Edição de Sábado: Beth acima de todos

Enquanto ajeitava o cabelo e o caimento do sobretudo verde, prestes a entrar em um estúdio de televisão, Beth via sua bolsa, deixada em cima de uma poltrona próxima, tremer. Mais um retoque na maquiagem, e a bolsa tremia. Era o celular que não parava de tocar, ela explicou, sem atendê-lo. Mais de 60 familiares da juíza chegariam a Brasília naquele dia, vindos do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de Manaus, para prestigiar sua posse como presidente do Superior Tribunal Militar. Duas mil pessoas haviam sido convidadas para o evento, que ocorreria dali a dois dias. Os preparativos e o telefone da ministra estavam a mil. Mas os preparativos incluíam, também, um périplo de entrevistas a emissoras de TV e portais. “As pessoas não conhecem a Justiça Militar, nem as do mundo do direito", queixa-se. O telefone deveria esperar.
Em 217 anos de história do tribunal, pela primeira vez, uma mulher tomaria posse para comandar a corte militar. O fato histórico, o momento político e o perfil de Maria Elizabeth Rocha fariam com que isso não passasse batido.
Ela faz questão de anunciar não só o que faz a justiça militar, mas quem é. Ela é uma civil, feminista e progressista à frente do tribunal que pode tirar a patente de generais e militares envolvidos na tentativa de golpe bolsonarista.
Há quase 20 anos, a indicação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de Maria Elizabeth Rocha como a primeira magistrada a integrar o STM ganhou pouquíssima atenção. Uma segunda mulher chegara ao Supremo Tribunal Federal no ano anterior: Cármen Lúcia, para se juntar a Ellen Gracie. A presença feminina na alta cúpula do poder — e do Judiciário — era, como ainda é, tímida e atrasada, mas a cobrança por mudanças certamente não tinha a força e o espaço que tem hoje. O Estadão destinou uma nota de seis linhas, na 11ª página impressa, para registrar a nomeação de Elizabeth em 2007. Nada foi publicado nas páginas impressas da Folha de S.Paulo e de O Globo, ainda que na época os jornais fossem bem mais gordos do que hoje.
O interesse pelo STM também não era grande. Em 2007, o país já havia passado por cinco eleições presidenciais diretas desde a redemocratização. A ameaça de um golpe de Estado e o envolvimento de militares em ações antidemocráticas era história do passado. Ninguém imaginava que viraria história para o presente. Bolsonaro era um deputado do baixo clero. Braga Netto ainda não havia sido promovido a general e fazia carreira como adido militar no exterior.
A ditadura
A escolha pelo direito foi fácil para a mineira de Belo Horizonte. O pai e o avô eram advogados e ela se orgulha de dizer que é da terceira geração de juristas da família. Mas não vislumbrava o caminho para a Corte Militar. Elizabeth fez direito na PUC de Minas, mestrado em Portugal e voltou a BH para o doutorado em Direito Constitucional na UFMG.
A familiaridade com a caserna, no entanto, veio pelo casamento. A vivência em uma família dilacerada pela ditadura, também. Ela conheceu o engenheiro militar Romeu Costa Ribeiro Bastos na sala dos professores da Faculdade Cândido Mendes, em Ipanema. Ela, professora de direito constitucional. Ele, de álgebra linear. Romeu, hoje um general da reserva, é filho de militar, e um legalista. Com pouco mais de 28 anos, ele vasculhava os porões da ditadura, em busca do irmão, Paulo, desaparecido.
Paulo Costa Ribeiro Bastos, cunhado da hoje presidente do STM, foi militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em julho de 1972, ele foi preso no Rio de Janeiro, junto a outros integrantes do grupo, levado ao DOI-CODI e nunca mais visto. “Montaram a mesma farsa que fizeram com o Rubens Paiva: torturaram, mataram e jogaram no mar”, conta ela. “Isso causou um AVC no meu sogro”, diz Beth, ao narrar a tragédia familiar.
Em entrevistas e falas públicas, ela faz questão de dar o crédito ao seu marido por frases de horror à ditadura. “Não há nada pior que ter medo do Estado, porque o estado é um inimigo invisível. Meu marido diz isso”, disse ela, em entrevista a mim, para o É Notícia, da RedeTV!. À jornalista Miriam Leitão, na GloboNews, Beth contou que uma vez, em Brasília, o marido ouviu um ministro de Estado se referir a 1964 como revolução e não titubeou em corrigi-lo: “revolução, não, golpe”.
O Planalto
Beth foi aprovada em primeiro lugar para o concurso de procuradora federal e integrou a Advocacia-Geral da União, no período em que Dias Toffoli comandava a instituição. Foi ele o responsável por abrir a porta do Planalto à constitucionalista — o que a levaria, mais tarde, a ser indicada ao STM. Toffoli assumiu a subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, comandada na época por José Dirceu, e puxou Maria Elizabeth da AGU para ajudá-lo no trabalho.
