Edição de Sábado: Uma dor sem nome

“Uma das maiores dores que eu carrego é de não lembrar o rosto da minha filha.” Não existe um nome para essa dor. Para esse luto. Seja por sua vastidão ou pela absurda ruptura do ciclo natural da vida, o sofrimento de uma mãe que perde o filho ou a filha que gestou plenamente, sem sobressaltos, seja perto de seu nascimento ou instantes depois dele, é algo com que a sociedade – e mesmo os profissionais de saúde – não estão aptos a lidar. E, assim, esse luto comumente as condena a uma solidão avassaladora. Mas um grupo está disposto a quebrar esse silêncio e esse tabu, com muito estudo, acolhimento e afeto. E é ao relato dessas pessoas que este texto se dedica – o que pode trazer luz ao assunto, mas também pode ser doloroso demais para quem passou por algo semelhante. Este é o alerta de gatilho que fazemos.
Perla Frangiotti é professora e mãe de duas meninas. É dela a frase que abre esta reportagem. “Lembro que ela era roxinha. Só isso. Não sei se tinha marca de nascimento, se o cabelo era loiro ou castanho ou preto.” Clara é sua primogênita, completou 12 anos na última semana. Heloísa nasceu há oito anos, já sem vida. “Demorei bastante para engravidar da Clara e, quando ela estava com três aninhos, falo que brinquei com Deus. Disse para ele: ‘o negócio é o seguinte: se você acha que eu devo ser mãe de novo, tem que mandar neste dia específico porque é o único que eu não vou me prevenir’. E naquele dia, veio. Quando contei da gravidez para a irmã, ela cravou que seria uma menina e se chamaria Heloísa.” Assim foi.
Da escolha do nome às 36 semanas e 5 dias de gestação, tudo correu bem – até Perla se dar conta de que havia algo errado. Numa quarta-feira, ela foi à consulta e fez um ultrassom, estava normal. Peso, comprimento e batimento cardíaco dentro dos conformes. No sábado de manhã, sua doula foi a sua casa para planejarem o que fazer se ela entrasse em trabalho de parto porque o obstetra estava viajando naquela semana. “Deixei a bolsa pronta, preparei tudo. À tarde, levei a Clara para pular o Carnaval. E quando cheguei, à noite, na hora que dá aquela acalmada… me toquei que a Heloísa não tinha se mexido durante o dia.”
Sua doula a tranquilizou e a orientou que comesse alguma coisa, mas Perla decidiu ir ao pronto-atendimento de uma maternidade pública de sua cidade, Araraquara, em São Paulo. O médico a submeteu à cardiotocografia, exame que registra a frequência cardíaca do bebê, os movimentos do corpo e as contrações uterinas. Ponderou que os resultados não estavam bons, mas também não eram péssimos. Como seu marido e filha a aguardavam na sala de espera, Perla optou por não se internar, o médico anuiu. Orientou que ela retornasse na manhã seguinte. “Pensei: ‘ah, ela não está mexendo porque a gravidez está avançada, tem pouco espaço’, algo assim. Nunca passou pela minha cabeça que ela pudesse morrer porque ensinam que a gente só perde até os três meses, né?.”
Domingo cedinho a família voltou para o hospital. A médica refez o cardiotoco e prescreveu um ultrassom com Doppler, mas o técnico que operava este exame só trabalharia à tarde, por isso Perla foi liberada com a instrução de retornar, mais uma vez, depois do almoço. Ela, no entanto, decidiu ir para a cidade vizinha, São Carlos, onde fez o pré-natal. Ali, o chão se abriu debaixo de seus pés. A expectativa pela vida vindoura, madura a ponto de explodir no mundo, foi preenchida pela dor lacerante. “Quando cheguei lá, a Heloísa já tinha morrido. A enfermeira tentou achar o coração e não conseguiu.”
Um médico confirmou o pesadelo. “É, não tem som, nem movimento. É óbito fetal.” Perla se questionava como isso era possível já que a gestação havia sido tranquila, sem intercorrências. Em seguida, notou como todos a seu redor estavam desbaratados. “As pessoas não sabem o que fazer com você. Na maternidade, todo mundo está preparado para receber a vida, não a morte.” Perla considera que, na medida do possível, foi bem atendida. O colo do útero não amoleceu o suficiente para um parto normal, portanto a cesariana se fez necessária. Embora os profissionais tenham se esforçado, a falta de instrução atravessou a experiência que deveria ser de acolhida e total apoio.
