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Edição de sábado: Os campi de batalha

Foto: Bill Pugliano / Getty Images via AFP

Christopher Rufo nasceu em 1984. Sim, 1984, aquele ano que já foi futuro distópico e se tornou presente bastante plausível nos Estados Unidos sob Donald Trump. Rufo nasceu na Califórnia e diz ter sido criado num ambiente de esquerda. Mais: da esquerda radical produzida pelos comunistas italianos de quem descende. Quando narra sua migração para o campo da extrema direita, Rufo costuma destacar um momento em particular. Sua carreira de documentarista o levou a conhecer as mazelas da desindustrialização em todo o país, em particular no estado de Ohio. Também o levou a perceber como parte da produção cultural americana era patrocinada, em boa medida, por fundações liberais (o que os conservadores americanos passaram a chamar de esquerda, para confundir de vez as fronteiras ideológicas) e progressistas.

Rufo testemunhou o desalento de parte dos trabalhadores americanos sendo trocados por máquinas ou sendo preteridos em vagas direcionadas para pessoas com maior grau de escolaridade, para negros, para membros da comunidade LGBTQIA+ e para imigrantes. Enxergou o enorme ressentimento que brotava dessa transformação. E assim se transformou em um porta-voz do que chama de “contrarrevolução”. Sua agenda é contra a cultura woke, os programas de diversidade em geral e o tal “marxismo cultural” que ele acredita dominar as universidades. Em um vídeo de junho de 2024, na cerimônia em que recebe o prêmio pelo Livro Conservador do Ano — a obra Revolução Cultural Silenciosa - Como a Esquerda Radical Assumiu o Controle de Todas as Instituições —, Rufo vai declamando o bingo do discurso que no Brasil passamos a conhecer tão bem com Olavo de Carvalho. Recita os preceitos da guerra cultural, declarada pelos conservadores a toda agenda percebida como progressista. Até cita Paulo Freire e Angela Davis como dois dos grandes teóricos da esquerda radical que doutrinam o ambiente acadêmico americano e, em consequência, silenciam os conservadores.

Conhecer a história de Rufo é entender parte importante da lógica que sustenta a ofensiva de Trump contra as universidades dos Estados Unidos.

Esse assalto trumpista pode ser resumido em uma sequência de fatos. O presidente determinou, até aqui, a suspensão de US$ 1,8 bilhão em financiamentos a Harvard, Columbia, Princeton, Johns Hopkins e Universidade da Pensilvânia. Mas já avisou que é só o começo. Mandou abrir investigação sobre mais de 100 instituições de ensino superior no país. A justificativa oficial é a de detectar e punir casos de antissemitismo nos campi, à luz dos protestos pró-Palestina que tomaram muitos deles desde o 7 de outubro em que o Hamas atacou Israel. Um dos campi em que houve mais manifestações foi o de Columbia, em Nova York. Foi de um alojamento da universidade que Mahmoud Khalil, ativista criado na Síria, foi detido e preso por agentes do governo no mês passado. Apesar de ter um green card e de não enfrentar qualquer denúncia concreta, aquelas coisas típicas de um Estado Democrático de Direito, deve ser deportado. Columbia sofreu um corte de US$ 400 milhões no repasse de fundos federais. E capitulou. Anunciou planos para endurecer seu processo disciplinar, contratar 36 oficiais de segurança com poderes de prisão e avaliar uma reforma completa de seus estudos sobre Oriente Médio. Prometeu ajudar a identificar todos que participem de quaisquer protestos e, mais do que isso, decretou que “todas as manifestações nas dependências da universidade estão sujeitas às políticas antidiscriminação da instituição”. Todas, sem especificar quais. Isso no mesmo parágrafo em que defende a liberdade de expressão.

Já Harvard está sob o escrutínio de uma “força-tarefa federal contra o antissemitismo” e, no momento, tem US$ 9 bilhões em recursos federais sob revisão. A acusação contra a instituição é a de não proteger estudantes judeus e de promover “ideologias divisórias através da livre pesquisa”. Na quinta-feira, o governo enviou uma carta ao presidente de Harvard, Alan M. Garber, com uma lista de exigências para a liberação dos fundos. A eliminação de qualquer programa que “alimente” o antissemitismo entre a comunidade, sem mencionar que programas seriam esses, é uma delas.

