Edição de sábado: Fogo eterno

A obsessão de Gilberto Gil pela deusa-música durante um ensaio de sua turnê de despedida.
O ensaio
Gilberto Gil está no centro do palco, braços cruzados, guitarra no ombro, ouvidos atentos. É sexta-feira, dia de Oxalá, e o filho de Xangô veste branco dos pés aos cabelos. Não escolheu medicina, como o doutor José Gil sonhou, mas está mais sério do que médico em hora de cirurgia. “Tá esquisito. Não tô sentindo a harmonia”, diz o baiano de Ituaçu, 82 anos no mundo, quase 83. O efeito de Gil insatisfeito é imediato e faz a banda emudecer. Bem Gil, baixista e diretor musical que escolheu cada um dos 15 músicos que os acompanham, responde rápido: “Vamos passar de novo e ver a harmonia pro meu pai”, e todos recomeçam Funk-se Quem Puder.
Tocam apenas três segundos. “Peraí, peraí, peraí, peraí”, interrompe Gil, erguendo os braços como um maestro. “Nesse tam tam ram ram tam tam tam tem uma coisa complicada”, repara, e todos tentam descobrir o que está complicado, ou quem está complicando. “Não é só a harmonia. Tem uma intervenção de alguém aí. Não sei se são as cordas.” Se o próprio Gil não sabe, como descobrir? Um a um, cada músico repassa suas notas. Depois de alguns minutos examinando as partes e o todo, Gil, doutor na sua arte, dá o diagnóstico: o problema “não é a execução, é a escrita” — a partitura da música.
Ninguém lembra a última vez que Gil cantou essa canção, gravada há 42 anos no álbum Extra. Ele mesmo demora a recordar os versos e pede ajuda à Nara Gil, sua primogênita, backing vocal e mãe do guitarrista João Gil, também no palco. Finalmente os músicos chegam ao primeiro verso: “É imperativo dançar”, ele canta, antes de parar o ensaio de novo, repetindo o verbo “dançar”, esticando a última sílaba, entoando a palavra de jeitos diferentes, buscando no baú da memória o tom exato. Arrisca um agudo em “sentir o ímpeto”. “A nota é lá em cima”, observa, pedindo à filha e à nora Mariá Pinkusfeld, cantora e mulher do baterista José Gil — oitavo e último filho, também no palco —, que cantem mais alto. Sua voz não estava alcançando o agudo desejado.
São os primeiros minutos de um ensaio da turnê Tempo Rei, a última de Gil, que está arrebatando multidões e lotando estádios por onde passa. Se o show tem sido definido como catártico e muitos outros adjetivos por quem o assiste, o ensaio no meio da turnê é, por sua vez, uma obra para poucos que ajuda a explicar o sucesso do espetáculo grandioso. Flora Gil, mulher do artista há 43 anos e diretora da Gege Produções, já disse que ensaiar é o que Gil mais gosta de fazer na vida. Cada ensaio é uma costura, um dia de trabalho que começa difícil e vai se resolvendo aos poucos, ponto a ponto, linha a linha. No desafio de “repetir, repetir, até ficar diferente”, como escreveu o poeta Manoel de Barros, Gil tem a manha.
Por ser um processo com imprevistos e segredos, como os nomes dos convidados daquele fim de semana — Anitta no sábado e Caetano Veloso no domingo —, não é permitida a presença de jornalistas nesse momento. E, ainda assim, lá estava eu, assistindo a um espetáculo particular de aperfeiçoamento. Era um dia difícil para toda a equipe, que também tem a filha Maria Gil na produção. O motivo é que Preta Gil, que trata um câncer no intestino há dois anos e a princípio ensaiaria naquela sexta-feira para cantar a música Drão com seu pai no domingo, teve de ser internada em São Paulo e só ganhou alta no dia 17. Por isso o convite a Caetano foi antecipado, fato que provocaria o momento mais emocionante desde a estreia da turnê, em março: os dois amigos cantando Super-homem (A Canção), no dia 7, com Gil muito emocionado e Caetano inseguro, segundo ele próprio, por Djavan estar na plateia.