“Achei que, assim que tirassem Heloísa da minha barriga, me trariam e encostariam a neném no meu rosto. Era o referencial que eu tinha, a experiência que vivi com a Clara. Mas ela nasceu e eu só soube quando meu marido me contou. Consegui ver a Heloísa porque pedi. Foi tudo jogado. Me vi na mesa do centro cirúrgico sem saber se podia mexer nela. Do jeito que me entregaram, fiquei. Com ela nos braços, pensei comigo mesma: ‘podia tirar uma foto’, mas eu mesma me respondi: ‘não, é bizarro tirar foto de gente morta’. Ninguém me ofereceu um registro fotográfico ou sequer disse que eu poderia ajeitá-la em meu colo.” Este foi o último contato entre mãe e filha, que se desvaneceu na memória. “Não a vi com a roupinha que escolhi, não tenho nada para mostrar à irmã. Estava em estado de choque e, por muito tempo, me culpei por não lembrar da carinha dela.”
Ao deixar a maternidade, o silêncio denso — incubador do luto — foi rompido pela barulheira burocrática e pela continuidade das vidas alheias, que seguiam seu curso normalmente. Foi necessário, por exemplo, organizar um enterro, já que bebês natimortos, que falecem após 20 semanas de gestação, devem ser enterrados por imposição legal. Sem jeito, tentavam consolar: “ah, pelo menos você já tem uma filha”, “já já engravida de novo”. Contudo, nem mesmo o tempo da despedida foi respeitado. “Enterramos a Heloísa e, já na segunda-feira de manhã, a gerente da escola em que trabalho mandou mensagem informando que o Estado não concederia licença. Se ela tivesse nascido com vida e morrido logo em seguida, eu teria o direito, mas como ela morreu dentro de mim, consideram que não houve parto”.
No regime CLT, o INSS garante licença-maternidade de 120 dias em caso de óbito fetal, independentemente de o feto ter morrido no útero ou ter nascido com vida e falecido depois. No entanto, Perla, sendo funcionária estatutária do Estado de São Paulo, teve seu direito negado. “Era como se eu tivesse morrido pela segunda vez em dois dias. Repetia: ‘Não é possível que estão tirando de mim esse título de mãe. Não é possível que o fato de ela ter morrido dentro de mim invisibilize tudo’”. Não tinha condição nenhuma de voltar a trabalhar em três ou quatro dias. Mentalmente, estava acabada. “Como eu voltaria para a escola? Antes de tudo, quando eu dava aula, ninguém mais olhava para mim, era só a minha barriga. As crianças beijavam, abraçavam, traziam presentes. Eu não conseguia voltar. Além disso, tinha a parte física: passei por uma cesárea. Então, o Estado me deu direito à licença médica”. Era a primeira vez que ela enfrentava a área cinzenta das leis que envolvem famílias enlutadas por natimortos. “Eu fiquei revoltada.”
A luta pela informação
Feixes de luz começaram a surgir por meio da informação. Perla descobriu a existência de grupos de apoio à perda gestacional e neonatal espalhados pelo país — missão não tão fácil, já que não há uma plataforma que centralize todas essas iniciativas. Simultaneamente, sua doula a conectou à psicóloga e pesquisadora Heloisa Salgado, pós-doutora pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e coordenadora do Instituto Luto Perinatal.
Salgado estava escrevendo o livro Como lidar: luto perinatal, em parceria com a professora Carla Andreucci Polido, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Voltada para profissionais da saúde, a obra sugere maneiras de o Brasil acolher melhor as famílias enlutadas. Para isso, as autoras buscavam relatos de quem atravessa essa dor. Perla decidiu compartilhar o seu.
Durante a troca, a psicóloga a convidou para participar do encontro de um grupo de apoio em Ribeirão Preto, cidade próxima. “Fomos eu, meu marido, a doula, uma amiga... uma verdadeira caravana. Foi muito mágico. A primeira mãe que falou conseguiu colocar em palavras todos os sentimentos que, havia cinco meses, eu tentava explicar para as pessoas ao meu redor e não conseguia.” A experiência foi tão impactante que a professora saiu do encontro com a primeira reunião do Transformação, grupo que fundaria reunindo mães que também conviviam com essa dor em total solidão, agendada.