Sabe o que também está na lista de exigências de Harvard e Columbia? Que o processo seletivo não use mais critérios de políticas afirmativas e que as iniciativas DEI sejam encerradas. DEI, na sigla em inglês, quer dizer diversity, equality and inclusion.

Pois aqui está a armadilha. Alguns protestos pró-Palestina resvalam mesmo no antissemitismo. Algumas iniciativas de diversidade extrapolaram e tiveram um efeito contrário, divisivo. E, sim, as universidades tendem a ser um ambiente majoritariamente progressista, porque a natureza da formulação de ciência e pesquisa é a de questionar tudo, não a de conservar tudo como era antes.

Sob essas três verdades — que não representam a totalidade do que acontece nos campi, seja em protestos, seja em salas de aula —, o trumpismo está desmontando, unilateralmente e usando a chantagem financeira, um dos pilares que fazem dos Estados Unidos a potência global que o país é. Para isso, está seguindo o roteiro proposto literalmente por Christopher Rufo.

O ano que muda tudo

Em sua conversão de documentarista para militante da extrema direita, Rufo desenterrou a teoria crítica da raça (critical race theory, ou CTR na sigla em inglês), formulada na década de 1970, e passou a modelar, em talk shows e artigos de think tanks conservadores, como o americano comum entende esse conceito. Para quem não a conhece, a teoria é similar à noção de racismo estrutural, advogando que o racismo não é ação de um único indivíduo, mas algo sistêmico, enraizado nas instituições, nas leis e na teia social. Na interpretação da extrema direita, tornou-se um movimento para eliminar brancos e substituí-los por outras raças. Rufo descreve todo o movimento progressista entre 2014 e 2020, ali no pós-Occupy Wall Street, como centrado em gênero e raça. Para ele, foi o ensino da CTR nas universidades que alimentou, entre outras coisas, mas principalmente, o movimento Black Lives Matter — e não o assassinato de George Floyd, em 2020. Num discurso inflamado para Tucker Carlson, na Fox News, naquele mesmo ano, Rufo clamou que Trump encerrasse qualquer iniciativa baseada na CTR no âmbito federal. No dia seguinte, diz o ativista, recebeu um telefonema de Mark Meadows, então chefe de gabinete de Trump, o convocando para ir a Washington. Poucos dias depois, a ordem executiva de Trump estava assinada.

Não há razões para acreditar que Rufo esteja mentindo sobre sua influência no governo Trump, lá ou cá. Ele foi convidado a visitar Mar-a-Lago ainda em novembro de 2024 e apresentou suas ideias sobre como o Departamento de Educação dos EUA devia ser fechado. Em fevereiro deste ano, o ativista publicou um artigo em sua newsletter com o título “How Trump Can Make Universities Great Again”. Ele detalha como Trump poderia suspender repasses de recursos e o que deveria exigir em troca. Em março, o plano estava em ação. Rufo tuíta permanentemente sobre como o Departamento de Educação e outros órgãos federais estão impregnados de discurso sobre racismo e sexualidade. E quem o retuíta quase sempre? Elon Musk.

No dia 25 de março, Rufo postou um artigo que escreveu, citando um trecho específico: “Na imaginação progressista, Israel está para os palestinos assim como a América branca está para a América negra e como a sociedade ocidental está para o Terceiro Mundo. O antissemitismo é um substituto para a antibranquitude e, em última análise, para ideologias antiocidentais”. Foi uma das pouquíssimas vezes em que mencionou a questão do antissemitismo em seus ataques às universidades. Ainda assim, associando à questão racial.

Em entrevista ao New York Times, Rufo descreve melhor o que orienta seu ativismo e o plano que apresentou a Trump: “No período de transição, apresentei um plano de contrarrevolução que delineava a minha estratégia sobre como o presidente e a administração poderiam tomar medidas decisivas na guerra contra essas ideologias de esquerda. Para minha grande satisfação, cinco das seis recomendações foram postas em prática”.

Liberdade para quem?