Esperado no palco às 13h30 naquele ensaio de sexta-feira, véspera do show, Gil entra em cena às 13h29, mas estava no camarim havia uma hora. Cumprimenta de longe os músicos, que começaram a passar o som 20 minutos antes, enquanto é observado por técnicos, produtores e assessores nas coxias, na frente do palco e até embaixo dele. Gil precisava ir embora às 16h e aproveitou até os últimos minutos para ensaiar. Funk-se Quem Puder foi incluída naquela tarde no setlist para marcar a entrada de Anitta. A música entraria no meio de Aquele Abraço, que ele escreveu logo após saber, no início de 1969, que iria para o exílio. Depois de Anitta subir ao palco ao som de Funk-se, a banda voltaria a tocar Aquele Abraço, só que num tom diferente: a pedido da cantora, em Sol maior em vez de Dó.
A obsessão de Gil pela “deusa-música” — como ele a chama em Palco, que abre o espetáculo — está na sua forma minuciosa de trabalhar. É um artista do detalhe. Não à toa o ensaio em que precisaria passar apenas três músicas — Funk-se, Aquele Abraço em outro tom e Super-homem — dura o mesmo tempo que um show inteiro, no qual ele canta 30 sem contar algumas vinhetas, como Retiros Espirituais.
“Ainda não tá clara essa harmonia pra mim”, diz ele, após 45 minutos na mesma canção. Fora do microfone, Bem conversa com os músicos e combinam algo inaudível. Então a magia acontece e a música assenta. Nada mais incomoda Gil e tudo parece fluir. Mesmo assim, ele continua ensaiando Funk-se Quem Puder por uma hora e meia no total — até ficar diferente. “Está bom”, diz, de repente. “A entrada da Anitta vai ser um alvoroço. O que temos agora?”, indaga.
Além de mudar o tom, é preciso puxar o andamento de Aquele Abraço um pouco mais para frente. “Vamos cantar até a metade. Quando você sambar, a gente muda para uma levada de funk. Anitta entra e continuamos em Sol”, anuncia Bem, de 40 anos, mais velho dos três filhos de Gil com Flora. Ele já contou ter crescido sentindo um certo distanciamento do pai. Quem lhe apresentou o Flamengo, por exemplo, foi o motorista da família. O jantar com todos em casa era tradição, mas o que o aproximou mesmo de seu pai foi a música. Aos 18 anos eles já tocavam juntos no Carnaval de Salvador. Aos 21, Bem virou integrante oficial da banda de Gil. Hoje é um multi-instrumentista e braço direito do pai — seu herói, sua maior inspiração.
Gil pergunta que horas são. “Quinze horas”, alguém grita. “Temos tempo”, aquiesce, gostando da brincadeira. Está em pé há uma hora e meia e agora começa a dançar no palco, cantando em um tom mais agudo para fazer o papel de Anitta. Esse homem completará 83 anos em dois meses e parece de outro mundo. Não parou nem mesmo para beber um gole de água. Enquanto isso, José, também diretor musical do show junto com Bem, fica de pé para se alongar. Apenas na hora de tocar Super-homem, Gil olha de relance o banquinho ignorado antes de sentar. Logo nos primeiros acordes, um efeito especial é acionado sem querer, soltando faíscas para o alto a poucos metros do cantor. Está tão concentrado que não olha para as faíscas, nem sequer se move. “Ok?”, pergunta Gil às 15h54. “Ok”, responde Bem. Fim do ensaio.
O show
É sábado, dia do show. Para que tudo saia como planejado na véspera, um novo ensaio é marcado às 15h, desta vez com Anitta. Dura pouco tempo, cerca de 30 minutos. A cantora se empolga com a ideia de Gil repetir o verso Funk-se Quem Puder oito vezes, para que ela tenha mais tempo de subir ao palco entre uma e outra vez. “Assim é perfeito, Gil”, comemora. O show está marcado para 20h, mas começará às 20h30. Enquanto Gil e a banda descansam nos camarins, um batalhão de bombeiros, seguranças, faxineiros, recepcionistas e vendedores de bebidas começa a chegar para o trabalho. Por volta das 17h, chegam também os primeiros fãs, que ficam horas esperando do lado de fora da Farmasi Arena, palco dos quatro primeiros shows no Rio de Janeiro.