Com o silêncio rompido, relatos e mais relatos dessa inabilidade do mundo lidar com elas emergiram. Uma das mães compartilhou que, na sala de parto, pediu para ver seu bebê, mas o médico lhe negou, afirmando que “era melhor não”. Outra, após a perda, foi internada no andar em que choros agudos de recém-nascidos saudáveis entrecortavam a noite. “Começamos a perceber que tinha alguma coisa errada porque não é possível todo mundo passar pelas mesmas experiências de displicência.” Essas mães estavam certas. Entre as maiores lacunas, destacam-se as pulverizadas legislações estaduais (em São Paulo, por exemplo, é lei: mães de natimortos devem ser internadas em alas separadas — o que não se aplica a todas as áreas do país). Outro grande problema é, justamente, a falta de um plano nacional, de uma diretriz clara, um protocolo que oriente profissionais sobre como atender mães e famílias que enfrentam uma perda neonatal. Essa também é a luta da psicóloga Heloisa Salgado.
Uma falha na lei
Lançado em 2018, Como lidar: luto perinatal é uma obra acessível a qualquer interessado, mas, sobretudo, um guia crucial para médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde que lidam com o nascimento quando ele vem acompanhado pela morte. Baseado na experiência canadense, referência mundial na área, o livro adapta os protocolos do Canadá à realidade brasileira. Para a produção da obra, Salgado se aprofundou tanto no tema que transformou o conteúdo em sua pesquisa de pós-doutorado, um dos poucos estudos sobre o assunto realizados em língua portuguesa. Essa pesquisa ampliou as abordagens do livro, incorporando ainda as diretrizes britânicas, com o intuito de validar um protocolo específico para o Brasil. O projeto, por sua vez, deu força à luta de milhares de mães, que nele se apoiaram para protocolar o Projeto de Lei (PL) 1640/2022, que institui a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental. Já aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto aguarda agora apreciação no Senado.
A pesquisa de Salgado vai além do livro e detalha diretrizes essenciais para o atendimento às famílias enlutadas, com um enfoque no acompanhamento contínuo durante todo o processo de luto. Entre os principais pré-requisitos para oferecer cuidados adequados, ela destaca o tempo, o treinamento e o suporte. Para Salgado, o acolhimento imediato é apenas o começo; o acompanhamento deve se estender até o pós-alta, abordando as necessidades emocionais e práticas das famílias. Além disso, ela enfatiza a importância de envolver os pais nas decisões sobre aspectos delicados, como o planejamento do funeral e a criação de memórias físicas, como caixas de lembranças. “O que precisamos fazer é formar profissionais preparados para comunicar e acolher essas famílias, o que muitas vezes depende de gestos simples: cortar um chumaço de cabelo, fazer a digital do pé e da mão, guardar a pulseirinha, oferecer uma foto. A preocupação deve estar no desempenho do profissional, na maneira como ele estabelece a linha de cuidados e, principalmente, no respeito ao tempo da família. Tempo não são apenas 20 minutos ou uma hora, mas tempo real. Se não conseguimos oferecer e respeitar esse tempo, não estamos proporcionando a essa família uma oportunidade única de despedida”, explica a pesquisadora.
Um ponto central dessa pesquisa é o papel do profissional do luto, um especialista que integra a equipe de saúde e oferece apoio tanto à família quanto aos profissionais envolvidos. Este profissional pode ser crucial para orientar os pais em momentos delicados, como a decisão de não ver o bebê, uma escolha de que muitos acabam se arrependendo depois. Além disso, o estudo reforça a necessidade de acompanhamento psicológico em gestações posteriores, pois os medos e inseguranças decorrentes da perda anterior podem surgir novamente, afetando a saúde emocional da família e o desenvolvimento de uma nova gestação. No entanto, a escassez de especialistas capacitados para lidar com esse tipo de luto é um problema significativo no Brasil.
