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O que há de novo (e velho) no populismo do século 21?

Relegado à caixa das doenças antirrepublicanas, é um mal que sempre teima em aparecer onde houver uma democracia

Torce-se o nariz para o populismo desde sempre. Já na Antiguidade, os primeiros filósofos que examinavam a recém-criada experiência democrática faziam questão de mostrar que, assim como a aristocracia poderia degenerar em oligarquia, a democracia, que a tantos entusiasmava, podia também se corromper como populismo. Ou, em bom grego, demagogia.

O racionalismo, o iluminismo e o liberalismo sempre demonstraram considerável desprezo (e temor) pelo populismo, por diferentes razões. Afinal, para Aristóteles, demagogia era coisa de sofista, não de filósofo; algo próprio de quem troca o amor pela verdade pela habilidade de persuadir por meio da manipulação. Os iluministas sempre reclamaram que o investimento populista se dá nas emoções, na construção de vínculos psicológicos e sociais, e não no esclarecimento recíproco. E, afinal, ao propor um vínculo direto e orgânico entre o líder e as massas, ignorando as instituições intermediárias da política, o populismo representa uma forma regressiva de organização social. O personalismo, o desprezo pela institucionalidade e pelas regras do jogo e a demagogia sempre pareceram componentes incompatíveis com uma democracia robusta.

Assim, o populismo passou a ser relegado à caixa das doenças antirrepublicanas, aquelas que nunca são inteiramente debeladas, mas devem ser sempre combatidas, ao lado do patrimonialismo, da corrupção e do clientelismo.

O populismo sempre teima em aparecer onde houver uma democracia, como um parasita, um defeito, um sintoma de que algo não está bem nesse regime de governo. Por isso, “populista” nunca é uma autodesignação, mas sempre um rótulo imposto de fora, recebido a contragosto e sob protesto. Populistas são sempre os outros.

A demagogia, o plebiscitarismo, o caudilhismo e os governos carismáticos de “homens fortes” conectados diretamente às massas fazem parte dos pesadelos democráticos em todas as épocas. E parecem indicar que o populismo, afinal, é um concorrente da democracia, que onde ele prospera, a democracia definha.

Eis o motivo pelo qual a pesquisa sobre populismo cresceu enormemente nos últimos anos, especialmente para analisar o avanço eleitoral da extrema direita em democracias consolidadas das Américas e da Europa.

Pois bem, gostaria de trafegar um pouco na contramão dessas premissas e examinar de perto, no limite deste espaço, a natureza do populismo atual.

Populismo: uma definição inicial

Antes de tudo, convém esclarecer o conceito. O populismo se baseia em uma convicção, que se desdobra em atitudes e comportamentos. Sua premissa fundamental é que a sociedade é cindida essencialmente entre um povo (diferentemente definido) e uma elite que o explora, oprime ou trai. O povo é a parte melhor da sociedade, mas, por ser vulnerável e oprimido, precisa ser protegido por um ator político (indivíduo, partido, movimento, governo) que seja, ao mesmo tempo, forte, dedicado à causa popular e atado por vínculos essenciais ao povo que representa. O populista é aquele que reivindica ser o campeão do interesse popular, enfrentando bravamente a poderosa elite que o oprime.

Partindo desse conceito — que considero mais neutro e analítico do que a ideia de que populismo equivale simplesmente a demagogia, personalismo e manipulação — faço quatro perguntas fundamentais que polemizam com posições correntes sobre o tema.

1. O populismo é sempre antidemocrático?

É comum argumentar que o populismo é incompatível com a democracia. Urbinati (2019) e Mudde (2004) destacam que ele deslegitima adversários políticos e enfraquece pesos e contrapesos institucionais, sendo, portanto, uma força corrosiva da democracia liberal.

Embora o populismo possa ameaçar instituições democráticas, ele não é, em si, intrinsecamente antidemocrático. Há populismos democráticos que operam dentro das instituições sem destruí-las. Líderes populistas frequentemente apelam para o discurso da soberania popular e para a defesa da maioria contra elites burocráticas, os donos do dinheiro ou os controladores dos aparelhos ideológicos da sociedade. E, em certos contextos, essa retórica pode até fortalecer a democracia ao desafiar sistemas políticos estagnados, inacessíveis às demandas populares e partidos que perderam conexão com suas bases.