Tempo Rei é a consagração de seis décadas de carreira de um dos gigantes da música, fruto de uma geração de artistas de fazer inveja a qualquer outra, de qualquer época, de qualquer país. Uma geração da qual também fazem parte gênios como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, e outros já falecidos, como Gal Costa e Tim Maia. Dos octogenários da música brasileira, ninguém está em melhor forma do que Gil — um homem, segundo sua comadre Fernanda Torres, de quem ele é padrinho do filho mais velho, “talhado para o palco, que nasceu para a estrada, com alma de Chuck Berry”.
Antes de estrear em Salvador, a turnê foi preparada ao longo de um ano inteiro. O diretor artístico, Rafael Dragaud, ainda tem no celular as anotações que fez durante a primeira reunião, no dia 1º de abril de 2024, quando Flora o convidou para a missão. “Estreia em março de 2025. Fazer algo histórico, mas não-linear. Pensar na equipe de luz e cenografia. Apesar de ser a última turnê, uma despedida, tudo é recomeço, tudo evolui e retrocede ao mesmo tempo, o tempo todo”, lê Dragaud. Diretor e roteirista de TV experiente, responsável por reformular o Criança Esperança, da TV Globo, ele compara o convite a uma convocação para a seleção brasileira.
Após aquela reunião, Dragaud começou a pensar no conceito do show. Conversou com Bem e José, que tinham suas próprias ideias. Decidiram que o conceito seria o próprio Gil e sua visão do tempo. “Eu tinha na cabeça que precisava ter um início impactante, começar pelas essências musicais de Gil, o início de carreira, chegar a Londres e depois enlouquecer de ácido — e, a partir desse ponto, virar um flow musical, para que fosse histórico, para que fosse Gil, para que fosse não-linear e, principalmente, para que não fosse um show de despedida. Não é um fim de tarde, é um alvorecer”, reflete.
Para a equipe técnica, convidou profissionais como Daniela Thomas (cenografia) e Samuel Betts (iluminação). Daniela pensou em um vórtex, uma escultura em dois painéis digitais que se entrelaçam sem se tocar. Além disso, há três telões gigantescos em LED no palco que transmitem o show em tempo real, a partir das imagens de 14 câmeras, entre elas um drone que sobrevoa Gil, sua banda e a plateia. É uma forma de usar as câmeras como nunca se viu no país. Além disso, houve um esmero nos vídeos que são exibidos: as imagens de uma romaria, na música Procissão, foram gravadas na cidade natal de Gil. O céu que aparece nos telões não é de qualquer lugar: é o céu de Ituaçu, da infância do pequeno Beto, como era chamado em casa.
Às 20h30, o show começa. Não por acaso, o primeiro verso cantado é “subo neste palco”. É uma apresentação, a música que Gil compôs nos anos 80 quando pensou em parar de cantar. As primeiras três canções (Palco, Banda Um e Tempo Rei) abrem o espetáculo com a temperatura altíssima — e ela não cai em momento nenhum. Em seguida vem o mergulho na história do menino que sonhava ser Luiz Gonzaga, o moleque que começou na música tocando um dos instrumentos mais difíceis, o acordeon. Como a ordem não é cronológica, a canção que representa a influência de Gonzagão é um forró de Dominguinhos e Anastácia (Eu Só Quero um Xodó), que Gil gravou em 1973.
Gil tocou sanfona no grupo Os Desafinados, em Salvador, entre 1959 e 1961. O ano em que a banda nasceu foi o mesmo no qual João Gilberto lançou seu álbum seminal, Chega de Saudade. Gil, que já estava encantado com o violão de Dorival Caymmi, apaixonou-se pela batida do pai da bossa nova. Logo o Di Giorgio que dona Claudina comprou na Mesbla para o filho se tornou seu amigo inseparável. Enquanto alguns músicos têm rituais estranhos antes dos shows — Keith Richards, por exemplo, sempre come uma torta inglesa com carne e creme de batatas, enquanto Beyoncé costuma rezar em uma cadeira de massagem enquanto é maquiada —, o que Gil gosta de fazer no camarim é tocar violão. E como ele vai embora assim que o show acaba — para não ficar preso nos abraços e depois no trânsito —, costuma receber convidados antes das apresentações.
