Edição de sábado: Sonho e pesadelo na Casa Branca

Com quase 250 anos de ininterrupta – até o momento – tradição democrática, os Estados Unidos colecionam presidentes com as mais diversas biografias, inclinações políticas e graus de competência. Esse amplo catálogo de exemplos faz com que, especialmente ao longo do século 20, mandatários fossem buscar no passado uma espécie de declaração de princípios, um apanhado do que consideravam relevante na História do país e uma inspiração para o que pretendiam ser seu próprio legado. Ser associado a um “bom presidente” é o desejo de todo inquilino da Casa Branca, enquanto ninguém quer ser lembrado, por exemplo, como um “novo Richard Nixon”, que renunciou em 1974 para não sofrer um impeachment.
Ao mesmo tempo 45º e 47º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump deixa bem clara sua principal inspiração: William McKinley, que governou o país entre 1897 e 1901. Tanto que o citou nominalmente em seu discurso de posse, afirmando que ele era “um homem de negócios nato” e “fez o país muito rico por meio de talento e tarifas [comerciais]”. McKinley não fez o país apenas rico, o fez maior. Foi o último presidente a ampliar o território, e esse feito paira sobre as pretensões de Trump em relação à Groenlândia, por exemplo.
O problema é que a História nem sempre aceita o combinado ou desejado. Com menos de três meses de mandato, Trump vem entregando a agenda populista, reacionária e disruptiva que prometeu ao longo da campanha eleitoral, mas nas últimas duas semanas se viu diante de um problema justamente em uma das marcas de McKinley: as tarifas comerciais. Com pânico nos mercados atingindo até os estabilíssimos títulos do Tesouro e o presidente preso em um aparente “quem piscar primeiro perde” com a China, analistas falam abertamente em uma recessão local ou global. E isso joga sobre Trump uma sombra que ele detesta, a de Herbert Hoover, que entrou para a História como “o presidente da Grande Depressão”.
Mas quem foram esses homens e por que pairam sobre o sujeito do topete dourado?
De soldado a presidente
William McKinley (1843-1901) está longe de ser um presidente lembrado, para bem ou para mal. Em uma pesquisa do Gallup feita em 2011 sobre os melhores presidentes que o país já teve, ele ficou na multidão que não chegou a meio ponto percentual. O que não deixa de surpreender, uma vez que seu legado moldou o que os Estados Unidos viriam a ser no século 20.
Trump tem McKinley como modelo, mas suas biografias são bem diferentes. O atual presidente é o único ocupante do cargo a jamais ter servido em algum ramo das Forças Armadas – nem mesmo na Guarda Nacional, onde George W. Bush foi se refugiar para escapar do Vietnã – ou exercido um cargo público. McKinley, por sua vez, foi o último presidente a ter combatido na Guerra Civil (1861-1865), alistando-se aos 18 anos como soldado da União em seu Ohio natal e terminando o conflito como major honorário.
Passada a guerra, estabeleceu-se como advogado, casou-se e iniciou uma carreira política, elegendo-se para o Congresso em 1877 pelo Partido Republicano.
Cabe aqui uma explicação. Diferentemente do que acontece hoje, os republicanos eram então mais urbanos e progressistas que os democratas. Abraham Lincoln, que liderou a União na Guerra Civil e levou ao fim a escravidão, era republicano.
A economia foi um ponto marcante de sua atuação política desde o início. No melhor estilo nacional-desenvolvimentista, defendia o uso de tarifas comerciais como proteção para que a indústria local florescesse. Também se viu envolvido no grande debate da época – que só seria resolvido em seu governo – sobre a cunhagem de dólares na mais barata prata em vez do padrão ouro, o que injetaria mais dinheiro na combalida economia, mas teria efeitos inflacionários.
Salvo um breve período em que ficou de fora do Congresso, McKinley cresceu politicamente até se eleger governador de Ohio em 1892. Seu governo foi marcado por uma política de conciliação de capital e trabalho, criando comitês para arbitrar disputas trabalhistas e multando empresas que demitiam empregados por se sindicalizarem, ao mesmo tempo em que oferecia incentivos para que negócios se instalassem no estado. De família tradicionalmente abolicionista e ex-soldado da União, adotou políticas que beneficiaram a população negra, tornando-se muito popular nesse grupo.
Suas ambições, claro, eram maiores. Os republicanos haviam amargado uma derrota nas eleições de 1892, quando o impopular presidente Benjamin Harrison foi batido pelo democrata Grover Cleveland, mas uma depressão econômica iniciada no ano seguinte animou o partido a retomar o poder em 1896. Harrison queria ser candidato, mas terminou atropelado na convenção republica por McKinley, tendo à frente de sua campanha o hábil e rico empresário Mark Hanna, que o acompanharia por toda a carreira.