Embora a maioria das universidades americanas esteja cedendo à pressão financeira e oferecendo de bandeja seus departamentos de inclusão e seus processos de admissão baseados em ações afirmativas, alguns da comunidade acadêmica já perceberam o que está de fato por trás dessa ofensiva. Lee Bollinger, por exemplo. Ele foi presidente de Columbia entre 2002 e 2023 e é um jurista especialista na Primeira Emenda da Constituição americana — aquela que garante a liberdade de expressão irrestrita no país. Ele recapitula a história da diversidade no ensino superior e discute até onde vai, afinal, a autonomia das universidades para assegurar a livre circulação de ideias nos campi. “As universidades não têm sido suficientemente articuladas sobre o que significa liberdade de expressão em um campus. Universidades públicas devem seguir a Primeira Emenda; universidades privadas podem escolher. Quase todas as privadas escolheram viver sob a Primeira Emenda. Só que a Primeira Emenda não é uma jurisprudência simples, é muito complexa. As pessoas rotineiramente pensam que o discurso de ódio não é protegido pela Primeira Emenda nos EUA. O fato é que o discurso de ódio é protegido pela Primeira Emenda, ao longo de muitas décadas. A Ku Klux Klan, os neo-nazistas — há muitos exemplos", Bollinger explica.

Em seguida, ele admite que há questões a serem debatidas ao se permitir certos discursos na vida acadêmica. “Também é razoável para as universidades dizerem: se somos uma universidade privada, talvez devêssemos repensar o que as pessoas podem dizer em um campus. Ouvi pessoas dizerem isso, e acho que é um argumento muito poderoso, que por exemplo defender discriminação perniciosa contra grupos, ou defender violência física, é tão inconsistente com os valores humanísticos da universidade que não deveríamos respeitá-lo em um campus. Esse é um debate razoável e deve ser feito se as pessoas estiverem dispostas.” Mesmo a diversidade de ideias e uma maior aceitação do discurso conservador no ambiente acadêmico deve ser, sim, tema de reflexão nas universidades atualmente. No campo do debate, não da chantagem.

Rufo não está disposto a debater (muito menos Trump). Num caminho tradicional dos reacionários, que buscam restaurar um passado em muito superado, e dos autocratas, que procuram meios de calar dissidências, o ativista visitou a Hungria e publicou, em 2023, um artigo intitulado “Orbán's war”. É, mais uma vez, uma espécie de roteiro para as ações de Trump nas universidades. Ele argumenta, com admiração, que Orbán empreendeu um esforço para remodelar as instituições, tanto públicas como privadas, para criar uma espécie de elite conservadora. “Rufo fala sobre a vida familiar. Sobre a fé cristã. Sobre memória histórica. E o que muitos conservadores sentem que perderam é esse controle da memória histórica, certo?”, explica Adam Harris, pesquisador sênior da New America e jornalista, para a revista The Atlantic. “Estamos há apenas 60 anos vivendo a ideia de uma democracia multicultural, desde o Civil Rights Act. E muitas pessoas sentem que perdemos algo quando entramos nessa era. Parte desse pensamento tenta recuperar aquela paisagem, aquele tipo de passado pastoral que perdemos.”

De fato, Rufo propõe que se use o Civil Rights Act, aquele que botou fim na política de segregação racial, para reverter qualquer processo de admissão nas universidades baseado em ações afirmativas, recorrendo à noção de que discriminação contra brancos também está proibida pela lei. “Não há recompensa ou punição com base na ancestralidade. E se você fizer isso em admissões, contratações, promoções, deverá pagar um preço tão alto quanto se alguém estivesse segregando lanchonetes no passado. E penso que a minha posição em 2020 e 2021 é agora a posição majoritária da direita, quase sem exceções.” Certamente é consonante com a de Ron DeSantis, governador reeleito da Flórida que popularizou a luta anti-woke e comprou briga com gigantes como a Disney. No processo de transformar o New College of Florida num laboratório do que seria uma universidade de ultradireita, Rufo foi um dos que DeSantis nomeou para o conselho.