Um dos momentos emocionantes é quando Gil canta Refazenda, que ele apresenta como parte de uma espécie de trilogia de sua obra, que inclui também Refavela e Realce. Gil e sua irmã, Gildina, não foram à escola no primário porque a avó os alfabetizou em casa. Refazenda refere-se a Ituaçu, base de toda a permanência do mundo rural que não sai de Gil, mesmo sendo ele um poeta universal. “Todos os lugares do interior que vi no mundo me remetiam a Ituaçu, que ocupa uma função mítica na minha vida”, disse uma vez. Ele considera Refazenda a primeira música filosófica de sua obra.
A impressão que se tem durante o show é que se trata de um espetáculo cênico que não deve nada às grandes produções internacionais, com qualidade de áudio impecável e toda a pirotecnia possível. E que se coloca acima de outras grandes turnês recentes, como A Última Sessão de Música, que marcou o adeus de Milton Nascimento dos palcos. O show de Gil é uma raridade: mal acaba e já dá vontade de ver outra vez. Passa uma semana, um mês, e seu eco continua reverberando em quem o assistiu. Para quem tem ao menos 30 anos de idade, é um mergulho na própria história, embalada pelas músicas de Gilberto Gil em suas muitas luas.
Quando o show caminha para o fim, as luzes iluminam a plateia e o que se vê é uma multidão de olhos marejados sob impacto de algo profundo que acabou de acontecer — algo que nos torna maiores e que poucos conseguem definir com precisão. Não é raro ouvir frases como “é o melhor show da minha vida”. Todos os grandes temas da obra de Gil estão presentes: amor, separação, liberdade, morte, Deus, tempo. A vida é sempre ruim e sempre boa ao mesmo tempo, acredita Gil, com seu estoicismo baiano, seu taoísmo sertanejo. Enquanto todos se deslumbram com o que viram, ele volta correndo para o camarim já sabendo o que precisa melhorar para o dia seguinte. Marca um novo ensaio às 15h de domingo, antes de mais uma noite inesquecível.
Da consolação ao paraíso
Avenida Paulista: da Consolação ao Paraíso, peça mais recente de Felipe Hirsch, fica em cartaz no Teatro Popular do Sesi, em São Paulo, até meados de maio, numa longa temporada que começou em fevereiro. É um espetáculo criado coletivamente, que não só passa por diversos personagens que habitam a avenida, como explora os contrastes e as transformações desse ponto central da cidade. A peça também abre um diálogo com a montagem de Avenida Dropsie, adaptação teatral da novela gráfica de Will Eisner, um dos maiores sucessos de Hirsch, há 20 anos.
Mas o caminho encontrado como eixo de sustentação dessa narrativa, que varia tanto quando as paisagens arquitetônicas e humanas da avenida, foi a música. Hirsch convidou 15 compositores que atuam na cena paulistana para um processo de criação com os atores e dramaturgos. Gente de vários cantos do Brasil mas que escolheu São Paulo para viver, como Maria Beraldo, que assina a direção musical, Negro Leo e Alzira E, e paulistaníssimos como Arnaldo Antunes, Maurício Pereira e Kiko Dinucci. As canções da peça, inclusive, serão lançadas em disco, “coisa que não existe mais, mas temos na memória, com as trilhas de peças de Chico Buarque”, lembra o diretor. Como tudo no teatro de Hirsch, o resultado é fruto de um jogo de colaboração que surpreende pelo visual e pela carga poética. Não à toa, estão a seu lado companheiros de toda uma vida nos palcos, como a diretora de arte Daniela Thomas e o iluminador Beto Bruel. Veja abaixo os principais trechos da entrevista com Felipe Hirsch.
Por que trazer a Avenida Paulista, tão icônica em São Paulo, para o foco?
Porque eu moro aqui. Há 25 anos eu vim para São Paulo. E há 20 anos eu fiz a Avenida Dropsie, essa avenida do Will Eisner, que falava de imigração, de todos esses horrores que nós estamos vivendo hoje com essa perversidade da extrema direita em relação a isso. E, naquele momento, eu vim morar nessa avenida. E a vi se transformando ao longo desses 25 anos. Tive um filho há cinco anos, o que mudou minha cabeça completamente. Vejo o olhar dele para esse lugar. Passei a ver também a Avenida Paulista fechada aos domingos, todo esse movimento democrático, amplo, de pessoas que vêm de todos os lugares da cidade. Claro, com a repressão de sempre, mas com uma ideia democrática verdadeira de convívio de muitas classes. E a gente começou a fotografar e a gravar. A coisa que mais me impressionava eram as gravações. Ao se andar a Paulista inteira, da Consolação ao Paraíso ou vice-versa, a cada passo muda completamente o cenário sonoro. Você está ouvindo uma música colombiana, depois escuta uma pessoa vendendo alguma coisa. É muito rico. Então eu estou realmente atravessado nos meus sentidos, eu olho na minha sala e eu vejo a antena da Gazeta.