A situação também era complicada no lado democrata. Diante do caos na economia, o partido não apoiou a natural candidatura de Cleveland à reeleição, apostando em William Jennings Bryan, mas não adiantou. Na disputa entre os xarás, McKinley levou a melhor.
Nasce um império
A vitória não representou apenas a volta dos republicanos à Casa Branca. O resultado redesenhou o mapa político do país de uma forma virtualmente inversa à que vemos hoje. Sob o comando de McKinley, o partido arrebatou o Norte industrializado e a Costa Oeste, com os democratas relegados ao Sul agrário e menos rico, um realinhamento que duraria quase quatro décadas.
Empossado em 4 de março de 1897, o novo presidente se viu enredado em uma disputa externa. Cuba, joia da coroa imperial espanhola no Caribe, estava havia dois anos em franca rebelião, apoiada por empresários e pela população dos Estados Unidos, onde ecoava forte a doutrina estabelecida em 1823 pelo presidente James Monroe contra a presença de potências coloniais europeias nas Américas. Com o agravamento das tensões, McKinley enviou em fevereiro de 1898 um navio de guerra, o USS Maine, para o porto de Havana, onde a embarcação explodiu e afundou, matando 266 homens.
O clamor popular só fez aumentar quando, em março, uma comissão de investigação concluiu que a explosão foi causada por uma mina submersa, possivelmente colocada pelas forças espanholas para bloquear o porto. Não querendo se comprometer, o presidente deferiu ao Congresso a decisão sobre como reagir, ao que os deputados responderam declarando guerra à Espanha no dia 20 de abril. O conflito não ficou restrito ao Caribe, estendendo-se às possessões coloniais espanholas na Ásia.
Modernizadas e profissionalizadas desde a Guerra Civil e contando com avanços tecnológicos como telefones e ampla cobertura por telégrafo, as Forças Armadas americanas não deram chance aos espanhóis, que perderam boa parte de sua frota naval na Batalha da Baía de Manila, nas Filipinas. No dia 22 de junho, uma força expedicionária desembarcou em Cuba, dominando a ilha em menos de um mês. Em julho, tropas americanas invadiram Porto Rico, cortando as linhas de abastecimento espanholas e selando o conflito.
A guerra foi encerrada de fato em 12 de agosto, e, em 18 de dezembro, um tratado de paz foi assinado em Madri. As colônias espanholas das Filipinas, de Porto Rico e de Guam, uma ilha na Micronésia, passaram a ser territórios americanos, enquanto Cuba se tornou um protetorado dos Estados Unidos até sua independência formal em 1902. Em troca, a Espanha recebeu US$ 20 milhões, cerca de US$ 750 milhões em valores atuais. As Filipinas se tornaram independentes em 1946, enquanto Guam e Porto Rico pertencem aos EUA até hoje.
Uma vez provado, o imperialismo era irresistível. Em 1898 o Congresso aprovou um antigo desejo do presidente, anexar a República do Havaí, criada cinco anos antes com a derrubada da monarquia local por forças americanas. Desde a marcha para o Oeste, nenhum presidente havia acrescentado tantos territórios ao país, e nenhum o faria depois. A intervenção americana na Rebelião dos Boxers na China, em 1900, colocou o país de vez como um jogador de peso na política internacional.
A guerra com a Espanha ressaltou um problema enfrentado pelos americanos desde a conquista da Costa Oeste: a dificuldade de movimentar navios entre o Atlântico e o Pacífico, contornando a América do Sul e o Estreito de Magalhães. Havia décadas que Estados Unidos e Inglaterra negociavam a construção de um canal na América Central, e coube a McKinley assinar os tratados para sua construção, mas ele não viveu para ver o Canal do Panamá ser aprovado e construído.
Ouro e tarifas
No campo econômico, William McKinley disse logo a que veio, sancionando com cinco meses de mandato uma lei elevando tarifas de importação sobre lã, açúcar e artigos de luxo. Em um movimento semelhante ao que Trump diz buscar agora, seus negociadores se sentaram com franceses e depois britânicos para fechar acordos comerciais bilaterais, intensificando o comércio entre os países e aquecendo a economia americana.
Outro tema sobre a mesa era a adoção do “padrão prata” para aumentar a circulação de moeda na economia. O presidente dizia aceitar a medida somente no âmbito de um acordo internacional com outras potências econômicas, o que não foi conseguido. Mas o aumento da extração de ouro no Canadá e na Austrália fez com que a pressão pela moeda de prata arrefecesse. Em 1900, o Congresso aprovou uma lei atrelando o dólar ao ouro, o que só seria mudado por Nixon em 1971.