E como seria essa academia conservadora? “Nossas universidades não são mais universidades de artes liberais. São esses megacomplexos que têm braços científicos, de pesquisa e financeiros. Você pode ter um currículo clássico de artes liberais que elimine a ideologia. Mas, se estamos falando apenas das humanidades, penso que precisamos de uma reviravolta total da sua ideologia, juntamente com um retorno à compreensão clássica das humanidades adaptada às condições modernas e popularizada pelas grandes universidades estatais. O que estamos fazendo no New College é reintroduzir as eternas questões humanas”, Rufo tenta explicar. “A nossa nova declaração de missão da faculdade diz que é uma comunidade de acadêmicos e estudantes que têm um compromisso partilhado com uma cultura de debate civil e investigação que conduz ao verdadeiro, ao bom e ao belo. E continuando a grande tradição da civilização ocidental que nos proporcionou estas oportunidades.” É uma completa subversão dos princípios da liberdade acadêmica e de pensamento. É também o que apregoa o Project 2025, aquele manual de como um governo Trump deveria se comportar — e que vem sendo seguido. A certa altura, o guia decreta: “O próximo presidente deve promover oportunidades educacionais fora do sistema dominado pela ideologia woke nas escolas públicas e universidades, incluindo escolas profissionais, programas de aprendizagem e alternativas de empréstimos estudantis que financiem os sonhos dos estudantes em vez dos acadêmicos marxistas”. Guerra cultural pura.

A perda irreparável

Conduzir uma empreitada autocrática passa necessariamente por um anti-iluminismo. Combater o conhecimento e qualquer atividade questionadora é essencial para o sucesso de uma tomada de poder. Trump já sugeriu que os americanos bebessem água sanitária para tratar covid. Propôs uma reforma tarifária baseada em cálculos no mínimo duvidosos. Ter menos gente apontando os absurdos de suas falas evidentemente o favorece. Mas ele também baseia sua retórica num profundo ressentimento do “homem comum” a respeito das mudanças aceleradas do mundo, tanto no campo do trabalho quanto das relações interpessoais. Esse ressentimento é frequentemente direcionado às elites, especialmente às intelectuais. Um ataque às universidades era mais que esperado.

O que poderia ser interpretado como um contrassenso é o ataque que mina uma das bases que tornam os Estados Unidos uma potência sem precedentes. Claro que um arsenal nuclear é poderoso. Um PIB vistoso, idem. Mas a hegemonia científica dos EUA é um ativo incalculável. “Com cerca de 4% da população mundial e 25% do PIB, os EUA têm 72% das 25 melhores universidades do mundo segundo um ranking, e 64% segundo outro”, destaca o analista Fareed Zakaria.

Ele lembra que, quando corta fundos baseado no critério da luta contra o antissemitismo ou contra a cultura woke, Trump está, na prática, tirando dinheiro da ciência e do desenvolvimento tecnológico. “O financiamento governamental desempenha um papel único. Frequentemente apoia a pesquisa básica, o tipo que as empresas têm menos incentivo para fazer, e seus resultados não podem ser acumulados por uma única empresa, mas devem ser disponibilizados gratuitamente para toda a comunidade científica e tecnológica para que todos possam usá-los para experimentar e inovar. O mapeamento do genoma humano, por exemplo, custou menos de US$ 3 bilhões e levou 13 anos. Por ser financiado pelo governo, um de seus requisitos principais era que a pesquisa deveria ser disponibilizada publicamente para todos dentro de 24 horas após ser gerada.” Essa é uma perda irreparável, porque tende a paralisar trabalhos em curso, como a construção de um centro de pesquisa da Universidade de Michigan para estudos sobre câncer e outras doenças.

Mas Fareed vai além. “O outro ataque às universidades é uma estranha investida contra a liberdade de expressão. Começou com uma crítica fundamentada de que burocracias, universidades e elites haviam se tornado ‘woke’. Mas a resposta do governo a esse problema tem sido orwelliana, vasculhando essas instituições por qualquer menção às palavras diversidade, identidade ou inclusão, e então fechando esses programas sem qualquer revisão”, diz o analista. “A fúria com que a administração Trump se voltou contra a academia se assemelha aos primeiros dias da Revolução Cultural, quando um Mao Tsé-Tung cada vez mais paranoico destruiu as universidades estabelecidas da China, uma loucura que levou gerações para ser remediada. Enquanto isso, em Pequim na semana passada, o governo chinês anunciou sua intenção de aumentar massivamente seu financiamento para pesquisa e tecnologia para que possa liderar o mundo em ciência no século 21. Assim, enquanto os EUA parecem estar copiando os piores aspectos da história recente da China, a China está copiando os melhores aspectos dos EUA, esforçando-se para tomar a dianteira enquanto os EUA passam por sua própria revolução cultural.”