Queria entender um pouco do processo de criação da dramaturgia. Por que você escreve com o Caetano Galindo, com o Guilherme Gontijo Flores, que moram em Curitiba, e com a carioca Juuar. São todos “estrangeiros”. Como foi essa troca entre vocês?
Seria estranho se dois curitibanos e dois cariocas se sentassem numa mesa com toalha branca e decidissem falar da Avenida Paulista. Isso não aconteceu. A gente juntou um elenco bastante diverso e chamou essas pessoas para dentro da criação. A gente começou a registrar tudo o que via. Todo domingo, e em dias de semana também, porque a Paulista vai mudando, né? Climas completamente diferentes de dia, de noite, em dia útil, no final de semana. Estávamos sempre gravando, fotografando e filmando. Esse material ia para sala de ensaio, onde a gente selecionava e filtrava. Daí mostrava para esses atores, que começavam a improvisar, criar personagens. Como no Yalta Game do [Anton] Tchekhov, em que eles ficam olhando as pessoas na praia e imaginando a vida delas, a gente começou a fazer esse jogo a partir do material que juntamos. Estou falando de 12 atores, seis músicos, os compositores todos. Depois desse filtro, ia para a mão da dramaturgia, e nós quatro fechávamos o espetáculo.
Todo o seu trabalho sempre foi muito coletivo, você é uma pessoa do processo, e suas criações dialogam muito com a cultura presente, mas também com o passado. Estamos no meio de uma temporada longa da peça, você ainda mexe nela?
Ainda tem três músicas para a quais estou procurando o melhor. Eu ainda não me convenci do melhor momento e estou as testando em lugares diferentes. Porque a peça tem toda uma história com a música. E essa foi uma das decisões mais relevantes da minha vida. Tinha dúvida de como lidar com isso, se seria apenas a trilha sonora que o Arthur de Faria compôs. Lancei um desafio pro Arthur, que é muito profícuo e talentoso, de compor uma música por dia. Ele me mandava de manhã, e eu ia pensando na peça a partir dessas músicas. Em um ponto, tive dúvida de como isso conviveria com as composições originais. Mas um dia estava pensando e falei: cara, quando é que vou ter oportunidade de novo de chamar tanta gente que eu admiro, que está fazendo essa cena de São Paulo ser tão incrível? Pessoas que estão lançando um disco atrás do outro, um melhor do que o outro. E decidi ir até as últimas consequências. Não sabia que chamar 15 compositores seria tão mágico, tão maravilhoso, tão extraordinário. Achei que cada um ia fazer uma música, que eu ia gostar mais de umas, menos de outras. E de repente a gente tava num grupo de WhatsApp iluminado, e cada um mandava uma coisa, teve gente que mandou cinco músicas. E eram aquelas pessoas maravilhosas mandando coisas lindíssimas sobre a sensação que elas tinham sobre a Paulista, a relação delas com a avenida. E aí justificou tudo.
Uma coisa legal é que você fala politicamente sem explicitar as coisas da política. Quais são suas preocupações políticas neste momento do Brasil?
Eu vejo um mundo em pedaços, corrompido por uma ganância, por um egoísmo gigantesco. E eu percebo no Brasil que as pessoas não entendem a condição privilegiada que vivemos hoje. Elas ficam ainda dentro de um parâmetro de um mundo que já foi. As coisas são muito rápidas. Nós temos hoje um cenário onde o desemprego caiu radicalmente. Eu nunca fui um lulista, hoje eu sou. Por mais que o Lula seja algo anacrônico, com uma certa idade, que diz que a picanha é importante quando ela é um dos maiores motivos da nossa crise ambiental, entendo que é sobre fome que ele está falando. Sobre desigualdade. O problema, na minha opinião, está nas classes mais ricas, nas classes alta e média alta. O problema educacional sempre foi das classes mais ricas, porque essas pessoas são as mais egoístas que temos dentro da nossa sociedade. Eu não gosto de chamar de elite porque não é elite de nada, é uma elite do atraso, né? E eu acho que o teatro que faço tem um compromisso de chegar nessas pessoas de alguma maneira. Você não vai com um manifesto ou um sindicato em cima dessas pessoas, você consegue ir com poesia e tirar o tapete de baixo do pé delas, entende? E me interessa profundamente a reeducação dessas pessoas que se acham bem-educadas, que se acham bem formadas, mas sabem nada sobre o Brasil. Esse é o poder de transformação que a gente tem na nossa mão.