Um aspecto do governo de McKinley que deixou a desejar foi a situação da população negra, justamente a que tinha mais esperanças com sua presidência. Disposto a pacificar de vez a relação com os estados do Sul, o presidente, ao contrário do que fizera como governador, silenciou sobre linchamentos e outras ações violentas de supremacistas brancos. Fora determinar que militares negros fossem promovidos para além da patente de tenente, ele foi uma nulidade na luta contra a discriminação racial.
Má hora para uma visita
Ancorado em conquistas territoriais e prosperidade econômica, William McKinley teve a candidatura à reeleição aprovada com facilidade na convenção republicana de 1900. Como Garret Hobart, seu colega de chapa na disputa anterior, havia morrido um ano antes, foi escolhido para vice Theodore Roosevelt, um jovem (42 anos) e altamente popular ex-militar. Pelo lado democrata, William Jennings Bryan tentou de novo, mas perdeu por uma margem ainda maior e não conseguiu vencer no próprio estado, Nebraska.
Ora, com uma presidência tão bem-sucedida e uma reeleição fácil, como é possível que McKinley acabasse relegado ao “baixo clero” dos ex-presidentes americanos? Dois fatores pesaram – aliás, três, se contarmos individualmente os dois tiros que o mataram.
A virada dos séculos 19 e 20 foi marcada por intensa agitação e violência política. Não, não era o comunismo, mas o anarquismo que pegava em armas pelo mundo. Em 1898, a imperatriz Elisabeth da Áustria (a Sissi dos filmes e séries) foi morta a facadas durante uma visita a Genebra por um militante anarquista. Dois anos depois foi a vez de Umberto I, rei da Itália, morrer baleado também por um anarquista.
A expansão do movimento nos Estados Unidos deixou autoridades em alerta, mas não o bastante. No dia 6 de setembro de 1901, William McKinley visitava o Templo da Música na Exposição Panamericana em Búfalo (NY), quando o operário anarquista Leon Czolgosz se aproximou com uma arma escondida em um guardanapo e fez dois disparos a queima-roupa. Os médicos que o atenderam conseguiram localizar e retirar uma das balas, mas não a segunda, e oito dias depois o presidente morreu em decorrência de uma gangrena.
O assassinato em si não seria o bastante para jogar McKinley para o rodapé da História, mas entrou em cena seu sucessor. Teddy Roosevelt herdou uma economia nos trilhos, o que lhe permitiu levar a cabo o Canal do Panamá, expandir o poderio externo americano e implementar políticas de forte apelo popular. Tudo isso aliado a uma imagem de jovem aventureiro, ao mesmo tempo caçador e conservacionista, responsável pela criação de parques nacionais e monumentos. Para completar, ganhou o Nobel da Paz em 1906 ao atuar pelo fim da guerra entre Japão e Rússia. Enfim, era difícil competir.
Com esse, não!
Se William McKinley é o sonho de Donald Trump – fora, provavelmente, a parte do assassinato e a substituição pelo jovem vice –, Herbert Hoover é seu pesadelo. E, de certa forma, foi ele quem trouxe para si a comparação. Em janeiro do ano passado, já pré-candidatíssimo à Casa Branca, previu que a economia americana caminhava para um colapso e disse esperar que isso acontecesse ainda em 2024 para que não fosse “um novo Hoover”. No dia seguinte, o presidente Joe Biden o fustigou em um vídeo, afirmando que ele já o era. “É o primeiro presidente desde Hoover a ver terminar o mandato com menos empregos no país”, completou.
A má fama do 31º presidente dos Estados Unidos pode nem ser de todo justa, mas é compreensível. Último representante do ciclo de dominação republicana iniciado por McKinley, Hoover era quase um recém-chegado no partido, tendo participado ativamente do governo do democrata Woodrow Wilson no comando da Agência de Alimentos dos Estados Unidos, responsável pelo racionamento, o controle de preços e a gestão de provisões durante a participação do país na Primeira Guerra. Internacionalista, defendia a Liga das Nações, precursora da ONU, e criticava as sanções duríssimas impostas à Alemanha após o conflito. Acreditava na ciência e tinha uma participação ativa em sua alma mater, a Universidade de Stanford. Já republicano, serviu como secretário (ministro) do Comércio de Calvin Coolidge e, quando este decidiu não concorrer em 1928, conquistou a indicação do partido.
No meio do caminho havia um crash
Tomou posse em 4 de março de 1929 imaginando que teria pela frente a intensa prosperidade vista no mandato de seu antecessor e pretendia, segundo seu discurso de posse, usá-la para erradicar a pobreza do país. Era contra a intervenção direta do Estado na economia, defendendo o chamado “voluntarismo”, uma parceria entre governo, população e setor privado.