Encontrar lógica nas ações trumpistas pode render o prêmio Nobel a algum pesquisador. Isso quando se procura a lógica com as lentes liberais. A lógica de um autocrata é remodelar uma nação a sua própria imagem. E ir coletando lealdades e subserviência no caminho. Na batalha dos campi e da guerra cultural, quem oferece o mapa é Christopher Rufo.

Abin em águas turbulentas

A revelação de que servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) invadiram computadores das mais altas autoridades paraguaias – incluindo o presidente da República, o presidente do Senado e o presidente da Câmara —, durante negociações sobre o uso da energia de Itaipu, é o maior desafio diplomático na relação entre os dois países desde a construção da usina hidrelétrica, há 50 anos. É também uma oportunidade para entender o que faz a Abin — e o que ela não deveria fazer.

Depoimentos obtidos pelo UOL, que denunciou o caso nesta semana, mostram que os ataques ocorreram justamente quando os dois países discutiam valores milionários da energia produzida pela binacional. Os detalhes emergiram de forma inesperada. Um inquérito da Polícia Federal sobre o caso da chamada “Abin Paralela”, que investiga o uso político da agência no governo de Jair Bolsonaro, continha depoimentos que deveriam permanecer sob sigilo, mas que foram tornados públicos pela PF.

Por um erro de protocolo — ou, como sugerem fontes, por uma disputa interna entre a Abin e a PF —, os relatos de dois servidores da agência que participaram da ação acabaram vazando. Neles, a arapongagem é descrita. Começou ainda em 2022, no governo Bolsonaro, mas continuou após a troca de governo, agora sob comando do diretor-geral Luiz Fernando Corrêa, nomeado pelo presidente Lula, e do então diretor interino Saulo de Cunha Moura, que ocupou o cargo entre março e maio de 2023.

O método, segundo os depoimentos, lembra o de hackers: a Abin usou o software Cobalt Strike e servidores fantasmas localizados fora do Brasil, no Panamá e no Chile, para invadir computadores sem deixar rastros. O objetivo: obter informações sobre o acordo do Anexo C de Itaipu, ponto central nas relações bilaterais, para definir quanto o Brasil pagaria ao Paraguai pela energia não utilizada pelo vizinho na usina. Em maio de 2024, após meses de tensão, os países chegaram a um acordo sem reajuste da tarifa para o Brasil.

Serviços de inteligência de todos os países costumam fazer ações para coletar informações sensíveis em negociações desse tipo. Só não costumam ser descobertos.

O Palácio de López, sede do governo paraguaio, reagiu com frieza, mas a mensagem foi de insatisfação: além de convocar o embaixador brasileiro na capital, José Antônio Marcondes, para dar explicações, chamou de volta seu principal diplomata em Brasília, Juan Ángel Delgadillo. Trata-se de um movimento na diplomacia reservado para crises graves.

Enquanto isso, em Brasília, o caso chegou à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI). O senador Esperidião Amin (PP-SC) não perdeu tempo: apresentou requerimentos para ouvir tanto os responsáveis atuais pela Abin quanto o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, que não queria Luiz Fernando Corrêa, nomeado por Lula em 2023, como diretor-geral da agência. A motivação de Amin é dupla — entender os ataques, mas também o vazamento dos depoimentos que expuseram a operação, dando origem a uma crise política que o governo Lula não esperava.

A legislação brasileira estabelece limites à atuação da Abin. A Lei nº 9.883, de 1999, que criou o Sistema Brasileiro de Inteligência, define que a agência deve “planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País” para assessorar a Presidência da República, mas que só pode agir dentro da lei, sem poder de polícia e restringindo-se à “produção de conhecimentos estratégicos” e de “contrainteligência”. A Constituição, por sua vez, estabelece em seu Artigo 4º como princípio das relações internacionais do Brasil a “não-intervenção” e a “igualdade entre os Estados”.

