Musk, Zuckerberg e o ‘primeiro-emendismo radical’

Grandes plataformas digitais, que hospedam o debate público, ensaiam assumir um papel diferente sob Trump e desenhar uma nova ordem global nas políticas digitais
Em uma sociedade na qual o exercício da cidadania é intermediado por tecnologias digitais, decisões sobre tais tecnologias tomadas por empresas e instituições têm impacto frontal nos direitos humanos e na política democrática. A ideia de políticas digitais delimita o campo dentro do qual essas escolhas são feitas, debatidas, reguladas, analisadas e disputadas. Quando quase toda a comunicação política no globo já é feita pela internet, falar de políticas digitais é discutir a principal infraestrutura disponível para a participação política, liberdade de expressão e de associação e uma série de outros direitos.
O ano de 2025 começou com vigor para este campo com a publicação de um vídeo por Mark Zuckerberg. Em 7 de janeiro, o CEO da Meta deixou claro um reposicionamento diante da nova conjuntura política nos Estados Unidos. Por anos, o Vale do Silício e seus expoentes buscaram construir uma imagem pública de que a tecnologia era um espaço de inovação e neutralidade, acima das disputas partidárias. Com o vídeo — e mudanças concretas que vieram em seguida —, a pretensa equidistância política fica cada vez mais distante de ser a promessa feita pela liderança dos gigantes da tecnologia.
É razoável pensar que esses fatores começam a desenhar uma nova ordem global nas políticas digitais? Que nova ordem seria essa?
Em suma, Zuckerberg anunciou mudanças nos seus serviços. A Meta vai mudar seus sistemas de recomendação (ou seja, de curadoria do conteúdo gerado por usuários) e moderação de conteúdo (a atividade em que a plataforma formula, edita, publica e aplica normas sobre o que pode ou não ser realizado por seus usuários). Essas ações têm o potencial de transformar significativamente não apenas o que vemos sobre política nas plataformas — Facebook, Instagram e Threads, no caso —, mas também como nos conectamos, nos informamos e nos relacionamos nelas.
O líder da Meta não se movimentou sozinho, seu novo posicionamento integra uma transformação mais ampla, que é acompanhada de maneira mais ou menos tímida por seus pares. O bastião deste novo tempo é Elon Musk, que já vinha moldando o X como um laboratório de “liberdade de expressão absoluta” (ou de um primeiro-emendismo radical) — que passou a ocupar um lugar estratégico no novo governo e no próprio movimento político de Donald Trump. Durante a cerimônia de posse da nova administração, alguns dos lugares mais privilegiados foram ocupados não por figuras políticas de longa data, mas por CEOs e donos das principais big techs do mundo: Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple) e Elon Musk (Tesla e X). A cena gerou reações distintas, marcando um reposicionamento simbólico desses atores no tabuleiro político institucional.
A centralidade dos EUA para o campo das políticas digitais não se limita ao fato de que as maiores plataformas são sediadas no país, nem à sua dominância tecnológica e econômica, mas se manifesta também na aplicação extraterritorial de seu arcabouço regulatório-constitucional. A força gravitacional que este arcabouço exerce é produtora e produto de uma complexa combinação entre inovação tecnológica, conduta empresarial, poderio econômico, soft power e atuação da política externa nas últimas três décadas. O modelo que se impõe, ainda que de maneira não oficial, é derivado de uma tradição que privilegia a liberdade de expressão de maneira maximalista, muitas vezes em detrimento de outras garantias. Essa estrutura cria um ambiente no qual as decisões de políticas digitais são orientadas muito mais pelas diretrizes do mercado e pela lógica jurídica do país do que pelas demandas políticas e culturais dos diversos países em que essas plataformas operam. Olhar para os Estados Unidos não é uma escolha arbitrária, mas sim uma necessidade para compreender as dinâmicas estruturantes das políticas digitais.
Observadores progressistas têm, por vezes, atribuído às plataformas digitais a responsabilidade por determinados resultados eleitorais, sugerindo que a disseminação de desinformação ou o uso manipulatório das redes teria influenciado o eleitorado de maneira decisiva ou causal. A sugestão que tais serviços detêm o poder de moldar ou reverter resultados eleitorais encontra uma recepção contraditória por parte das empresas. De um lado, lideranças como Zuckerberg refutam frontalmente ter contribuído com determinados resultados, de outro, a mesma indústria de venda de publicidade digital tem grande parte de seu valor construído a partir da premissa de que anunciantes conseguem uma posição privilegiada de persuasão ao contratar os serviços da Meta, por exemplo. Parecem admitir a percepção de poder para vender seus serviços publicitários, mas não aceitaram o corolário dessa percepção para a política.
Há outros motivos, possivelmente menos declaráveis, para a fadiga com o progressismo e a disposição de fazer compromissos com o trumpismo ascendente: conveniência estratégica, alianças contra regulações mais rígidas, alinhamento ideológico, irritação com debates de diversidade e equidade e incômodo com tentativas de aplicação da legislação antitruste por parte do governo Biden.