O problema é que já havia rachaduras no arranha-céus da economia. Boa parte dos ganhos nos anos de prosperidade foi direto para a especulação no mercado de ações. Pouco ou nada regulados, os bancos emprestavam à larga para quem queria aplicar na bolsa por meio dos próprios bancos, com casas, empresas e fazendas sendo dadas como garantia. O que poderia dar errado? Muita coisa. Com excesso de produção e competição com importados, o setor agrícola vinha enfrentando quedas nos preços; o consumo e a poupança vinham declinando paulatinamente, tanto pelo achatamento de salários quanto pelo direcionamento de dinheiro para a especulação em ações.
O castelo de cartas desmoronou na última semana de outubro, com uma sucessão de quedas acentuadas na Bolsa de Nova York e a consequente quebra de confiança no sistema bancário. Grandes investidores, prevendo o movimento, haviam começado a vender seus papéis em setembro, mas a grande massa de novos aplicadores foi pega de calças arriadas. Após o primeiro crash, no dia 24, os grande bancos se uniram para tentar inflar o preços das ações e salvar o mercado, mas o esforço não impediu uma nova grande quebra no dia 29. Começada a Grande Depressão estava.
Empresas quebraram, famílias perderam suas economias, suas casas, suas fazendas. Na esteira do desastre americano, outras economias que dependiam dos Estados Unidos foram ladeira abaixo. Uma delas foi a alemã, provocando uma crise que ajudou na ascensão ao poder dos nazistas. Medidas foram tomadas, como a separação entre bancos comerciais e bancos de investimento e a adoção do hoje comum circuit breaker, sistema que interrompe os negócios nas bolsas diante de altas ou baixas muito acentuadas. Mas não foram suficientes para conter a derrocada do mercado.
Alertas ignorados
No período anterior ao crash, Hoover havia recebido alertas de que havia uma crise potencial em gestação, mas temia intervir no setor bancário para conter a especulação. Nos dias seguintes à primeira quebra, reuniu-se com empresários e sindicatos para negociar a manutenção de salários e empregos e evitar greves. Imaginava que crise, embora séria, seria breve. Ao mesmo tempo, era contra iniciativas governamentais de auxílio aos desempregados e falidos. Ainda acreditava que o voluntarismo era a saída.
A quebra da bolsa não foi o único elemento da crise – e aí voltamos ao paralelo com Trump. Embora entusiasta da cooperação entre os países, Hoover aceitava a ideia de impor tarifas limitadas à importação de produtos agrícolas, diante das dificuldades enfrentadas pelo setor no país, e já havia um movimento nesse sentido no Congresso. O descarrilamento da economia, porém, ligou o modo protecionista completo no Legislativo.
Em março de 1930 foi aprovada a Lei de Tarifas – conhecida como Lei Smoot-Howley devido ao nome de seus autores no Senado e na Câmara –, que elevou as taxas de importação para mais de 20 mil produtos. Mais de mil economistas de renome escreveram uma carta aberta apontando os riscos que a lei representava e pedindo que Hoover a vetasse, iniciativa endossada por barões da indústria e do setor bancário. Mas a pressão política foi mais forte, e o presidente sancionou a medida em junho.
O resultado foi o previsto pelos especialistas. Países atingidos pelas taxações criaram ou elevaram tarifas em retaliação, derrubando as exportações americanas, que cairiam 66% até 1933. A queda na demanda provocou demissões em todos os setores exportadores, agravando o desemprego e desaquecendo ainda mais a economia. Não se faz História contrafactual, mas é impossível não imaginar que a Depressão seria menos intensa se o comércio global tivesse sido preservado.
Outro detalhe importante que faz a ponte entre os dois presidentes é que Hoover combateu com vigor a imigração ilegal, especialmente do México, sob a justificativa de proteger empregos americanos. Estima-se que entre 300 mil de dois milhões de mexicanos tenham sido repatriados em seu governo, o que não impediu que o desemprego passasse de 11% em 1933 – daí a referência feita por Joe Biden no vídeo que citamos lá em cima.
Para completar o quadro, o presidente defendia que a população cumprisse a 18ª Emenda à Constituição, conhecida nos EUA como Prohibition e no Brasil como Lei Seca, que criminalizava a produção, transporte, venda, compra e consumo de bebidas alcoólicas. Aprovada em 1919, durante uma onda moralista, a lei vinha se tornando cada vez mais impopular, tanto por manter na ilegalidade um importante setor da economia como por impedir que uma vítima da Grande Depressão afogasse as mágoas sem correr o risco de ir preso.