Leandro Honore Lopes, médico especialista em medicina fetal com mais de 20 anos de experiência, revela que, até hoje, nunca recebeu a preparação adequada para lidar com o atendimento a famílias que enfrentam a perda perinatal. “Há uma grande falta de apoio emocional, até mesmo para o próprio médico, que precisa viver a situação junto com o casal. Quando o profissional se depara com um momento como esse, ele sente tamanha angústia que, muitas vezes, acaba se afastando rapidamente da família, desamparando-os justamente no momento em que mais precisam”, explica. Para ele, essa é a pior escolha do profissional ao lidar com um luto tão único.
Entre as especificidades desse luto, a pesquisadora Heloisa Salgado destaca a forma visceral com que ele é sentido pela gestante. “Todos no entorno ficam tristes, mas as pessoas não tiveram um contato próximo. A mãe, por outro lado, criou um vínculo só dela. Então, é uma dor dilacerante e solitária, em certa medida — muito ligada ao próprio corpo da mulher. Ela não atravessa o luto apenas pelo bebê, mas também pelo próprio organismo. ‘Por que meu corpo não conseguiu sustentar essa vida?’. É cercado de culpa. Sem falar no aspecto físico, do puerpério. O leite segue sendo produzido, há as alterações hormonais, mas não tem a cria.” Por isso, ressalta que “ninguém cura luto”, mas “aprende a lidar com a nova realidade”.
A construção de memórias
Dentro de um saco de organza, uma touquinha e um par de sapatinhos de crochê. Duas borboletas da memória, que simbolizam a transmutação da vida em outra forma, e uma mensagem impressa, com espaço para preencher o nome, a data de nascimento, o peso e o tamanho do bebê. “No curto período em que estive aqui, pude sentir o intenso amor da minha família. Por onde quer que estejam, estarei para sempre em seus corações”, diz a mensagem. Esse é o conteúdo do kit da memória, distribuído por estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a seis hospitais do estado. A iniciativa integra o projeto de extensão Renascer – Cuidado Multidisciplinar do Luto Perinatal, coordenado pela enfermeira especializada em neonatologia, Juliana Marcatto, que é professora no Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da universidade.
“A base do luto perinatal é a memória, porque é uma experiência extremamente esvaziada dela. Frequentemente esse luto sequer é validado porque o objeto do sofrimento, às vezes, nunca existiu para alguém além da mãe e do pai. Buscamos dar às famílias a oportunidade de criar memória. Como fazemos isso? Vestindo o neném com a roupinha escolhida pela família, para terem a imagem visual de um bebê e de uma dor que é real; fazendo a impressão palmar e plantar; colocando a música escolhida; se desejarem, fazendo uma oração. Deixando-os à vontade para viver aquele momento da forma como preferirem. São gestos que precisamos ensinar, porque muitas vezes parecem mórbidos”, reflete Marcatto.
Ela destaca a importância de oferecer, durante o apoio, um contato mais profundo com o bebê, dando tempo para que os pais processem a situação e respeitando seus limites. Sem julgamentos. Juliana compartilha um caso recente para ilustrar a importância desse contato. Uma família estava na sala de parto e o bebê tinha uma malformação grave. Os pais já sabiam que ele nasceria sem vida. Quando o bebê nasceu, foi colocado por Juliana no berço, e o pai, emocionado, ficou perto, chorando muito. A mãe, que já havia combinado que não queria ver o bebê devido à malformação, foi respeitada. Porém, em um momento, ela perguntou ao marido: “Ele é bonitinho?”. Juliana perguntou se a mãe gostaria de ver e ela respondeu: “Não, não quero. Já vi na internet e não consigo”. Mais tarde, ela perguntou novamente ao marido: “O narizinho dele é bonitinho?”. Ele respondeu: “É igualzinho ao seu, ele é sua cara”. Juliana ofereceu novamente a possibilidade de vê-lo, tranquilizou a mãe dizendo que cobriria a malformação, e ela aceitou. “Depois a mãe me agradeceu. A dor das coisas que não se vive é, às vezes, maior que a dor das experiências que são vividas”, lembra.