Além disso, o Brasil é signatário da Convenção de Budapeste sobre Cibercrime, internalizada na legislação brasileira por meio do Decreto nº 10.222, de 2020, que tipifica como crime o acesso não autorizado a sistemas computacionais. Criada em 1999 por Fernando Henrique Cardoso, a Abin tem sede em Brasília e 26 superintendências estaduais, uma em cada capital. Mantém duas unidades em cidades de fronteira: Tabatinga (AM) e Foz do Iguaçu (PR). No exterior, possui representação em 18 países: África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, China, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Itália, Japão, Jordânia, México, Paraguai, Peru, Rússia e Venezuela. Seus servidores dizem que o órgão está sucateado e com defasagem de pessoal de 80%.

Uma ironia histórica não passa despercebida aos diplomatas. Em 2013, quando documentos vazados por Edward Snowden revelaram que a NSA americana espionava inclusive a então presidente Dilma Rousseff, o Brasil liderou na ONU um movimento por controles globais à espionagem internacional, resultando na aprovação do Marco Civil da Internet. Agora, encontra-se na posição inversa.

A Abin, procurada pelo Meio, manteve silêncio. Enquanto isso, na fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, as turbinas de Itaipu seguem girando — alheias, por enquanto, à tempestade política que se forma sobre as águas que ambos dividem há meio século.

Viral de Studio Ghibli divide reações da esquerda e direita

De uma hora para outra, todo mundo virou anime. Nos últimos dias, viralizaram imagens que utilizavam o ChatGPT para transformar fotos pessoais em desenhos no estilo do Studio Ghibli, famosa produtora japonesa, responsável por obras-primas da animação como Viagem de Chihiro (2001) e o mais recente O Menino e a Garça (2024). A trend começou com a nova atualização do chatbot que liberou um gerador de imagem disponível gratuitamente.

Não apenas esse estilo pode ser facilmente imitado, mas também o dos Simpsons, da Disney, da Pixar, entre outras formas de animação ou desenho. A viralização do Studio Ghibli parece estar ligada não apenas à qualidade dos traços de Hayao Miyazaki, mas também à própria polêmica e a discussão ética do caso. Isso porque o criador dos famosos filmes já se pronunciou, em 2016, contra o uso de inteligência artificial e disse que “nunca desejaria incorporar essa tecnologia” ao seu trabalho. “Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”, disparou.

Mas o debate chegou aos políticos brasileiros e, como boa parte dos assuntos, houve polarização na forma como o fenômeno foi recebido. Enquanto políticos de direita aderiram à trend e colheram boas reações de seus seguidores, os esquerdistas se viram cobrados por parte de seu público. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco (PT-RJ), e do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede-SP), a ex-deputada Manuela D’ávila (sem partido) e os deputados do PSOL, Sâmia Bomfim e Guilherme Cortez, publicaram imagens suas no estilo Ghibli, mas após repercussão negativa, apagaram e se retrataram.

Cortez, deputado estadual por São Paulo, publicou no lugar um cartoon feito pelo artista Cordeiro de Sá, que o retratava. Na legenda, ampliou o debate sobre o tema. “Achar que apenas a negação ou boicote individual vão fazer a disseminação da IA retroceder é fantasia. A inteligência artificial veio pra ficar, queiramos ou não, com todas as suas contradições e possibilidades. Enquanto rejeitamos a IA, a extrema direita está se apropriando dela para produzir fake news”. Ele ainda defendeu a necessidade de regulamentação dessas ferramentas.

Ao Meio, o deputado falou mais sobre a repercussão de sua publicação e o quanto o assunto se tornou uma pauta moral. “A reação inicial de algumas pessoas foi muito ruim. Descambou para aquele policiamento moral: ‘Se você postou um desenho de IA você é uma pessoa horrível’, ‘perdeu meu voto’. Existe um debate importante, que é sobre os limites que temos que impor para a inteligência artificial, como proteger a produção intelectual e o trabalho dos artistas. Mas todas essas discussões ficam em segundo plano quando vira uma questão moral”, argumenta.