O lulismo no Brasil, por exemplo, incorporou elementos populistas sem romper as regras do jogo democrático.

Se todo populismo fosse essencialmente autocrático, como explicar casos de populismo institucionalizado dentro de regimes democráticos? O lulismo no Brasil, por exemplo, incorporou elementos populistas sem romper as regras do jogo democrático. Em vez de uma força monolítica de erosão democrática, o populismo deve ser visto como um fenômeno ambíguo, que pode tanto enfraquecer quanto revitalizar a democracia, dependendo de como é exercido.

Além disso, há uma relação simbiótica entre democracia e populismo. Afinal, algum ator político, numa democracia, pode se manter competitivo sem ser popular? Como ouvi certa vez de um filósofo francês desapontado com sua breve experiência como ministro de Estado: “O problema da democracia é que você e as suas propostas têm sempre que ser populares.” De fato, o eleitorado não responde bem a políticos excessivamente burocráticos, distantes ou tecnocráticos. Por isso, a necessidade de mobilização emocional, comunicação direta com a população e construção de discursos agregadores tornou-se parte do jogo democrático. Isso significa que a popularidade e a comunicação que se tornaram sinônimas de populismo, são também condições normais da política democrática.

O problema surge quando se confunde “popular” com “populista”. Todo líder populista tenta ser popular, mas nem todo político popular é populista. Um presidente ou partido pode buscar apoio popular e simplificar mensagens sem necessariamente adotar uma postura populista no sentido pejorativo. O perigo está quando a busca pela popularidade vem acompanhada da rejeição às instituições democráticas, da negação da legitimidade dos adversários políticos e da tentativa de monopolizar a representação do povo.

2. O populismo é sempre manipulação ou pode ser um fenômeno autêntico?

Em geral, considera-se que o populismo é uma forma oportunista de manipulação política. Weyland (2001) sugere que populistas exploram ressentimentos populares para obter poder, sem compromisso real com suas promessas. Urbinati (2019) enfatiza que o populismo, ao se basear na mobilização emocional e no antagonismo, enfraquece as instituições democráticas ao invés de fortalecê-las.

Essa visão, no entanto, simplifica o fenômeno populista. Se o populismo fosse apenas um instrumento de manipulação, como explicar sua permanência e influência duradoura? O fato é que nem todo populismo é meramente estratégico; há populismos de convicção, tanto na direita quanto na esquerda, em que líderes realmente acreditam no projeto que propõem.

Movimentos, líderes e partidos populistas não surgem no vácuo — eles respondem a demandas sociais legítimas. O populismo de esquerda nasce da percepção de desigualdade econômica, enquanto o populismo nacionalista de direita responde ao sentimento de perda de soberania cultural ou à percepção de ameaça à identidade nacional. Em muitos casos, o populismo canaliza insatisfações reais, preenchendo lacunas deixadas por partidos tradicionais.

Além disso, há populismos institucionalizados, como o peronismo na Argentina, que funcionam como sistemas políticos estabelecidos, e não apenas como projetos personalistas passageiros. E como negar que a “opção preferencial pelos pobres” e o discurso antielitista do PT, perfeitamente assimilado ao sistema político brasileiro, sejam populistas? As esquerdas trabalhistas não têm necessariamente esse componente populista?

Ora, o populismo pode degradar instituições, mas também pode servir para ampliar a inclusão política de grupos historicamente marginalizados. Ignorar essa nuance reduz o populismo a uma mera estratégia eleitoral, quando, na verdade, ele pode ser tanto oportunista quanto autêntico. Embora sempre crie uma tensão anti-institucional, a maior parte dos populismos conhecidos não resultou em partidos e movimentos revolucionários, mas em teses ideológicas e políticas públicas domesticadas pelas regras do jogo democrático.

3. O populismo é uma ideologia ou apenas um estilo de comunicação?

Costuma-se definir o populismo como uma ideologia fraca e inconsistente. Para Cas Mudde (2004), o populismo é um “cinturão fino” de ideias, um conjunto de crenças vagas sobre a relação entre povo e elite, que pode ser anexado a diferentes ideologias como socialismo ou nacionalismo.