Juliana tem se empenhado em proporcionar aos pais as memórias mais suaves possíveis, mesmo no pior dia de suas vidas. “O tempo que a família passa com o bebê é curto e, nesse tempo, eles precisam de todo o cuidado. O que não for vivido ali jamais será”, ressalta. Além da distribuição dos kits, o projeto também tem um braço de pesquisa e capacitação, orientando alunos e profissionais de saúde a adotar um protocolo de acolhimento ao luto, fundamentado no trabalho de Heloisa Salgado.
Localizado na capital mineira, o hospital público Sofia Feldman, referência em atendimento a casos de alto risco, foi tão impactado pela parceria com o projeto Renascer que fundou o primeiro ambulatório do luto perinatal do país, além de passar por uma reforma com base nos parâmetros britânicos. No Reino Unido, o necrotério que recebe casos de óbito fetal é um quarto de bebê, com uma doula da morte à disposição para apoiar a família. Assim, os pais podem se despedir com mais serenidade. No Sofia Feldman, o ambiente era inadequado, mas agora foi todo reformado, com sofás coloridos e uma atmosfera acolhedora.
No braço da pesquisa, o grupo deu um grande passo ao receber a doação do primeiro CuddleCot registrado no Brasil. Este berço refrigerado oferece mais tempo para a despedida entre os pais e o bebê. Chegou ao país em novembro, mas permaneceu retido na Receita Federal até janeiro, quando as autoridades entenderam do que se tratava e o liberaram. No Reino Unido, onde foi criado, o aparelho já possibilita que os pais levem o bebê para casa para prolongar o adeus. A proposta pode ser incompreensível para quem não viveu esse tipo de luto, mas é defendida por especialistas como um mecanismo eficaz na construção dessas memórias e na elaboração da perda. No Brasil, no entanto, a ideia é que o CuddleCot percorra o país, passando por diversas instituições, para que seu impacto no processo de luto seja estudado em um projeto multicêntrico.
Perla, que perdeu sua filha Heloísa, teve uma despedida abrupta. O nome da menina sequer apareceu no prontuário de atendimento. “Demorei mais de dois anos para buscar o prontuário, na esperança de encontrar alguma informação. Quando o recebi, foi como se revivesse o dia da morte dela. Não estava escrito o peso, a altura, nem que era uma menina. Apenas que eu tive um óbito fetal.” Agora, o nome de Heloísa está imortalizado no berço refrigerado, doado pela instituição inglesa 4Louis em sua homenagem.
Elis, 80
Em 1976, Elis Regina entrou no estúdio Vice-Versa, na época gerido por Luiz Augusto de Arruda Botelho, Rogério Duprat, Sá e Guarabira, para gravar um especial para a Band, dirigido por Roberto Oliveira. O técnico de som do estúdio era Rogério Costa, irmão de Elis, e gravou as músicas em 16 canais. Enquanto era viva, essas gravações nunca se materializaram em um álbum.
Em 1984, Costa e o executivo da gravadora Som Livre Max Pierre usaram essas gravações para lançar o terceiro disco póstumo da cantora, que havia morrido dois anos antes. Só que, em vez de usar o som da banda original, aproveitaram apenas as vozes gravadas e convidaram uma série de músicos para vestir aquelas canções com o som da época, mais elétrico, com a timbragem inconfundível do DX7 — até hoje o sintetizador digital de mais sucesso da Yamaha, que havia sido lançado um ano antes — e da bateria eletrônica Simmons. O disco Elis — Luz das Estrelas contava com arranjos de gente como Dori Caymmi, Guto Graça Mello, Wagner Tiso e Lincoln Olivetti. E o som era radicalmente diferente daquele gravado para a Band oito anos antes.
Com a máquina de promoção da Som Livre por trás, o álbum explodiu. “Foi trilha sonora da novela Corpo a Corpo, tinha capa do Elifas Andreato, mídia à noite, no horário nobre, chamada no Jornal Nacional, chamada de rádio pra caramba e vendeu 300 mil peças”, conta o filho mais velho de Elis, João Marcello Bôscoli, lembrando que a faixa que abre o disco, Para Lennon & McCartney, com arranjo de Wagner Tiso, fez até com que a música voltasse para o repertório de Milton Nascimento, que não a tocava nos shows.