A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) já foi direto para a publicação de um desenho dela feito pelo artista “Cartunista Das Cavernas” e disse ser importante “em tempos de IA, valorizar o trabalho de artistas reais”. A temática do trabalho, de fato, é uma pauta cara à esquerda. Kleber Carrilho, cientista político e pesquisador na Universidade de Helsinque, lembra que esse espectro tem um movimento ideológico mais definido. Por isso, o aproveitamento rápido de um conteúdo viral funciona muito bem e de forma mais fácil para quem é de direita. Ainda segundo ele, a lógica das redes sociais facilita a disseminação de narrativas políticas (ou as “verdades”) e não necessariamente tem compromisso com os fatos.

Além disso, Carrilho pontua que a direita tem facilidade de usar as redes, mas, sobretudo, que ela construiu sua estética a partir das redes sociais. “Não é que a direita saiba se adaptar mais, é que ela é produto desse momento”, afirma. Para ele, a solução da esquerda deveria ser um movimento que também seja construído a partir das redes, caso contrário, não será possível responder à direita no ambiente em que ela foi formada. Como exemplo positivo, cita o sucesso de Alexandria Ocasio-Cortez, congressista democrata dos Estados Unidos, e do partido Podemos, da Espanha.

A polêmica não tem consenso nem mesmo entre artistas e cartunistas. Enquanto uma parte protesta e alerta para os problemas éticos de treinar chatbots de IA sem respeitar os direitos autorais, outra relativiza ou até vê na tecnologia uma aliada para a arte. É o caso de Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e artista. Além de retratos criados por ela com apoio da inteligência artificial, a professora vocalizou em suas redes sociais críticas ao debate, que, para ela, está “no espírito do século 19”. Em entrevista ao Globo, ela ainda recorda de outros artistas contemporâneos. “Atribuir autoria ao sistema de IA seria o mesmo que imaginar o Duchamp pagando royalties para o fabricante do banquinho e da bicicleta, e o Andy Warhol para a fábrica de sopa Campbell”. José Alberto Lovetro, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, por sua vez, afirmou que “o problema da popularização das ferramentas de IA é que elas propagam a ideia de que o desenho, em determinado estilo, é algo gratuito, e que todo mundo pode fazer igual por meio de um computador. Essas tecnologias estão aí, e não vai ser possível contê-las. Então, é a hora de os autores se readaptarem para tomar as rédeas disso”.

Em meio a essas divisões, o deputado Guilherme Cortez entende que a esquerda precisa fazer uma autoanálise sobre o crescimento da extrema direita em todo o mundo e o enfraquecimento de pautas progressistas. Para ele, é preciso dar senso de proporção às coisas, e entender a conjuntura.

“Enquanto a extrema direita está mandando para as cucuias todas as regras éticas de convivência em sociedade, testando cada vez mais os limites do nosso tecido social, nós nos fechamos em uma bolha cada vez menor de pessoas com paciência para aguentar nosso rígido sistema moral. Isso é adoecedor para quem está dentro e nenhum pouco convidativo para quem está fora”, conclui.

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O que acontece nos Estados Unidos afeta todo o mundo, e os assinantes do Meio entendem isso. Tanto que as análises sobre os riscos que Donald Trump representa para a democracia e sobre a forma caótica com que ele conduz sua guerra comercial dominaram as atenções na semana, mas com espaço para doçura e imagens divertidas por IA. Confira os links mais clicados:

1. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria discute as ações do presidente americano e como a mais antiga democracia liberal pode se blindar contra elas.

2. X: Projeções complexas? Equações com uma infinidade de fatores? Não. O jornalista James Surowiecki mostra que o cálculo por trás das tarifas impostas por Trump foi, no mínimo, primário.

3. OpenAI: Como transformar suas fotos em ilustrações no estilo do Estúdio Ghibli usando inteligência artificial.

4. Panelinha: Trufinhas de chocolate com laranja e canela, uma opção caseira e diferente de presente na Páscoa.

5. The Verge: Conheça Seven39, a rede social que só funciona três horas por dia.

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