A boba da corte
Publicitária, roteirista da Globo, podcaster, colunista da Folha. A voz de Tati Bernardi certamente é daquelas que se faz ouvir, porque não traz nenhum compromisso com o comedimento. Descendente de italianos, criada no Tatuapé, “morava do lado do metrô Carrão. Não é o Tatuapé de rico da Anália Franco, de fato era a periferia. Mas era numa casa bonita”, Tati atravessa a ponte — que é como os paulistanos da elite dizem de quem migra para o mundo encantado do Centro Expandido —, para primeiro conquistar a elite do dinheiro e, depois, a intelectual. Essa é a história que ela conta em a Boba da Corte, seu mais novo livro, lançado pela Fósforo Editora. Mas é também uma história de amor, marcada por muitos amores e desamores e temperada pela ironia. Sempre de uma perspectiva ultra pessoal, uma ficção que parte da realidade, como os textos de seus ídolos Annie Ernaux e Édouard Louis, e não poupa ninguém, nem a si mesma. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Na corte, o bobo é sempre aquela figura que tem o álibi para dizer as verdades sobre o manto do humor. Qual é a verdade mais importante de ser dita à corte paulistana?
Esse é um livro é sobre códigos. Não é um livro com uma pretensão sociológica, ele não tem a pretensão — que seria bem ridículo da minha parte — de contar da minha trajetória. Sou uma mulher branca, nasci no Tatuapé, que não é centro expandido, mas estudei em colégio particular, nunca me faltou nada. Então não é a trajetória de sofrimento para chegar e ascender. Quando, aos 20 anos, vou morar em Perdizes pela primeira vez e começo a trabalhar na W Brasil, me sinto absolutamente sem saber como me comportar com esses códigos. Eu só ia imitando, imitava a roupa, o jeito de falar ali com 20 e poucos anos. Imitava até onde dava, às vezes ficava estouradíssima no cartão de crédito de tanto imitar. Queria me vestir igual, falar igual, ir nos mesmos restaurantes. Isso também é uma chegada numa elite de grana. Não tem nada a ver com a elite intelectual. A primeira elite que eu conheço é uma elite de dinheiro, com novo rico mas não todos. Depois, quando eu entendo que o que quero mesmo é ser uma escritora e pertencer a uma grupo de pessoas mais intelectualizadas, aí sim eu conheço a elite intelectual. E aí o que eu acho que tem de importante a dizer é que tanto essa elite do dinheiro, quanto a elite intelectual de pessoas mais da esquerda tentaram me mostrar que eu precisava fazer algo para me encaixar. Só que a elite da grana é muito escancarada nisso, né? Fala: “Olha, você tem que sentar mais reta, você tem que falar mais baixo, você tem que não se expor tanto, você não está se comportando como uma mocinha que vai conseguir casar e ser mãe e crescer dentro de uma empresa, — e daí crescer dentro de uma empresa era ser subalterna para sempre, né? Só que era tão escancarado que aquilo não me pegava muito. Era muito óbvio que aquilo era machista, que era escroto. Na elite intelectual de esquerda, isso tudo é muito maquiado. Eu não entendia direito qual era meu mal-estar, mas sabia que algo tava sendo dito, só que dito de uma forma muito cirandeira. Então era assim: “Você precisa meditar mais, ser mais calma, espirar, você não respira, você precisa ler mais, sei lá, Campbell. [risos] Ia para meditação, para yoga, lia a caralha do Campbell. Quando percebi que na verdade era a mesma coisa: não seja uma mulher com a com a sua força, que vem também de uma família italiana, suburbana.
Tem uma força que vem desse lugar não elegante, e o que eu percebi é que tanto a direita quanto a esquerda me cobravam elegância, sabe? Que a direita chama de elegância da mulher fina e a esquerda chama de elegância do caráter. Mas na verdade tudo era para dar uma calada na suburbana. A outra coisa é: quando eu acendo para ser elite intelectual, percebo que eu fico amiga muito rapidamente e encantada muito rapidamente pelos pais e os avós das pessoas que eu me relaciono. A pessoa é um lorde, é um príncipe. Mas aí quando eu conheço o pai ou o avô da pessoa, ele é o cara que fez o que eu estou fazendo. Que veio do nada nada e sei lá como se tornou um, sei lá, um artista plástico, um escritor ou um arquiteto. Ninguém deu nada para ele. Morava numa casa que não tinha livro, na puta que pariu, não tinha grana.
Ganhar dinheiro continua sendo uma coisa central na sua vida?