Terminado o contrato com a gravadora, a família recebeu de volta a master. Para surpresa de Bôscoli, não eram os originais gravados para o especial da Band, mas as do disco da Som Livre. Daquele som de 1976, gravado depois do sucesso de Falso Brilhante, o que restou foi apenas a voz de Elis. “Se existe alguma fita que foi preservada, não chegou até a gente. Ninguém sabe onde está, ninguém viu. A fita tem as coisas gravadas sem ela 1984, cujo conceito eu respeito, mas é altamente discutível.”
Isso colocou em marcha um dos projetos mais interessantes das comemorações dos 80 anos de Elis, celebrados nesta semana, mais precisamente na última segunda-feira, dia 17. Bôscoli resolveu remontar o som original dessas gravações para lançar um disco neste ano, que será batizado de Elis para Sempre. O projeto começou em 2023, a partir de uma conversa com seu irmão, Pedro Mariano. Sabendo quais os instrumentos foram usados, reconstruindo os arranjos a partir do vídeo do especial, eles começaram a recriar o original. A baliza era de que tudo o que Elis tinha aprovado no especial teria de estar nas faixas, usando instrumentos lançados antes de 1976. E, para gravar, Bôscoli tinha uma vantagem extra. Em 2000, quando estava à frente da gravadora Trama, ele comprou o estúdio Vice-Versa, então tem os equipamentos usados na gravação original.
No ano passado, uma primeira canção recuperada foi lançada. Justamente Para Lennon & McCartney. “Toda a família de sons que ela trabalhou a vida inteira tinham de estar na faixa”, diz, e foi atrás de replicar tudo exatamente como era, dos sintetizadores analógicos aos pedais das guitarras. Até o baixo do mestre Luizão, o maior dos baixistas brasileiros, que acompanhou Elis por boa parte de sua carreira, foi recomprado para o projeto.
Furacão Elis
Se esse é o projeto mais interessante a marcar os 80 da cantora, está longe de ser o único. Afinal não é todo dia que se celebram os 80 anos de uma das cantoras mais icônicas do país. Pimentinha ou furacão, dotada de uma uma voz excepcional, marcada por uma impressionante extensão, e talvez uma das cantoras a melhor dosar a emoção em cada interpretação, Elis teve uma carreira superlativa em todos os sentidos. Em curtos 36 anos de vida, gravou 28 álbuns, destes 21 de estúdio e sete ao vivo, além de 33 compactos. São números impressionantes, mas frios diante do que representou para a música brasileira.
Inquieta, nunca se fixou a um só estilo. Não só sempre encontrava novas maneiras de se apropriar das canções que escolhia cantar, como buscou lançar luz sobre jovens compositores que pudessem lhe dar músicas que ganharam versões definitivas a partir de sua interpretação. A lista é gigantesca, mas, só para dar dimensão dessa grandeza e generosidade, estão nela Jorge Benjor, Gilberto Gil, João Bosco, Belchior, Ivan Lins, Hyldon, só para citar alguns.
Para fazer jus a esse legado, neste final de semana, acontece o show Elis 80, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. No fim de semana seguinte, em 28 de março, é a vez de São Paulo. Pedro Mariano, João Bosco, Fagner e Ivan Lins se reúnem no Espaço Unimed para o show também batizado de Elis 80.
Na última terça, uma versão revista e ampliada do livro Elis — Nada Será Como Antes, de Julio Maria, foi lançada pela Companhia das Letras com informações inéditas, além de centenas de declarações marcantes sobre a cantora. João Marcello Bôscoli gosta da primeira versão do livro, mas tem algumas ressalvas em relação aos depoimentos. “Gostei do livro, tem algumas coisas desconfortáveis. Eu acho que as pessoas mentem muito, né? Não é na maldade, mas é complexo”, diz.
Outros projetos que estão em produção são o documentário Elis com a Palavra, feito por Hugo Prata, que em 2016 dirigiu a cinebiografia Elis (Netflix, Telecine), a partir de vídeos e áudios recolhidos pelo pesquisador Allen Guimarães. E existe o desejo da atriz Bianca Comparato de fazer um filme a partir das gravações do disco Elis & Tom. Esse é o assunto justamente do excelente documentário Elis & Tom — Só Tinha de Ser com Você (Globoplay). E há ainda projetos documentais no forno, baseados no livro que João Marcello Bôscoli lançou em 2019 pela editora Planeta: Elis e Eu: 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe.
