A criptocracia de Trump
Olhos grudados na tela do computador, movimentos rápidos do mouse, dez, vinte, quarenta, talvez mais de cem janelas abertas no navegador, 475 pessoas observam, analisam, comentam e começam a investir em uma nova moeda digital — uma memecoin — sendo divulgada em transmissão ao vivo por seu criador, um jovem americano de não mais que 15 anos de idade.
No vídeo, o garoto está eufórico ao ver sua moeda ganhar valorização astronômica em poucos segundos com a entrada de mais e mais investidores. Emite grunhidos, grita muitos palavrões, se levanta diversas vezes de sua cadeira. Em poucos minutos, a moeda atinge um novo patamar de arrecadação aparentemente impensável para o rapaz. Neste momento, ainda muito excitado, ele gesticula para a câmera, exclama mais palavrões, cerra os dentes, fecha o semblante, dá uma risada nervosa enquanto levanta o dedo do meio em riste para seus incautos investidores e simplesmente vende toda sua cota de moedas recém criadas, devorando quase toda a liquidez do valor atingido e, num efeito cascata, gerando perdas financeiras significativas para seus investidores, além de um tumulto generalizado na ainda pequena bolha dos cryptotraders. Fim da transmissão.
Todos os dias são lançadas no mercado, em apenas uma das plataformas de criação de memecoins, aproximadamente 50 mil novas moedas. Vamos repetir: todos os dias, 50 mil novas memecoins são criadas.
Episódios como esse que citamos são comuns. Nem sempre com transmissões ao vivo, mas diante da tela de cada trader de memecoin. Eles assistem à dança sinuosa, rápida e perigosa de pequenas barrinhas de cor verde e vermelha, conhecidas no mercado financeiro como candles. Barrinhas que indicam o que se está comprando ou vendendo em movimentos de sobe e desce vertiginosos de preços nos terminais de negociação de ativos digitais.
As criações são as mais diversas: identitárias, políticas, divertidas, tecnológicas, enigmáticas, carismáticas, escatológicas, sem sentido ou cruéis. Tem para todos os gostos e bolsos. Acompanhar o mercado e os lançamentos é uma tarefa árdua que permeia o entendimento de como narrativas são criadas, captadas ou cooptadas. Também é preciso um belo trabalho de investigação, que pode ser feito solitariamente ou em grupos, um tanto de conhecimento sobre investimentos e dinâmica de mercados, o uso de diversos sites e uma pitada de astúcia em espionagem para descobrir carteiras digitais de grandes investidores ou estelionatários e segui-las.
No mundo das criptomoedas, quase tudo pode ser transformado em narrativa, em meme e, consequentemente, em memecoin, especulação e investimento, resultando na formação de novos milionários, empatados frustrados ou grandes novos falidos. Sem dizer que qualquer pessoa sem conhecimento técnico e com baixíssimo investimento pode criar sua própria memecoin.
A cultura das memecoins
Kabosu era o nome de uma cadela da raça shiba inu. É também a face que estampa uma das memecoins mais conhecidas do mundo das criptomoedas, a Dogecoin. O cão fora adotado por uma professora do pré-primário no Japão e tinha sua vida documentada em um blog, tornando-se uma sensação viral por meio de memes criados por usuários onde era comum ter a foto de um shiba inu junto a pequenos textos. Esse meme começou a ser conhecido como Doge e, possivelmente, foi um dos melhores e mais divulgados do ano de 2010.
Em 2013, os programadores Billy Markus e Jackson Palmer queriam criar uma criptomoeda que fosse divertida e que atingisse um público mais amplo do que o Bitcoin conseguira até aquele momento. Também buscavam se afastar de histórias controversas que rondavam outras moedas. Em sua conta no Twitter, Palmer começou a receber indicações de amigos e seguidores sobre o que fazer. Inspirado pelas fotos da Kabosu e dos memes Doge, comprou um domínio na internet chamado dogecoin, pegou então uma das fotos da cadela, aplicou o nome com a mesma fonte dos memes e, a partir dali, estaria criada a Doge(coin), utilizando uma tecnologia própria de transações inspirada por e adaptada de outras moedas.