Como fazer essa reeducação?
Não adianta ficar discutindo horas, a gente tem que criar uma partitura emocional, uma jornada de herói que não seja panfletária e que seja mais ligada à essência do que essas pessoas mais humanistas, como Paulo Freire, tentaram propor, ou à luta que as pessoas tiveram por mais igualdade neste país. Obviamente o nosso problema é a desigualdade. E São Paulo é um símbolo perfeito para esse assunto. É o maior tráfego aéreo de helicópteros e a gente tem milhares e milhares de pessoas na rua. Só que agora a gente está vivendo outro mundo. Eu não achei que ia presenciar a decadência do Império Americano. E olha que coisa interessante e trágica e perigosa está acontecendo agora no mundo. Então as minhas preocupações políticas hoje são quase todas ligadas a uma tentativa de criar obras que sejam comoventes, sensoriais e inteligentes o bastante para lidar com o problema educacional que está nas classes mais abastadas.
Manus à obra - o novo agente de IA
Em um coworking mal iluminado em Shenzhen, na China, um grupo de engenheiros de software passava a noite monitorando o desempenho de um novo sistema de inteligência artificial. O zumbido dos servidores se misturava ao brilho das telas poucas horas antes do lançamento que agitaria o setor tecnológico em nível parecido com o burburinho causado pelo DeepSeek em janeiro deste ano, ao deixar em polvorosa o Vale do Silício e parte de Wall Street com a chegada do modelo R1.
O Manus AI é uma nova ferramenta de inteligência artificial autônoma lançada em março pela startup Butterfly Effect. Diferentemente de outros modelos de IA, como ChatGPT ou Gemini, ela não precisa de prompts de comando, mas apenas um conjunto de solicitações para que execute as ações de maneira livre, sem a necessidade de conversas constantes com o usuário. Um agente de IA que pode fazer com velocidade e destreza o que humanos produzem com um certo trabalho.
O que faz essa nova tecnologia chamar tanta atenção do mundo todo são dois pontos importantes: o primeiro é disponibilizar para os primeiros usuários uma versão beta do que até agora as gigantes do setor somente aspiram - um agente geral em funcionamento; o segundo é a capacidade chinesa de entregar produtos de IA com uma velocidade maior que a dos americanos.
A ferramenta
Apesar de apresentar um passo além dos demais, como o primeiro agente de IA de uso geral do mundo, o sistema funciona com base em modelos existentes. Pode interagir com a internet e executar uma sequência de tarefas sem recorrer à permissão de um humano, além de utilizar um mix de outras IAs, como Claude 3.5 Sonnet da Anthropic e os modelos Qwen do Alibaba.
A nova tecnologia ganhou um impulsionamento do próprio governo chinês, incluindo um destaque na programação da mídia estatal. Por ainda ser uma versão beta, a ferramenta está sendo liberada aos poucos para convidados, enquanto aceita cadastro de interessados em testá-la quando possível.
Agentes de IA já existem em alguns contextos – como o Operator da OpenAI, que executa ações por meio do navegador –, mas a diferença do Manus é sua capacidade de gerenciar fluxos complexos de trabalho, com diversos agentes menores realizando pequenas tarefas específicas, demonstrando sua natureza multimodal. Essa versatilidade permite a execução de variadas tarefas, da produção de artigos de pesquisa à elaboração de roteiros de viagens ou mesmo construção de sites inteiros do zero. A página oficial oferece vários exemplos de uso.