Mas nenhum projeto é mais completo do que a exposição que ele planeja há anos sobre a sua mãe, que deveria ter estreado em março deste ano no MIS, mas não conseguiu vender todas as cotas. "A gente tem follow up de 40 empresas, mas ainda não conseguimos fechar. Mas a exposição do MIS vai acontecer. Sabe por que? Porque se não acontecer, a responsabilidade não é minha, dei o meu melhor. Estamos com uma equipe super profissional, uma empresa especializada vendendo. Tem os 80 anos, e tudo da Elis é superlativo. Elis & Tom ia ficar 15 dias em cartaz e ficou quatro meses. Todo mundo nos trata bem, mas até agora não bateram o martelo”, diz Bôscoli, que tem esperança de ver a exposição de pé no próximo semestre.
Pensando não só na qualidade artística, mas no quanto Elis está viva entre nós — basta pensar que ela foi a primeira cantora a ter uma faixa vertida para o revolucionário sistema de som tridimensional Dolby Atmos ou no sucesso da propaganda da Volkswagen em que uma Elis recriada por inteligência artificial interage com a filha Maria Rita — as marcas poderiam dar logo esse presente para os fãs.
Selic alta afeta o Imposto de Renda
O prazo de entrega da declaração de Imposto de Renda começou na última segunda-feira. Dois dias depois, o Banco Central elevou a Selic a 14,25% ao ano — maior patamar desde outubro de 2016. O que uma coisa tem a ver com a outra? Para quem não tem contas a ajustar com o Leão, nada. Já para aqueles que têm dinheiro a receber ou a pagar à Receita Federal, a taxa básica de juros é usada para corrigir o montante devido ao contribuinte ou ao governo. No ano passado, quase 60% das declarações tinham restituição a receber, enquanto 21% tinham imposto a pagar.
No primeiro dia de envio da declaração, não faltaram postagens nas redes sociais sobre a tão esperada restituição. Mas em tempos de juros nas alturas e com indicação de nova alta na reunião de maio do Comitê de Política Monetária do Banco Central, deixar o dinheiro com a Receita Federal por mais tempo e recebê-lo apenas no último lote pode ser uma boa opção para quem não tem dívidas ou outros compromissos imediatos.
“Quanto mais tarde a declaração é entregue, mais tarde é feita a restituição, podendo ficar até para o último lote. Com o atual patamar da Selic e o viés de uma nova alta, faz sentido deixar a entrega para o fim. São quatro meses de correção a 100% da Selic. No mercado, não se encontra investimento que remunere 100% da Selic a risco zero”, explica Felipe Coelho, sócio de Impostos da EY Brasil.
As restituições serão liberadas a partir de 30 de maio, seguindo um cronograma com cinco lotes, sendo o último creditado em 30 de setembro. Quanto antes for a entrega, mais rápida será a restituição. Além disso, têm prioridade pessoas com 80 anos ou mais, seguidas de quem tem 60 anos ou mais e pessoas com deficiência e pessoas com doença grave. Depois, vêm as pessoas cuja maior fonte de renda vem do magistério e as que utilizaram a declaração pré-preenchida e que optaram por receber a restituição por PIX. Por fim, quem fez apenas a declaração pré-preenchida ou optou pela restituição via PIX.
Vale lembrar que a restituição nada mais é do que a devolução do Imposto de Renda recolhido no ano anterior que superou o valor total que deveria ter sido pago pelo contribuinte. É um ajuste de contas. Apesar de o governo ter ficado com esse dinheiro desde o ano passado, a correção do valor a ser restituído só começa a ser aplicada a partir do último dia do prazo de entrega da declaração, que neste ano é 30 de maio. A restituição média paga no ano passado foi de R$ 1.482. De acordo com cálculos feitos pela Casa do Investidor, isso renderia aproximadamente R$ 70 entre o primeiro e o último lotes. Por isso, se você não precisa da restituição de imediato, segurar a entrega e ficar no último lote é uma boa opção.