Em 19 de dezembro de 2013, em apenas treze dias desde sua criação, a Doge obteve uma valorização de 300%, com bilhões de dogecoins transacionadas por dia. Essa valorização foi enormemente impulsionada pelo mercado asiático, onde, à época, o governo chinês estava restringindo e proibindo os bancos chineses de comercializarem Bitcoins.
A moeda do cãozinho atraiu a atenção de Elon Musk em abril de 2019, quando ele fez o seu primeiro tweet divulgando a memecoin. A campanha de pump se estendeu por 2 anos, até o fatídico dia em que Musk foi a estrela convidada do Saturday Night Live. No mesmo minuto em que seu esquete sobre a Dogecoin foi ao ar em um dos programas de maior sucesso da TV americana, para delírio dos fãs, o preço da moeda despencou de US$ 70 para US$ 0,25, para desespero dos “investidores”. Um dump bilionário. Pump e dump são a base da estratégia de qualquer investimento, elevados à enésima potência no mundo cripto.
Atualmente a Doge ainda possui uma base de seguidores enorme, tendo Musk como um dos principais “acionistas”, levando até mesmo o nome da moeda ao seu próprio departamento junto do governo Trump: Department of Government Efficience, ou Doge.gov. Num primeiro momento, o site oficial ostentava um meme do shiba uno, que não está mais lá.
A boiada passando
O libertarianismo do universo cripto encontrou em Donald Trump um grande aliado. Os “crypto bros”, a começar com Elon Musk, abraçaram a candidatura republicana e o que começou como uma castiça paquera, na proporção que as doações em criptomoedas foram se acumulando no tesouro do candidato, ganhou ares de sacanagem em festa do P’Diddy. Na Câmara e no Senado, a mesma coisa. Candidatos apoiados pela criptocracia passaram o rodo nos deputados incumbentes que os perseguiam.
Seguindo sua tradição, Trump já foi verborragicamente contrário às criptomoedas, chegando a chamá-las de “desastre prestes a acontecer” em 2021. Até que enxergou como fazer dinheiro com elas. Na sexta-feira que antecedeu a posse de Trump, foi criada a sua memecoin. No dia da posse, a da primeira dama. A memecoin do presidente bombou até sair a $Melania. Aí caiu de US$70 pra US$35 — uma drenagem de liquidez para os donos do projeto —, enquanto a de Melania atraía as atenções na segunda. De terça para frente, as duas se mantiveram estáveis, com tendência de baixa.
Nessa onda, apoiadores de Jair Bolsonaro também lançaram uma memecoin, a Patriota Coin. No perfil oficial no X, os criadores da criptomoeda definem o token como “imorrível, imborchável, incomóvel e intributável”. Está tomando forma a captação das memecoins por políticos que usam essas criptomoedas para angariar apoio de gente que talvez não saiba exatamente no que está se metendo, mas se mete em nome da causa que eles representam. Mais da metade das pessoas que entraram no frenesi das moedas $Trump e $Melania nunca haviam comprado uma criptomoeda antes. É a transmutação de investimento em militância, em que um lado claramente sai no lucro.
A fricção de entrada do dinheiro e usabilidade das carteiras e bolsas descentralizadas está muito melhor do que no último ciclo, há três anos. Isso porque a capacidade de transações da Solana se provou madura e emergiu como uma forte competidora à Ethereum para transações de baixa latência e baixíssimo custo. Em um piscar de olhos, veremos mais e mais celebridades e projetos aderindo a essa nova forma de capitalização.
A adoção de transações em criptomoedas pelo consumidor comum é uma realidade tanto no Brasil quanto no restante do mundo, impulsionada pelo avanço tecnológico, pela integração de novas facilidades oferecidas por operadoras de cartão de crédito e portais de pagamento, passando até pelo receio de que moedas oficiais governamentais, como o real, sejam totalmente digitalizadas (DREX no Brasil). Essa tendência reflete tanto a busca por alternativas financeiras inovadoras quanto a desconfiança em relação ao controle centralizado de moedas digitais estatais.