Um passeio eleitoral
Vamos combinar que o democrata Franklin Roosevelt, primo distante de Theodore Roosevelt, não teve muito trabalho nas eleições de 1932. Com uma plataforma que podia se resumir a “não ser Herbert Hoover”, ele venceu em 42 dos 48 estados – Alasca e Havaí ainda eram territórios. Roosevelt botou em prática o New Deal (Novo Acordo), um amplo programa socioeconômico com pesada intervenção estatal para estimular a economia focado nos “três Rs” (em inglês): alívio (relief) para os desempregados e pobres, recuperação dos níveis normais da economia e reforma do sistema financeiro para evitar uma nova depressão.
Em seu primeiro governo, negociou uma série de amplos acordos comerciais que repuseram em movimento o comércio global, criou um sistema de regulação da produção agrícola para garantir os preços e a lucratividade das fazendas e estimulou frentes de trabalho para desempregados. É bem verdade que a corrida armamentista da segunda metade da década de 1930 e a Segunda Guerra deram o estímulo final de que a economia americana precisava, mas Roosevelt, que morreu em abril de 1945, em seu quarto mandato, entrou para a História como um dos mais festejados presidentes dos Estados Unidos, enquanto Herbert Hoover se tornou anátema.
Em que pese a comparação de Biden, Donald Trump não é Hoover, que era um homem ilustrado, administrador público experiente, tinha reservas às tarifas e pegou o país já com uma crise em gestação. Mas o atual presidente caminha numa trilha já malsucedida de desmonte do sistema internacional de comércio, dando sustos nos mercados globais com suas idas e vindas e dobrando dia após dia a aposta de confronto com a China, a segunda maior economia do planeta – e uma ditadura, onde o povo não pode dizer nas urnas que o governante está errado. Caso pague para ver, pode jogar seu país e mundo numa crise séria e ter o destino de Hoover, que, pensando bem, ainda foi melhor que o de McKinley.
A boba da corte
Publicitária, roteirista da Globo, podcaster, colunista da Folha. A voz de Tati Bernardi certamente é daquelas que se faz ouvir, porque não traz nenhum compromisso com o comedimento. Descendente de italianos, criada no Tatuapé, “morava do lado do metrô Carrão. Não é o Tatuapé de rico da Anália Franco, de fato era a periferia. Mas era numa casa bonita”, Tati atravessa a ponte — que é como os paulistanos da elite dizem de quem migra para o mundo encantado do Centro Expandido —, para primeiro conquistar a elite do dinheiro e, depois, a intelectual. Essa é a história que ela conta em a Boba da Corte, seu mais novo livro, lançado pela Fósforo Editora. Mas é também uma história de amor, marcada por muitos amores e desamores e temperada pela ironia. Sempre de uma perspectiva ultra pessoal, uma ficção que parte da realidade, como os textos de seus ídolos Annie Ernaux e Édouard Louis, e não poupa ninguém, nem a si mesma. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Na corte, o bobo é sempre aquela figura que tem o álibi para dizer as verdades sobre o manto do humor. Qual é a verdade mais importante de ser dita à corte paulistana?
Esse é um livro é sobre códigos. Não é um livro com uma pretensão sociológica, ele não tem a pretensão — que seria bem ridículo da minha parte — de contar da minha trajetória. Sou uma mulher branca, nasci no Tatuapé, que não é centro expandido, mas estudei em colégio particular, nunca me faltou nada. Então não é a trajetória de sofrimento para chegar e ascender. Quando, aos 20 anos, vou morar em Perdizes pela primeira vez e começo a trabalhar na W Brasil, me sinto absolutamente sem saber como me comportar com esses códigos. Eu só ia imitando, imitava a roupa, o jeito de falar ali com 20 e poucos anos. Imitava até onde dava, às vezes ficava estouradíssima no cartão de crédito de tanto imitar. Queria me vestir igual, falar igual, ir nos mesmos restaurantes. Isso também é uma chegada numa elite de grana. Não tem nada a ver com a elite intelectual. A primeira elite que eu conheço é uma elite de dinheiro, com novo rico mas não todos. Depois, quando eu entendo que o que quero mesmo é ser uma escritora e pertencer a uma grupo de pessoas mais intelectualizadas, aí sim eu conheço a elite intelectual. E aí o que eu acho que tem de importante a dizer é que tanto essa elite do dinheiro, quanto a elite intelectual de pessoas mais da esquerda tentaram me mostrar que eu precisava fazer algo para me encaixar. Só que a elite da grana é muito escancarada nisso, né? Fala: “Olha, você tem que sentar mais reta, você tem que falar mais baixo, você tem que não se expor tanto, você não está se comportando como uma mocinha que vai conseguir casar e ser mãe e crescer dentro de uma empresa, — e daí crescer dentro de uma empresa era ser subalterna para sempre, né? Só que era tão escancarado que aquilo não me pegava muito. Era muito óbvio que aquilo era machista, que era escroto. Na elite intelectual de esquerda, isso tudo é muito maquiado. Eu não entendia direito qual era meu mal-estar, mas sabia que algo tava sendo dito, só que dito de uma forma muito cirandeira. Então era assim: “Você precisa meditar mais, ser mais calma, espirar, você não respira, você precisa ler mais, sei lá, Campbell. [risos] Ia para meditação, para yoga, lia a caralha do Campbell. Quando percebi que na verdade era a mesma coisa: não seja uma mulher com a com a sua força, que vem também de uma família italiana, suburbana.