Esse argumento tem mérito, pois o populismo é adaptável e pode ser associado a diversas orientações políticas. No entanto, definir o populismo apenas como um estilo retórico ou uma estratégia de mobilização subestima sua profundidade. O populismo não é só uma ferramenta discursiva — ele expressa visões de mundo específicas sobre o papel do povo, das elites e do Estado. Em muitos casos, ele se traduz em programas de governo concretos e transforma sistemas políticos inteiros.

A grande variação do populismo não invalida sua dimensão ideológica. O populismo ultraliberal de Milei e o populismo econômico redistributivo de Chávez não compartilham a mesma ideologia econômica, mas ambos mobilizam uma lógica populista de antagonismo entre povo e elite. A ascensão dos partidos populistas na Europa, por exemplo, não se deu apenas pela retórica, mas porque eles canalizaram demandas populares específicas sobre soberania, imigração, valores nacionais e crise econômica.

4. O populismo mudou? O que explica seu crescimento na política global?

Há duas visões tradicionais do populismo. Na primeira, de esquerda, o povo é o conjunto das classes subalternas em uma sociedade dividida em classes. Em países como o nosso, são os pobres, os trabalhadores e, mais recentemente, outros grupos historicamente submetidos a diferentes formas de opressão. Essa é a forma associada a partidos e governos “do lado do povo e contra as elites”.

Na segunda alternativa, nacionalista, o povo é a nação como comunidade orgânica, portadora de tradições, história e valores próprios. Nessa visão, que agora renasce na Europa, a liderança populista se apresenta como a guardiã dos valores nacionais, frequentemente contra elites globalistas ou cosmopolitas que supostamente ameaçam a autenticidade nacional ou contra os estrangeiros.

Líderes como Trump e Milei se apresentam como campeões daqueles que competem no mercado contra 'elites parasitárias' e 'classes improdutivas'.

Essas duas concepções, porém, não bastam para explicar os discursos de líderes como Trump e Milei. Ambos rejeitam a concepção esquerdista de “povo” (nesse sentido, são antipopulistas), mas tampouco veem o povo como uma entidade orgânica e nacional (como na extrema-direita nacionalista). Líderes como Trump e Milei se apresentam como campeões daqueles que competem no mercado contra “elites parasitárias” e “classes improdutivas”. Rejeitam a lógica de que o Estado deve proteger as camadas mais frágeis da sociedade e, ao contrário do populismo clássico, defendem um darwinismo social radical, em que apenas os mais fortes e capazes devem prosperar. Defendem quem produz e é autossuficiente diante do Estado, mas que, ao mesmo tempo, é obrigado a pagar o pato para sustentar os perdedores que dependem da Fazenda pública, enquanto são vilanizados e desrespeitados pela elite cultural progressista.

No populismo “pró-pobres” (Perón, Vargas, Chávez, Lula), a solução é a redistribuição de renda, ampliação de direitos sociais e fortalecimento do Estado de bem-estar social; no populismo nacionalista (Le Pen, Orbán, Putin, AfD) é a proteção da identidade nacional, o controle migratório, a rejeição do globalismo; no populismo ultraliberal (de Trump, Milei e partidos libertários radicais), a meta é o desmonte do Estado protetor, privatizações, desregulamentação e exaltação da competição individual.

Em suma, o populismo mudou, e as definições clássicas precisam ser revistas para contemplar essas novas formas. De modo que, se quisermos um conceito útil de populismo, precisamos abandonar sua definição exclusivamente pejorativa e reconhecer suas diferentes manifestações.

Um conceito de populismo mais neutro e analítico deveria considerar:

  • O populismo como modo de articulação política, que pode ou não ser personalista e que pode ou não dispensar a mediação de instituições;
  • A distinção entre populismos autoritários e democráticos, reconhecendo que nem toda forma de populismo implica ruptura ou degradação institucional severa;
  • A evolução do populismo ao longo do tempo, sem limitá-lo a um fenômeno demagógico, ultrapassado e monolítico;
  • O reconhecimento de que o populismo já se tornou parte da política contemporânea, com diferentes níveis de intensidade e diferentes graus de impacto institucional;
  • A possibilidade de um populismo programático, que opera dentro das regras do jogo e se sustenta por meio de políticas públicas e mobilização social;
  • O fato de que nem todo populismo é autocrático e demagógico, pois há casos em que ele funciona como um canal de inclusão política e de representação popular.

*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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