Por quase uma década as plataformas que distribuem conteúdo gerado por usuários, como a Meta e o X (antigo Twitter), construíram uma atuação pública e institucional buscando equilibrar interesses políticos e institucionais distintos. Nesse período, negociaram com governos democratas e republicanos (e, em outros contextos, de esquerda e direita), sociedade civil e academia parâmetros que justificassem suas condutas sob promessas de neutralidade — política e tecnológica. As políticas de moderação de conteúdo e o incentivo à profissionalização da verificação de fatos emergiram nesse contexto como estratégias de proteção a processos democráticos e direitos humanos. O desmonte desses esforços não se trata de uma simples troca de lealdades, mas de uma redefinição da visão corporativa de “manter o ambiente digital seguro e confiável” colocada em prática já em 2022 por Elon Musk, e seguida por Mark Zuckerberg em 2025.
Se questões como a desinformação e a proteção de grupos vulneráveis contra discursos nocivos foram, por anos, tratadas como um problema a ser contido, agora são normalizadas como um subproduto inevitável da “liberdade de expressão” e da inflexão cultural evidenciada nas últimas eleições americanas. No cenário anterior, plataformas como a Meta e o X investiram na construção de estruturas institucionais voltadas à conciliação entre espectros políticos, pressões regulatórias e reivindicações da sociedade civil. Esse arranjo não era apenas estratégico, mas sinalizava um compromisso — ao menos parcial — com os princípios que as plataformas buscavam institucionalizar.
O ‘primeiro-emendismo’ radical mostra a cara
Embora o anúncio da Meta tenha sido o estopim mais recente desse realinhamento, essa inflexão já vinha se desenhando há anos — e sua expressão mais explícita foi o desmonte do Twitter sob a liderança de Elon Musk. O X (antigo Twitter) foi a primeira grande plataforma a desmantelar ativamente os compromissos anteriores, que combinavam a ideia de neutralidade política e o compromisso com uma visão “Primeira Emenda” de liberdade de expressão, de um lado, e a implementação de mecanismos de integridade e segurança para sanear os ambientes digitais de comportamentos entendidos como nocivos, como a desinformação e o discurso de ódio.
O que parece emergir das ações de Musk e de seu campo político é uma posição que extrapola a doutrina tradicional sobre liberdade de expressão, uma espécie de primeiro-emendismo radical. Nessa posição se destacam a recusa da possibilidade de interações entre governo e plataformas sobre políticas de conteúdo (o que constituiria sempre uma violação da liberdade de expressão no formato do jawboning, ou seja, pressão governamental), a perspectiva de que os esforços de segurança e integridade devem ser mínimos, não ingressando em temas sensíveis politicamente (mesmo que isso aumente o risco de circulação de publicações violentas); e a aspiração de que o regime jurídico dos EUA, de proteção maximalista da liberdade de expressão, deve se impor em face de jurisdições que enquadrem o tema diferentemente.
Na prática, a ideologia primeiro-emendista radical de Musk encontrou algumas contradições. Se no discurso a ideia era lutar contra pressões governamentais, concretamente interações com governos demonstraram uma certa seletividade estratégica, por exemplo. Se, por um lado, a plataforma desmontou estruturas de moderação e combate à desinformação sob o pretexto de garantir um espaço aberto para o livre debate, por outro, tem se mostrado surpreendentemente eficiente e ágil na censura de conteúdos inconvenientes para governos autoritários.
O Brasil é um exemplo emblemático dessa assimetria. Em setembro do ano passado, cerca de 22 milhões de usuários do X no Brasil estavam impedidos de acessar a plataforma, pois, em 30 de agosto, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão do X em todo o território nacional. Conforme se apurou posteriormente, o caso envolvia ameaças dirigidas contra autoridades policiais que trabalhavam em inquéritos do STF. A resistência da empresa gerou multas e, após sucessivas violações da decisão judicial, resultou na suspensão temporária do serviço no país. A suspensão foi revertida em 8 de outubro, após o X cumprir as exigências judiciais: restabeleceu a representação legal, removeu os conteúdos e pagou as sanções impostas, que somavam R$ 28,6 milhões.
O caso escancarou a seletividade de Musk, mas também um dilema colocado na ascensão do primeiro-emendismo radical em outras jurisdições: até que ponto plataformas digitais podem decidir unilateralmente quais leis devem cumprir — e com base em quais critérios? A visão de um executivo sobre os limites constitucionais de um país continua sendo apenas uma opinião, mas o que ocorre quando essa opinião se traduz em resistência concreta às normas locais, isto é, em desobediência civil?
A trajetória do X reflete uma transição fragmentada para uma “governança digital” diferente desde 2022, marcada pela refração a compromissos de segurança e integridade, ausência de compromissos consistentes com a transparência e de tensão com autoridades e jurisdições politicamente sensíveis. As decisões de Musk foram, em grande parte, anunciadas de forma reativa, sem diretrizes estáveis ou justificativas públicas coerentes. O modelo contrasta com o arranjo analisado na seção anterior que, apesar de suas contradições, ainda operava sob os marcos de uma governança liberal — baseada em princípios como a neutralidade política e a proteção contra a desinformação.