Tem uma força que vem desse lugar não elegante, e o que eu percebi é que tanto a direita quanto a esquerda me cobravam elegância, sabe? Que a direita chama de elegância da mulher fina e a esquerda chama de elegância do caráter. Mas na verdade tudo era para dar uma calada na suburbana. A outra coisa é: quando eu acendo para ser elite intelectual, percebo que eu fico amiga muito rapidamente e encantada muito rapidamente pelos pais e os avós das pessoas que eu me relaciono. A pessoa é um lorde, é um príncipe. Mas aí quando eu conheço o pai ou o avô da pessoa, ele é o cara que fez o que eu estou fazendo. Que veio do nada nada e sei lá como se tornou um, sei lá, um artista plástico, um escritor ou um arquiteto. Ninguém deu nada para ele. Morava numa casa que não tinha livro, na puta que pariu, não tinha grana.
Ganhar dinheiro continua sendo uma coisa central na sua vida?
Hoje eu faço as coisas que eu gosto de fazer muito. Em 13 anos que eu fiquei na Globo, eu colaborei em um monte de programa que eu não gostava de fazer, mas acho que 70% do que eu fiz na Globo eu gostava. Trabalhei oito, nove anos em agência de publicidade. Quatro deles gostando muito e os últimos três anos achando aquilo insuportável. Hoje tenho uma vida em que eu trabalho muito, mas isso é um grande privilégio. Construí uma carreira em que atiro para todo lado, mas em coisas que eu tenho muito prazer em fazer. E ainda tenho isso de querer prosperar, de querer poder me dar uma vida confortável, dar uma vida confortável para minha mãe e para o meu pai. Eu fiquei pensando muito porque que o [Guilherme] Boluos perdeu. Tenho pavor do [Pablo] Marçal, mas quando ele apareceu, eu, por vir do Tatuapé, entendia onde que o discurso dele pega. Ele fala para as pessoas: “Você pode ficar rico, se você ralar”. E o Bolos é o cara que nasceu em Perdizes e foi morar na periferia. A real é que cresci num lugar em que a gente é ensinado a ser esperto. Tenha a esperteza das ruas e ganhe teu dinheiro, é possível ficar rico. É uma meritocracia que a direita roubou e hoje em dia é um discurso fascista, mas ele é uma coisa que tira a gente da ZL, entende? E aí você olha o Boulos, que nasceu estudando em colégio particular, fez USP, família de médico, e o cara faz o inverso e vai para a periferia. A galera da periferia acha ele burro. Quer ser o Marçal, um cara que era bizarramente feio, fez 800 coisas com o corpo e com a cara dele e hoje em dia pega essa loirinha gostosinha aqui, não importa se ela é uma anta. Hoje em dia, eu me considero elite intelectual, moradora de Higienópolis. Tenho horror ao Marçal e amo o Boulos. Mas acho que há 25 anos, se alguém falasse para mim essa história, talvez eu gostasse mais do Marçal.
Tem um ponto que eu acho que é muito legal não só nesse livro, na sua obra inteira, assim, que é a autoironia. O quanto ela é importante para a sua escrita e como você chegou neste lugar?
Venho dessa família muito de autoirônica, de se zoar o tempo inteiro. A minha mãe é assim, e eu sou a mais de todos ali, com certeza absoluta. Venho de uma família que ri muito um da cara do outro. E muito nova, eu começo a gostar de Woody Allen, o que hoje em dia é perigosíssimo. Mas eu era obcecada por ele minha juventude inteira, então esse humor autodepreciativo é uma coisa de que eu gosto. Sempre fui muito obsessiva e neurótica, desde criança, muito pensamento intrusivo. Eu percebia que o que me tranquilizava e me fazia relaxar era que quando eu contava para alguém as coisas que estava pensando, a pessoa tinha um ataque de riso. E sempre que alguém ria, eu ficava em paz. Depois, já com pouco mais estratégia, quando eu entendi que eu seria uma escritora autobiográfica, saquei muito rapidamente que só poderia ser perdoada, ainda mais sendo mulher, se estivesse falando de mim mesma de um lugar de queda, de falha, de furo, de buraco. Primeiro eu já tinha esse prazer imenso, eu adoro me esculachar nas colunas, nos livros. Depois porque já que ela vai fazer um livro de 100 páginas falando dela, que pelo menos seja para se esculachar, porque senão é impossível ler. Se eu tivesse feito um livro sobre a trajetória da heroína, seria insuportável. Você atura um livro militante de trajetória da heroína só de uma mulher preta periférica, mas ser for mulher branca você dá um tiro, né? Especificamente para esse livro, eu preciso rir de mim, porque eu me tornei a elite intelectual com grana. Então, eu tô rindo, eu tô rindo dos outros com esses códigos, mas eu tô rindo porque eu me tornei isso, né? Seria injusto eu não me não me colocar nesse meio.