Graças a sua integração de ferramentas, ele pode interagir com navegadores de internet, APIs, editores de códigos e bancos de dados. Sua arquitetura multiagente, utilizando os modelos de IA da Anthropic e do Alibaba, oferece um agente que delega subtarefas a subagentes especializados em diferentes atividades, como geração de código e planejamento. É como se ele pudesse se dividir em várias mãos (do latim manus, daí o nome) para realizar diferentes trabalhos. Aliás, ele trabalha em segundo plano no computador, sendo projetado para iniciar tarefas sozinho, avaliar novas informações e ajustar sua abordagem dinamicamente. Como um verdadeiro agente de IA geral. Ou um funcionário hiper eficiente que nunca precisa de microgerenciamento.
É tudo isso mesmo?
Trabalhar com Manus pode ser como colaborar com um estagiário muito inteligente e eficiente. Mas às vezes ele pode não entender o que você está pedindo, fazer suposições incorretas ou simplificar a realização para ganhar tempo. Em um teste feito pelo MIT Technology Review, foi pedido que o agente fizesse uma lista de repórteres notáveis que cobrem tecnologia na China, mas ele só ofereceu cinco. Questionado sobre a razão da listagem sucinta, a resposta foi simples: preguiça. Uma nova solicitação pedindo mais rigor fez com que a busca trouxesse 30 nomes.
Apesar de ele prometer muito, ainda não entrega tudo. Respostas confusas, atrasos frustrantes e loops intermináveis podem atrapalhar a experiência. Isso porque os desenvolvedores não tiveram a mesma preocupação que gigantes do setor, como OpenAI e Google, estão tendo antes de liberar seus primeiros modelos.
Assim como outros agentes de IA baseados em raciocínio, como o ChatGPT DeepResearch, ele consegue dividir tarefas em etapas e navegar pela web com autonomia para encontrar as respostas que precisa para concluí-las. Mas o notável mesmo é sua tela de computador, que permite ao usuário ver o que ele está fazendo, podendo intervir a qualquer momento.
E a segurança?
Claro que todo esse avanço tecnológico vem acompanhado de preocupações éticas quanto ao uso e seus riscos em relação à segurança dos usuários. O que acontece se o agente vazar dados do seu cartão de crédito? Ou fotos íntimas guardadas em alguma pasta do computador? E se ele tomar a decisão errada e custar milhões a uma empresa?
Cientista-chefe de ética da Hugging Face, Margaret Mitchell estuda as questões éticas da IA agêntica. Apesar de essa tecnologia representar um avanço considerável no setor de inteligência artificial, sua pesquisa aponta que agentes totalmente autônomos teriam a capacidade de causar danos de diversas maneiras, como vulnerabilidades de segurança e maior suscetibilidade à manipulação.
Ela reconhece os benefícios trazidos por essas ferramentas, mas “essa flexibilidade também oferece aos agentes a possibilidade de fazerem coisas que não previmos se não inovamos cuidadosamente”. Algumas dessas consequências podem incluir fraude financeira, roubo de identidade e a capacidade da IA de se passar por pessoas sem seu consentimento.
Especialista em segurança cibernética de longa data do Ministério da Defesa do Reino Unido, Chris Duffy também se preocupa com a capacidade apresentada pelo produto da Butterfly Effect. “Manus é o desenvolvimento de IA mais alarmante que já vi até agora”, afirmou à revista Forbes. Preocupado com o potencial manipulador apresentado por um estudo de dezembro revelando que certos modelos de IA enganaram intencionalmente seus criadores para evitar alterações, ele alerta que “se o Manus for construído sobre bases semelhantes, isso levanta sérias preocupações sobre a IA ocultar ativamente suas intenções”.
Meio explica a IA
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Nossos leitores estão atentos aos movimentos da política no Brasil e no mundo, como a tentativa de anistiar quem atacou as sedes dos Poderes e a própria democracia e o exercício cada vez mais autocrático do poder por Donald Trump. Mas também há espaço para a cultura, a diversão e o meio ambiente. Confira os links mais clicados:
1. Estadão: A lista dos deputados que assinaram o pedido de urgência para o projeto que anistia os envolvidos no 8 de Janeiro.
2. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria deixa de lado os eufemismos ao chamar Donald Trump de tirano.
3. UOL: Nova plataforma dá visibilidade à cultura da Região Amazônica.
4. Meio: Uma feiticeira, um poeta e um messias brilham nas estreias da semana nos cinemas.
5. Washington Post: Como Paris melhorou a qualidade do próprio ar ao restringir o acesso de carros.