O Coliseu moral

Como a superioridade moral se tornou o prêmio máximo na política contemporânea
Muito se fala hoje do tal exibicionismo de virtude — expressão usada para criticar aqueles que ostentam em público sua suposta superioridade moral. Costuma-se ver nisso um problema de autenticidade: acusa-se o agente de dizer o que é certo, mas sem viver de acordo com o que prega. Mas há algo mais profundo em jogo.
A exibição de virtudes não depende, necessariamente, da insinceridade. Mesmo atos sinceros, motivados por convicção real, podem entrar nesse regime performativo quando passam a integrar uma lógica de visibilidade moral que funciona como capital simbólico. O problema não está apenas na falsidade. Está, sobretudo, no uso recorrente da virtude como instrumento de distinção, de afirmação pública e de mobilização afetiva.
Não é preciso que o gesto seja hipócrita para ser exibicionista. Basta que ele funcione como espetáculo — um teatro moral voltado a produzir indignação, reforçar identidades e atrair reconhecimento. Isso se torna especialmente eficaz em contextos digitais, nos quais o engajamento se mede em cliques, curtidas, visualizações e seguidores. Pessoas públicas cuja persona gira em torno da indignação — influenciadores “éticos”, comentaristas de costumes, militantes profissionais — mobilizam a virtude não apenas como valor, mas como recurso retórico e político. Não se trata de afirmar princípios, mas de construir autoridade simbólica, fundada na atividade de denunciar, condenar, advertir e se escandalizar — diariamente — em nome do bem.
Virtude é uma mercadoria valorizada porque atende a uma demanda crescente: a de sujeitos permanentemente ultrajados, escandalizados com a conduta moral dos outros.
Tenho dito que o mercado mais aquecido da vida pública contemporânea é o mercado de virtudes. Nele, é possível faturar muito, rapidamente e a custo baixo. Virtude é uma mercadoria valorizada porque atende a uma demanda crescente: a de sujeitos permanentemente ultrajados, escandalizados com a conduta moral dos outros — sobretudo dos outros do outro lado.
Essa demanda decorre da intensa moralização da política — e da ainda mais intensa politização da moral. Em um mundo em que tudo virou política, e toda política se converteu numa guerra moral entre justos e iníquos, a exibição da própria retidão e a denúncia da impureza alheia tornaram-se estratégias eficazes de produção de visibilidade, autoridade e prestígio.
Nesse ambiente, o exibicionista de virtudes não é o herói que imagina ser. Seu papel, na prática, é o de operador da indignação moral coletiva. Ele atua como vigilante em tempo integral. Passa o dia à procura de pecadores — reais ou imaginários — que possam ser levados à humilhação pública. Sua missão é denunciar os atos “inaceitáveis”, forçar arrependimentos, exigir retratações. E enquanto isso acontece — enquanto o acusado tropeça, se desculpa, ajoelha-se publicamente ou é simplesmente cancelado —, ele colhe os dividendos: fideliza seguidores, reforça sua autoridade moral, monetiza visualizações, ganha convites, cargos, colunas e amor tribal.
Esse personagem nem sempre age por má-fé. Ele pode acreditar na justeza do que faz. Mas opera dentro de uma economia performativa da moralidade, onde a virtude é mercadoria, a indignação é método — e o escândalo, moeda. Não basta ser bom. É preciso exibir-se como bom — e, mais ainda, mostrar que os outros são maus. O gesto moral só funciona quando encontra seu espelho invertido: o pecador do dia, o inimigo da causa, o sujeito que falhou e merece reprimenda.
Não basta ser virtuoso — é preciso que o outro seja infame. Pois é esse contraste que reforça a identidade do grupo e sustenta a autoridade do acusador. No fundo, trata-se de um modelo de negócio simbólico. O militante profissional da moralidade pública não atua apenas em nome do bem — ele lucra com o espetáculo do mal. Sua influência depende da renovação contínua de culpados. É um papel que exige manter a máquina de indignação moral em funcionamento constante.
Essa lógica, que parece espontânea e “do bem”, tem consequências sérias para a democracia. Ao substituir o conflito de projetos e visões por uma guerra de virtudes, ela transforma a política em um Coliseu moral, onde o objetivo não é convencer, mas humilhar, desmascarar, derrotar moralmente. Os grupos deixam de disputar projetos para disputar superioridade ética. A política se esvazia como arena de negociação — e se inflama como tribunal de pureza.
A denúncia, mais do que o argumento, virou a ferramenta central de engajamento. Não se quer ouvir, mas julgar; não se deseja responder, mas acusar.
Esse novo ambiente político não é apenas polarizado, mas moralizado até o limite. A política se torna um espetáculo no qual a performance moral vale mais que a formulação programática, e onde o compromisso com princípios é medido pelo volume da indignação e pela frequência com que se aponta o dedo. A denúncia, mais do que o argumento, virou a ferramenta central de engajamento. Não se quer ouvir, mas julgar; não se deseja responder, mas acusar. E como a acusação moral sempre carrega uma carga simbólica poderosa, a política se torna um campo de exibição de superioridade — não uma arena de persuasão, mas uma vitrine de virtude.