Essa é uma leitura muito minha, mas eu vi A Boba da Corte também como um livro de amor.
Ah, total, total. Você não sabe como foi sofrido escrever esse livro. Eu mostrei para umas três amigas e falei: “Cara, você acha que eu vou magoar?” Elas falaram: “Não, eu acho que você tá até exagerando no tanto que você ama. Você dá umas duas zoadas, mas basicamente você diz que a pessoa é o maior amor na vida e o melhor o sexo da sua vida. Então, se magoar, é porque a pessoa não entendeu o livro.” Isso de certa forma me liberou, sabe? Porque eu nunca senti isso na minha vida. Sempre caguei na cabeça de todo mundo, expus, não tava nem aí. Essa foi a primeira pessoa que eu falei: “Eu não vou conseguir.” O livro pronto, a editora querendo mandar para imprimir e eu chorava e falava: “Eu não posso fazer isso, amo ele, não posso.” Aí decidi mandar o livro para ele. Sei que não deve ter agradado, mas a hora em que ele falou que tudo bem lançar, parece que tirou um demônio de cima das minhas costas, entendeu? E, assim, eu dou risada de quem eu amo, né?
O teto que falta sobre as cabeças
“Se fazer a quantidade de casas que nós estamos fazendo [8 milhões] ainda não dá conta de vencer esse tal de déficit habitacional, é preciso que a gente seja criativo e pense mais”. Essa fala do presidente Lula foi dita na última terça-feira, durante o Encontro Internacional da Indústria da Construção, em São Paulo. Segundo o chefe do Executivo, há mais de 50 anos faltam 7 milhões de moradias adequadas no Brasil e que, por isso, o país estaria “enxugando gelo” nesse problema.
Muito além da contagem de casas, o déficit habitacional no Brasil é medido por um conjunto de fatores que revelam as condições precárias em que vivem milhões de brasileiros. São consideradas moradias inadequadas aquelas feitas com materiais frágeis, improvisadas, em áreas de risco ou com número excessivo de moradores por cômodo, especialmente nos casos de coabitação forçada. Residências sem acesso a esgoto, energia elétrica ou água encanada, embora precárias, não entram nessa conta, pois o foco do cálculo está na necessidade de novas unidades habitacionais e não na ausência de infraestrutura.
O indicador é composto por quatro parâmetros: habitações precárias ou improvisadas, coabitação familiar, o comprometimento excessivo da renda com aluguel entre famílias de até três salários mínimos de renda e o adensamento elevado de moradores por dormitório em imóveis alugados.
Os dados mais recentes sobre o déficit habitacional no Brasil, calculados pela Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério das Cidades, foram divulgados em 2024 e são referentes ao ano de 2022. Segundo o estudo, são mais de 6,2 milhões de domicílios brasileiros, o equivalente a 8,3% das habitações ocupadas, que não atendem aos critérios mínimos de moradia adequada. Embora o número absoluto tenha crescido 4,2% desde 2019, a proporção relativa segue praticamente inalterada.
A maioria dos casos se concentra entre famílias com renda de até dois salários mínimos, sendo as mulheres as principais responsáveis pelos lares em situação de déficit (62,6%). Entre os fatores desse quadro, destaca-se o peso do aluguel: mais de 3,2 milhões de domicílios têm pessoas que gastam mais de 30% da renda mensal apenas com moradia. O retrato também revela um recorte racial, com a população não branca sendo majoritária entre os afetada pela inadequação.
Zerar o número de moradias inadequadas do Brasil, porém, não é uma tarefa simples. Como pontua Duda Alcântara, especialista em habitação social e CEO da Reurba Incorporadora Social, boa parte dos especialistas considera o número real maior do que os dados mostram.
Mas o Programa Minha Casa Minha Vida não está ajudando a reduzir esse problema? A política de habitação social foi criada em 2009, no segundo governo Lula e consiste em subsidiar ou facilitar a aquisição de moradias. Para isso, são divididas faixas de renda, priorizando as famílias de menor poder aquisitivo. Por exemplo, no Faixa 1, são atendidas pessoas com renda bruta familiar mensal de até R$ 2.640. Nas faixas 2, 3 e 4 (esta última lançada neste mês), há a chamada “aquisição financiada”, onde são atendidas famílias com renda de até R$ 12 mil mensais, dialogando diretamente com a classe média.