Caso Meta: ecos da nova ordem
“Isso pode ser confuso. Em plataformas onde bilhões têm voz, o bom, o ruim e o feio estão expostos. Mas isso é liberdade de expressão.” Foi com essa frase que a Meta justificou, em seu anúncio de janeiro de 2025, o pacote de mudanças em suas políticas de moderação e recomendação de conteúdo. O anúncio da empresa nos oferece algum substrato para compreender as linhas de força que orientam esse reposicionamento.
Desde 2021, a empresa vinha adotando uma estratégia deliberada de contenção, limitando a exibição de postagens relacionadas à política institucional e eleições, inclusive de contas de políticos. Qualquer conexão com a tentativa de fugir das pressões e demonstrar neutralidade (ou, ainda, que a política partidária seria tóxica aos negócios) não é mera coincidência.
Em janeiro de 2025, essa diretriz foi revertida. Segundo a nova orientação, conteúdos cívicos de pessoas e páginas seguidas passarão a ser tratados como qualquer outro tipo de postagem, e a recomendação de conteúdo político será expandida. A Meta justifica a mudança como uma resposta à demanda por maior personalização e diversidade de opiniões, destacando que usuários poderão exercer mais controle sobre o que veem em seus *feeds*. Na prática, freios para conteúdos políticos deixam de existir, abrindo espaço para mais conversas sobre o tema, mas também para desinformação, violência política e manipulação coordenada que podem surgir destas conversas.
As novas diretrizes da Meta configuram um deslocamento prático de prioridades e sinalizam o que é aderir ao primeiro-emendismo radical. A partir da reconfiguração da política, a empresa passou a permitir conteúdos que antes seriam removidos automaticamente: é o caso da flexibilização quanto ao uso de expressões como “imundície” (filth, no original em inglês) para se referir a grupos étnicos e da aceitação de termos como “isso” (it) para se referir a pessoas trans e não-binárias. Todos esses termos, anteriormente proibidos, passaram a ser permitidos sob as novas diretrizes.
A combinação entre a retomada da recomendação de conteúdo cívico, a desativação da detecção automatizada e a reformulação das regras da comunidade cria um cenário de alto risco para a circulação de conteúdos nocivos e violentos nas plataformas da Meta. O descompromisso com a checagem, por sua vez, barra as possibilidades de respostas qualificadas a essa possível avalanche.
Se no X o primeiro-emendismo radical foi implementado de maneira abrupta e errática sob a liderança de Elon Musk, na Meta ele emerge com uma lógica estruturada e operacionalizada em escala global.
Uma “nova ordem” impõe desafios novos e relevantes a países como o Brasil. O recrudescimento do eixo Casa Branca-Vale do Silício pode tornar-se mais explícito em disputas comerciais e regulatórias globais, por exemplo, colocando a resistência das plataformas às regulações locais no centro das negociações comerciais multilaterais. Se antes essas empresas operavam em um modelo de acomodação estratégica e soft power, negociando concessões conforme o ambiente jurídico de cada país, pode agora emergir um enquadramento primeiro-emendista radical para a “diplomacia digital”. No Brasil, a recente disputa entre o X e o STF já indicou como essa tensão pode se materializar, colocando em xeque elementos da governança e a legitimidade das instituições.
Domesticamente, a reconfiguração do papel das plataformas também exige um realinhamento das expectativas sobre seu impacto na política institucional. Um exemplo é o campo eleitoral, que já vinha lidando com a crescente influência da comunicação digital. Partidos políticos podem enfrentar um novo patamar de desafios, em que a própria arquitetura da informação se torna um instrumento de poder econômico, político e comunicacional.
Se, por um lado, as regulações eleitorais tradicionais buscavam limitar o abuso de poder, o novo tônus das plataformas impõe dilemas inéditos. O compromisso com a neutralidade se esvaiu — e com ele um padrão de relacionamento de partidos e candidatos com as plataformas. A janela se coloca para o aprofundamento para debates sobre auditorias algorítmicas, transparência no financiamento e publicidade e mecanismos mais sofisticados de contenção de interferências indevidas em períodos eleitorais.
O “resto do mundo” (termo que os relatórios de acionistas das plataformas chamam o conjunto de países além dos EUA, Europa e Ásia-Pacífico) terá qual lugar? Na “inclusão limitada” da ordem vigente anterior, os principais canais de governança e participação eram geridos e hierarquizados por organizações da sociedade civil estadunidenses e europeias — mas mesmo estes canais estão sendo eliminados. Sem tais mecanismos, a disputa pela proteção de direitos humanos frente às plataformas pode deslocar-se para formas mais agudas de contestação na chave econômica. Paralelamente, a mesma sociedade civil desses contextos enfrentará uma profunda precariedade no combalido debate público intermediado pelas plataformas.
*O artigo completo estará na próxima edição do Journal of Democracy, da Plataforma Democrática (Fundação FHC e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais). Outras edições da publicação estão disponíveis de graça.
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