “Eu já disse para a minha mãe que minha igreja tem mais fieis”, brinca a mulher preta que aos 12 anos escreveu sua primeira canção, cuja letra pedia a Deus para não ser lésbica. Aos 6 anos, havia apanhado porque tentou beijar uma menina. Apanhou de novo aos 13 por ter revelado seus desejos. Ela ainda morava em Santa Rita do Mutum, um lugar com 200 habitantes, distrito do município de Mutum, no interior de Minas Gerais. “Ainda bem, que Ele não me escutou”, disse em entrevista à Marie Claire.

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