Imagine agentes de IA autômatos criando narrativas independentes e desenvolvendo sistemas monetários próprios, totalmente à margem do controle humano. Esse horizonte, que já atrai investimentos e experimentações de startups pioneiras, não só abre possibilidades disruptivas como coloca em xeque noções estabelecidas sobre soberania financeira e criação de valor.
O casal mais poderoso do mundo só conseguiu arrecadar bilhões de dólares na semana de lançamento de sua criptomoeda porque a perseguição dos reguladores acabou. Com a SEC sob nova direção, altamente favorável, os brothers estão livres para empreender e transformar os EUA na capital mundial das criptomoedas.
Ok, sabemos que você está doido para aprender como Donald e $Melania $Trump já movimentam mais de US$ 3 bilhões em um único dia de negociação. Ah, já ia esquecendo que talvez você só saiba medir riqueza em ativos fósseis. Pois bem, as duas memecoins oficiais da família Trump já tem um volume diário de negociações 15 vezes maior do que Petrobras. E isso é só o começo. Sente-se na sua poltrona e aperte o cinto: o mercado financeiro está prestes a “dar respawn”.
Como criar uma memecoin
Estamos aqui na redação, na frente de nossos computadores navegando pelo X (antigo Twitter) em busca de pautas e notícias. O dia está moroso, quente, mas as notícias bem frias. É outubro de 2024. Entre uma aba e outra do navegador, voltamos ao X e percebemos as notificações de trending começam a apontar um nome estranho: P’nut. Logo chega a notícia. Um esquilo chamado Peanut (amendoim) foi retirado da casa de seu criador pelo Departamento de Conservação Ambiental do Estado de Nova York com a alegação (depois de uma longa investigação) de que o cuidador do esquilo incorria em diversas ilegalidades, como a de não ter licença para a criação de animais silvestres, etc.. P’nut já era famoso em diversas redes sociais, com uma legião de seguidores.
De uma história muito longa para uma tentativa de resumo: O Departamento de Conservação Ambiental informou que o esquilo mordeu um de seus biólogos logo depois da remoção e o teste sorologia de raiva animal mostrou que P’nut estava contaminado, sendo encaminhado para a eutanásia. Isso tudo já traria uma certa indignação de todos os fãs de P’nut, dos ativistas da proteção aos animais e de amantes de pets. Para concluir, descobriu-se depois que P’nut não estava contaminado…
Por aqui, caro leitor, você já deve ter entendido a capacidade de viralização da notícia, a força da narrativa e, obviamente, já deve saber o que aconteceu: P’nut, além de ter virado estrelinha no céu, também se tornou uma memecoin com alto poder de valorização. A moeda está no mercado até agora, com um volume transacionado de cerca de R$ 1,06 bilhões/dia. Que sua memória não seja apagada, P’nut, the squirrel.
É iniciado no mundo critpo e quer criar a sua? Aqui vai um tutorial rápido de como fazer isso no Pump.fun. Você vai precisar de uma boa narrativa, um meme, começar a montar sua comunidade, investir um pouco em marketing, ter um pouco de criptomoedas e muita criatividade.
Prepare-se:
Tenha uma carteira Solana (ex: Phantom) com SOL para taxas (recomendado 0.5 SOL).
Solanas podem ser adquiridas em corretoras centralizadas (CEX), como Binance, NovaDax, ByBit, ou descentralizadas (DEX), como Uniswap, Pankake e Raydium. Você também pode optar pela compra através da própria carteira digital.
Acesse o Pump.fun:
Conecte sua carteira no site pump.fun.
Configure o Token:
Escolha Nome (ex: $DINDIN) e Símbolo.
Faça upload de uma imagem de meme (até 1MB).
Opcional: Ajuste a oferta total (padrão: 10 milhões de tokens).
Também opcional: Reserve uma quantia para você. Entre 10% e 15% do volume total é um bom valor.
Implante:
Clique em “Create Token” e confirme a transação (custo: ~0.02–0.05 SOL).
Pronto! Seu token estará listado no pump.fun.
Promova:
Compartilhe o link da página do token em redes sociais.
Use hashtags (#memecoin, #solana) e colabore com influenciadores.
Após o lançamento:
Se atingir US$30 mil de market cap, será listado automaticamente na Raydium.