Por outro lado, se você está devendo ao Leão, o ideal é pagar à vista já que as parcelas do imposto devido também são corrigidas pela taxa básica de juros. “É possível parcelar o imposto devido em até oito vezes, de maio a dezembro. Com exceção da primeira parcela, todas as outras são corrigidas pela Selic. Sendo assim, na hora de pagar o imposto quem parcelar vai notar uma diferença entre uma parcela e outra. Com a taxa de juros tão alta, essa diferença também é maior”, afirma Coelho.
Apesar de a maioria dos contribuintes ficar chateada quando há imposto a pagar, o sócio de Impostos da EY esclarece que é melhor pagar de uma vez do que antecipar o dinheiro ao governo. Assim, o contribuinte só paga o que realmente deve. E o ideal é se organizar mensalmente para não ter sustos na hora de acertar as contas com o Leão no ano seguinte. E esse cenário de surpresa em relação ao imposto a pagar pode atingir mais pessoas no ano que vem, se for aprovado o projeto de lei que isenta de Imposto de Renda quem ganha mensalmente até R$ 5 mil e dá um desconto para aqueles que recebem até R$ 7 mil por mês.
“O projeto de lei não ajusta a tabela progressiva como um todo. Até 2015, havia ajuste em todas as faixas. Agora, foi criada uma nova tabela, de redução de IR, para que quem ganha R$ 5 mil por mês não pague nada e quem receba entre R$ 5.001 a R$ 7 mil tenha uma redução parcial. Se, ao longo do ano, a pessoa tiver mais de uma fonte pagadora e todas forem até R$ 5 mil, por exemplo, o contribuinte vai ficar isento em todas, mas quando fizer o ajuste anual, vai imposto a pagar. E isso pode ser uma surpresa negativa. O PL beneficia quem ganha até determinado valor. Se ganhar mais de outras fontes, cai na regra geral. O próprio PL apresenta uma tabela anual, onde isso fica mais claro”, alerta o especialista.
Lógica semelhante vai valer para a taxação dos dividendos dos “super-ricos”. Só que com antecipação de IR à Receita Federal, via retenção na fonte. Para compensar a isenção de quase 10 milhões de contribuintes que ganham até R$ 5 mil por mês, o que vai gerar uma renúncia de receita de R$ 25,84 bilhões em 2026, entre outras medidas, o governo propôs reter na fonte 10% dos dividendos a partir de R$ 50 mil por mês no ato da distribuição para o acionista, assim como já acontece com os juros sobre capital próprio. Na declaração anual, se for observada que a pessoa recolheu acima da alíquota mínima efetiva da sua faixa de rendimentos, será feita uma devolução, na forma de restituição. Hoje, os dividendos pagos a sócios de empresas são livres de IR porque esse valor já foi tributado na pessoa jurídica.
“Na apuração anual, é preciso somar toda a renda do ano. Se a pessoa receber dividendos de R$ 60 mil todos os meses do ano, mensalmente vai ser descontado em R$ 6 mil para o IR. No ano, essa pessoa terá recebido R$ 720 mil. E o imposto devido nesse caso não será 10%, mas uma tributação mínima de 2%. Então, apesar de ter pagado R$ 72 mil de imposto ao longo do ano, o valor devido de fato era R$ 14.400. Essa diferença será restituída”, detalha Coelho, acrescentando que essa mudança não vai afetar pessoas de alta renda que têm carteira assinada, mas pode atingir quem está em situação mista, recebendo uma parte como CLT e o restante como pessoa jurídica.
Mais clicados
As mudanças no Imposto de Renda e o aniversário de Elis também capturaram a atenção ao longo da semana, ao lado de um Klimt perdido e de uma foto do papa hospitalizado. Confira os mais clicados:
1. g1: Calculadora mostra como será a taxação de quem ganha mais que R$ 50 mil, após as mudanças no Imposto de Renda.
2. g1: Entenda os principais pontos do projeto que amplia isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil mensais.
3. CNN: Retrato de um africano, feito por Gustav Klimt e considerado perdido desde a década de 30, será exibido em feira e arte na Holanda.
4. Estadão: Vídeo mostra Elis Regina, que faria 80 anos nesta semana, em imagens inéditas de sua última turnê.
5. Estadão: Vaticano publica foto do papa Francisco rezando na capela do hospital, a primeira desde sua hospitalização no começo do mês.
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