Detalhada nesta semana pelo ministro das Cidades, Jader Filho, a Faixa 4 permitirá o financiamento de imóveis de até R$ 500 mil, com juros subsidiados de 10,5% ao ano e prazo de até 420 meses. Segundo o ministro, a expectativa é atender até 120 mil famílias nessa nova categoria até 2026.
Ponteiro parado
Alcântara lembra ainda que o Minha Casa, Minha Vida entrou em vigor no contexto da crise financeira de 2008, quando se fazia necessária uma resposta econômica anticíclica para incentivar o setor de habitação. A população, deste período para cá, cresceu em cerca de 20 milhões de pessoas. Para completar, apesar de terem se construído cerca de 9 milhões de unidades habitacionais, o problema persiste, pois boa parte do déficit habitacional está ligado ao aluguel. Ela aponta a contradição de aumentar os subsídios para a classe média, que, em geral, não faz parte das pessoas em moradias com condições precárias. “O ponto é que quando você fomenta classe média, a pessoa que quer uma casa maior, um imóvel de renda para alugar, quer sair da casa dos pais. Nenhum desses casos mexe o ponteiro no déficit habitacional. É super importante o mercado estar aquecido, ele gera emprego, ele dá novas oportunidades, mas déficit habitacional é uma coisa, desenvolvimento do mercado é outra. São coisas que têm se mostrado antagônicas”, afirma.
Apesar disso, Duda Alcântara acredita que o mercado tem potencial para ser aliado no combate à mazela social, mas apenas se o Estado for uma figura intermediária entre os interesses privados, a garantia de direitos e a priorização à população mais vulnerável. “Se quase um terço da população recebe menos de R$ 700 por mês, como você quer que o mercado imobiliário resolva o problema? Então, tem que ser política pública, fundações sem fins lucrativos ou algum outro modelo”, completa.
Já Luciana Royer, professora de planejamento urbano e coordenadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAU-USP, afirma que o conceito de déficit habitacional não dá conta de mensurar a moradia no Brasil, menos por qualquer problema do dado e de sua medição e mais porque a falta de habitações adequadas e acessíveis é mais complexa. Nesse sentido, a especialista reflete que déficit é o oposto de superávit, e a questão não é apenas falta de construção de moradias. “Temos um déficit de cidade, precisamos urbanizar, fazer melhorias habitacionais e trabalhar com outras dimensões relativas à cidade”, diz.
A professora lembra o papel de fatores macroeconômicos no acesso à habitação, no aspecto da renda de uma família e a capacidade de ela arcar com prestações de casa própria ou do aluguel. Outro fator que torna o problema complexo para ser resolvido apenas com o mercado é a habitação não ser igual a outra mercadoria. “O preço do arroz está caro, eu inundo o mercado com arroz e o preço cai. Na habitação não acontece isso, é uma mercadoria inelástica. Não tem a ver apenas com a oferta e demanda.”
No ano passado, os preços de imóveis aumentaram 7,73%, na maior variação desde 2013, segundo o Índice FipeZAP de Venda Residencial. O número é bem maior que a inflação oficial do país, de 4,83%. Em boa parte dos anos, o aumento do custo de moradia superou o aumento geral dos preços, com exceção de momentos específicos, como a pandemia, quando os juros baixos favoreceram a demanda por financiamentos, apesar da crise econômica. Já a inflação do aluguel, medida pelo IGP-M da FGV, subiu 6,54% em 2024.
Então, como os números mostram, o Brasil segue produzindo habitações em ritmo acelerado, mas a conta do déficit habitacional continua alta devido à desigualdade de renda, dificuldade de acesso a programas voltados à classe média e a falta de políticas públicas orientadas para a urbanização e o direito à cidade.
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Política e economia são cruciais para nossa vida, mas vamos combinar que dão uma certa gastura. Talvez por isso esta semana os interesses dos assinantes do Meio tenham se diversificado mais. Confira os links mais clicados:
1. BBC Brasil: Como uma longa operação de reflorestamento criou uma mata onde só havia entulho no coração de São Paulo.
2. CNN: Museu em Lagos, maior cidade da Nigéria, desafia o modelo eurocêntrico desse tipo de instituição.
3. AP: Como saber se já estamos vivendo uma recessão?
4. Panelinha: Dinheiro de verdade é bom, mas moedinhas de chocolate com nozes e frutas secas também têm seu valor.
5. Meio: Filme de ação com Rami Malek é destaque nas estreias dos cinemas.