Hoje eu faço as coisas que eu gosto de fazer muito. Em 13 anos que eu fiquei na Globo, eu colaborei em um monte de programa que eu não gostava de fazer, mas acho que 70% do que eu fiz na Globo eu gostava. Trabalhei oito, nove anos em agência de publicidade. Quatro deles gostando muito e os últimos três anos achando aquilo insuportável. Hoje tenho uma vida em que eu trabalho muito, mas isso é um grande privilégio. Construí uma carreira em que atiro para todo lado, mas em coisas que eu tenho muito prazer em fazer. E ainda tenho isso de querer prosperar, de querer poder me dar uma vida confortável, dar uma vida confortável para minha mãe e para o meu pai. Eu fiquei pensando muito porque que o [Guilherme] Boluos perdeu. Tenho pavor do [Pablo] Marçal, mas quando ele apareceu, eu, por vir do Tatuapé, entendia onde que o discurso dele pega. Ele fala para as pessoas: “Você pode ficar rico, se você ralar”. E o Bolos é o cara que nasceu em Perdizes e foi morar na periferia. A real é que cresci num lugar em que a gente é ensinado a ser esperto. Tenha a esperteza das ruas e ganhe teu dinheiro, é possível ficar rico. É uma meritocracia que a direita roubou e hoje em dia é um discurso fascista, mas ele é uma coisa que tira a gente da ZL, entende? E aí você olha o Boulos, que nasceu estudando em colégio particular, fez USP, família de médico, e o cara faz o inverso e vai para a periferia. A galera da periferia acha ele burro. Quer ser o Marçal, um cara que era bizarramente feio, fez 800 coisas com o corpo e com a cara dele e hoje em dia pega essa loirinha gostosinha aqui, não importa se ela é uma anta. Hoje em dia, eu me considero elite intelectual, moradora de Higienópolis. Tenho horror ao Marçal e amo o Boulos. Mas acho que há 25 anos, se alguém falasse para mim essa história, talvez eu gostasse mais do Marçal.
Tem um ponto que eu acho que é muito legal não só nesse livro, na sua obra inteira, assim, que é a autoironia. O quanto ela é importante para a sua escrita e como você chegou neste lugar?
Venho dessa família muito de autoirônica, de se zoar o tempo inteiro. A minha mãe é assim, e eu sou a mais de todos ali, com certeza absoluta. Venho de uma família que ri muito um da cara do outro. E muito nova, eu começo a gostar de Woody Allen, o que hoje em dia é perigosíssimo. Mas eu era obcecada por ele minha juventude inteira, então esse humor autodepreciativo é uma coisa de que eu gosto. Sempre fui muito obsessiva e neurótica, desde criança, muito pensamento intrusivo. Eu percebia que o que me tranquilizava e me fazia relaxar era que quando eu contava para alguém as coisas que estava pensando, a pessoa tinha um ataque de riso. E sempre que alguém ria, eu ficava em paz. Depois, já com pouco mais estratégia, quando eu entendi que eu seria uma escritora autobiográfica, saquei muito rapidamente que só poderia ser perdoada, ainda mais sendo mulher, se estivesse falando de mim mesma de um lugar de queda, de falha, de furo, de buraco. Primeiro eu já tinha esse prazer imenso, eu adoro me esculachar nas colunas, nos livros. Depois porque já que ela vai fazer um livro de 100 páginas falando dela, que pelo menos seja para se esculachar, porque senão é impossível ler. Se eu tivesse feito um livro sobre a trajetória da heroína, seria insuportável. Você atura um livro militante de trajetória da heroína só de uma mulher preta periférica, mas ser for mulher branca você dá um tiro, né? Especificamente para esse livro, eu preciso rir de mim, porque eu me tornei a elite intelectual com grana. Então, eu tô rindo, eu tô rindo dos outros com esses códigos, mas eu tô rindo porque eu me tornei isso, né? Seria injusto eu não me não me colocar nesse meio.
Essa é uma leitura muito minha, mas eu vi A Boba da Corte também como um livro de amor.
Ah, total, total. Você não sabe como foi sofrido escrever esse livro. Eu mostrei para umas três amigas e falei: “Cara, você acha que eu vou magoar?” Elas falaram: “Não, eu acho que você tá até exagerando no tanto que você ama. Você dá umas duas zoadas, mas basicamente você diz que a pessoa é o maior amor na vida e o melhor o sexo da sua vida. Então, se magoar, é porque a pessoa não entendeu o livro.” Isso de certa forma me liberou, sabe? Porque eu nunca senti isso na minha vida. Sempre caguei na cabeça de todo mundo, expus, não tava nem aí. Essa foi a primeira pessoa que eu falei: “Eu não vou conseguir.” O livro pronto, a editora querendo mandar para imprimir e eu chorava e falava: “Eu não posso fazer isso, amo ele, não posso.” Aí decidi mandar o livro para ele. Sei que não deve ter agradado, mas a hora em que ele falou que tudo bem lançar, parece que tirou um demônio de cima das minhas costas, entendeu? E, assim, eu dou risada de quem eu amo, né?