A esse fenômeno tem-se chamado, com razão, de virtue signalling, a virtude que se mostra (e se “amostra”) para que todos notem. O termo foi popularizado pelo jornalista britânico James Bartholomew em 2015, num artigo no The Spectator, e rapidamente ganhou tração no debate anglófono. Desde então, passou a designar gestos públicos de exibição de virtudes morais — compaixão, justiça, coragem — que não implicam necessariamente ação concreta, mas funcionam como sinal para o grupo: “estou do lado certo”. Eis o uso estratégico da virtude como capital simbólico. Não basta fazer o bem; é preciso ser visto fazendo, e ser lido como alguém que faz — preferencialmente, mais e melhor que os demais.
Essa lógica moralizante também sustenta a figura do social justice warrior, ou SJW. A expressão, que já teve usos neutros ou até elogiosos, passou a ser usada de forma pejorativa a partir de 2014, durante a controvérsia conhecida como Gamergate. O SJW se tornou a encarnação caricata do militante progressista que transforma todo espaço — da universidade ao entretenimento — em campo de batalha moral, exigindo que qualquer gesto, linguagem ou representação esteja alinhado com um padrão ideológico rígido. Mas mais importante do que a crítica pontual a esse comportamento é a estrutura performativa que ele revela: o ativismo deixa de buscar mudança institucional ou transformação de consciências, e passa a operar como teatro de reafirmação moral. A política vira palco — e os mais aplaudidos são os que denunciam melhor, com mais fúria, mais pureza, mais contundência.
A consequência desse regime é o deslocamento da política como prática deliberativa para um sistema de reputações morais em disputa. O que está em jogo não é tanto o conteúdo da causa, mas a posição simbólica ocupada pelo agente. A retidão pessoal, a coerência absoluta e a intolerância a nuances tornam-se virtudes superiores à capacidade de articular maiorias, dialogar com diferentes ou desenhar compromissos imperfeitos. O moralista performativo é, muitas vezes, ineficaz para produzir mudança no mundo real — mas é altamente eficaz em reforçar a identidade do grupo.
O filósofo Michael Walzer advertiu, décadas atrás, contra a “política dos justos” — uma forma de engajamento público que não busca composição nem vitória, mas proporciona o alívio da coerência moral. Seu problema não é a falta de princípios, mas o excesso de rigidez. É uma política que prefere perder com honra a ganhar com concessão. Mas, como lembrou Walzer, a democracia exige compromisso, coalizão, reconhecimento da legitimidade do outro. A política dos justos transforma adversários em pecadores — e negociar com eles em pecado.
Ao privilegiar a superioridade moral como principal critério de valor, sacrifica-se a dimensão mais propriamente política da política: a negociação, o compromisso, a institucionalidade, a aceitação da ambiguidade.
Essa transformação tem efeitos visíveis. Ao privilegiar a superioridade moral como principal critério de valor, sacrifica-se a dimensão mais propriamente política da política: a negociação, o compromisso, a institucionalidade, a aceitação da ambiguidade. Abre-se mão da arte de governar em nome do prazer de condenar. Em vez de representar setores diversos da sociedade, o político performativo representa o inconsciente moral do grupo: fala em nome de uma ira legítima, mas que, sem mediação, torna-se estéril e autocomplacente. Perde-se a possibilidade de coalizão, de governabilidade, de maioria. A virtude ocupa o lugar do voto.
Isaiah Berlin, crítico agudo das ideologias totalizantes, advertiu contra o perigo das doutrinas com vocação de pureza. Em sua defesa do pluralismo, Berlin lembrava que os valores humanos são frequentemente inconciliáveis, e que buscar harmonia moral absoluta é receita segura para o autoritarismo. A política moralizada, no entanto, não reconhece conflitos legítimos de valores — apenas pecados e pecadores. A impureza do outro não é uma diferença a ser negociada, mas uma deformidade ética a ser expurgada. Nesse cenário, o espaço público degrada-se em tribunal: cada fala é julgamento; cada silêncio, suspeita; cada adversário, um réu.
Na prática, cria-se uma democracia de puros — onde os únicos autorizados a participar são os que confirmam o código moral do grupo, e os demais são denunciados, expostos, expurgados. O custo disso é a asfixia do pluralismo, a erosão da confiança mútua, a treta em lugar do trato, dos acordos, ainda que imperfeitos, porque imperfeita é a sociedade. E, sobretudo, a substituição da ação transformadora por um narcisismo moral que se basta em sua própria retidão.
O pior é que no Coliseu moral em que a política se transformou não há parâmetros, critérios reconhecidos por todos para determinar quem venceu a escaramuça do dia. Cada lado se declara moralmente vitorioso, mesmo quando nada foi conquistado no mundo real. Todos se proclamam vencedores — para si mesmos — porque o julgamento é sempre interno ao grupo, e a validação vem da própria tribo. Não há deliberação pública, apenas liturgia de reafirmação. Como no verso de Fernando Pessoa, são “gênios para si mesmos”, confinados em mansardas simbólicas, tão satisfeitos com sua altivez quanto irrelevantes de fato.
No final, o que se tem não é mais política, mas ritual. Um ritual diário de reafirmação tribal, cujo principal objetivo é assegurar que continuamos do lado certo — e que os outros continuem claramente identificáveis como os errados. Trata-se de uma ética da distinção, não da construção. Uma moral de identidade, não de alteridade. Um teatro da denúncia, não da deliberação.
A política, se ainda nos interessa, precisará reencontrar o caminho da imperfeição: reconhecer que nenhum lado tem o monopólio da virtude, que toda convivência exige concessão — e que, sem isso, só resta o Coliseu. E nele, todos sangram. Mesmo os justos.
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