Monitore o preço em DexScreener.
Agora, atenção: 99% das memecoins falham. Vão para zero em valor de mercado em poucos minutos, às vezes segundos. O mercado de memecoins é altamente volátil. É comum dizermos nesse meio que estamos numa espécie de velho oeste digital. Uma mistura de filme do John Ford com Blade Runner. Nessa jornada você encontrará todo tipo de sorte e de pessoas. De investidores com alto poder aquisitivo a nerds, gatunos, hackers, robôs e desesperados.
O jovem americano do começo de nosso texto voltou à plataforma algumas horas depois, pedindo desculpas e lançando uma nova moeda. Não tardou a cometer um novo rug pull (puxada de tapete) e dessa vez a comunidade não perdoou. Elevou o valor de sua moeda a patamares ainda maiores, aproveitando que ele já havia vendido sua cota e também expuseram seus dados pessoais e familiares nas redes.
Tome cuidado!
Esse tutorial não é aconselhamento financeiro. Faça sua própria pesquisa (DYOR).
Dicionário de Memecoins do Meio
Para entender melhor desse mundo, comece se familiarizando com o seu vocabulário próprio.
Memecoin
Moeda baseada em um meme ou tema humorístico, sem utilidade prática (ex: Dogecoin, Shiba Inu).
Token
Ativo digital criado em uma blockchain existente (ex: Ethereum, Solana). Pode representar moedas, utilidades, ou direitos em um projeto. Memecoins são um tipo de token.
Shitcoin
Termo pejorativo para moedas consideradas inúteis ou sem valor real.
Rug pull
Golpe onde os desenvolvedores abandonam o projeto e retiram toda a liquidez, deixando os investidores com tokens sem valor.
Airdrop
Distribuição gratuita de tokens para promover um projeto (geralmente para holders de outra moeda).
Meme tax
Taxa cobrada em transações de algumas memecoins, destinada a marketing ou queima de tokens.
Pump e dump
Estratégia onde grupos inflam artificialmente o preço de uma moeda (pump) para vender em alta (dump), deixando outros no prejuízo.
FOMO
Medo de perder oportunidades (Fear of missing out), que leva a compras impulsivas.
FUD
Medo, incerteza e dúvida (fear, uncertainty, doubt), termos usados para manipular o mercado.
Degen
Abreviação de degenerado, usado para descrever traders que apostam alto em moedas de risco.
Normie
Termo pejorativo para pessoas “comuns” ou não especializadas em criptomoedas, muitas vezes associado a investidores conservadores ou que seguem tendências sem entender o mercado. Exemplo: “Os normies estão comprando nossa memecoin agora que subiu 1000%!”
Whale
Investidor ou entidade que detém grande quantidade de uma moeda, capaz de manipular seu preço.
Moon / To the moon
Expressão usada quando uma moeda sobe rapidamente (“Vamos para a Lua!”).
DYOR
Do Your Own Research (“Faça sua própria pesquisa”), lembrete para não seguir cegamente influenciadores.
Liquidity Pool (LP)
Reserva de tokens em uma exchange descentralizada (DEX) que permite negociações.
Snipe
Comprar tokens imediatamente após o lançamento, antes que o preço suba.
Bag Holder
Pessoa que fica “segurando a bag” (carteira) de tokens que caíram de valor.
Community Coin
Memecoin totalmente dependente do engajamento da comunidade (ex: Dogecoin).
Burn
Destruição proposital de tokens para reduzir a oferta e aumentar a escassez.
GM / GN
Cumprimentos típicos em comunidades crypto: Good Morning (bom dia) e Good Night (boa noite).
Influencer Pump
Quando um influenciador promove uma moeda para inflar seu preço artificialmente.
NGMI / WAGMI
Not Gonna Make It (“não vai conseguir”) vs. We All Gonna Make It (“todos vamos conseguir”), memes usados para motivar ou zoar traders.
Termos de Risco:
CT (Crypto Twitter): Comunidade do Twitter focada em criptomoedas.
No Coiners: Pessoas que não acreditam em criptomoedas.
Rekt: Perder muito dinheiro em trades (destroyed).