Lula havia indicado um homem ao Superior Tribunal Militar: Luiz Paulo Teles Barreto, um ex-secretário executivo do Ministério da Justiça e ligado a Márcio Thomaz Bastos. A indicação, no entanto, não vingou. O Senado avisou o Planalto que não aprovaria o nome por falta de requisitos constitucionais. Escolhido para a vaga destinada a representantes da advocacia, Barreto não comprovou ter dez anos de exercício profissional e sofreu resistência da Ordem dos Advogados do Brasil. O Planalto retirou a indicação antes de amargar um fracasso político maior.
Não foi uma operação simples nem rápida convencer Lula a escolher a primeira mulher ao STM. Quase um ano se passou entre a resistência ao nome de Barreto e a indicação de Maria Elizabeth Rocha.
A articulação política para isso teve o dedo de Toffoli e do advogado Sérgio Renault, mas também muito trabalho do petista e então assessor presidencial Gilberto Carvalho. Eles se conheceram quando ela chegou ao Planalto para trabalhar na Casa Civil com Toffoli. Carvalho sugeriu a Lula indicar Beth no Dia Internacional da Mulher, o que o presidente fez em 8 de março de 2007.
As resistências
A demora para a indicação seria apenas a primeira dificuldade no caminho dela como integrante do STM. No dia de sua posse como ministra, ela conta que ouviu de um general que suas ideias e pretensões liberais teriam de ficar da porta para fora do tribunal. Ali, disse o general, era o lugar da disciplina. “Eu fui agredida na minha saudação, com a minha família toda presente”, relembra.
Não raro ela é o voto vencido dentro do tribunal, composto por 15 ministros, sendo 10 das Forças Armadas. Viu racismo na morte do músico Evaldo Santos e do catador Luciano Macedo, atingidos por 257 disparos, mas saiu perdedora no julgamento do STM. O tribunal, por maioria, viu legítima defesa na ação dos militares. Como saída, ela defende que militares não sejam colocados por GLOs para trabalhar na segurança pública. Seu argumento é de que o militar é treinado para matar ou morrer pela pátria, uma lógica que, se transferida para a segurança das cidades, gera tragédias.
Em 2013, ela foi eleita vice-presidente da Corte. No ano seguinte, com a aposentadoria do ministro Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, assumiu a presidência do Tribunal para um mandato tampão. Não sem resistência. Dentro da Corte, houve uma articulação para tentar alterar o regimento interno e impedi-la de assumir.
Após 18 anos no tribunal, ela viu uma oposição à sua eleição surgir e ganhar corpo — algo que só acontece, costuma dizer a ministra, porque ela usa saias. O ministro Péricles de Queiroz, também da ala dos civis, quebrou a tradição. Ele defendeu, na ocasião, que a antiguidade deveria ser guardada para “outras circunstâncias administrativas” e citou dois momentos (nos 217 anos de história da Corte) nos quais o mais antigo não foi eleito presidente – 1979 e 1997.
Ela já sabia que não teria trégua no seu momento de ser eleita presidente do tribunal. A tradição é como a do STF: o mais antigo ocupa a presidência, e a eleição é uma mera formalidade, feita a cada dois anos. No STM, há ainda um rodízio entre um presidente civil e um presidente militar. No caso do STF, o ministro “da vez” costuma não votar em si próprio — sabendo que os colegas o elegerão de toda forma, como é o modus operandi da Corte. Maria Elizabeth não pode ter a mesma “nobreza“, como costuma dizer. Quando chegou sua vez, quase não foi eleita. Foi seu próprio voto que desempatou a votação e a elegeu. Ela comenta o assunto com indignação. “Eu não vou lhe dizer que foi fácil (ser a única mulher no STM), não foi. Foi muito difícil. E a minha eleição é uma prova disso”, disse, em entrevista à RedeTV!. Mas eleita ela está.
“Sou feminista e me orgulho de ser mulher!” Foi essa a primeira frase de Maria Elizabeth no Teatro Nacional Cláudio Santoro, de Oscar Niemeyer, ao tomar posse como presidente do STM na quarta-feira, diante de Lula; Davi Alcolumbre, presidente do Senado; Hugo Motta, presidente da Câmara; Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e uma plateia de autoridades. A fala, do começo ao fim, defendeu maior igualdade para as mulheres e teve uma explícita defesa da democracia. Também disse que as Forças Armadas defendem “a segurança do regime democrático” e cobrou Lula por mais mulheres nos espaços de poder.
No último Dia Internacional da Mulher, Lula indicou a advogada Verônica Abdalla Sterman para compor o STM. O presidente, no entanto, reduziu neste mandato a presença de mulheres no Supremo Tribunal Federal — a ministra Rosa Weber e o ministro Ricardo Lewandowski se aposentaram e foram indicados Cristiano Zanin e Flávio Dino para seus lugares.
Os golpistas
Beth, como é chamada, sabe que tem como missão no STM dar respostas à sociedade sobre o envolvimento de militares com a política e com o espírito antidemocrático que tomou o entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro quando ficou claro que ele perderia a eleição presidencial. Há 24 militares denunciados pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal pela tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.
A ministra acredita que agora o momento de agir é do Supremo. Ela defende a competência do ministro Alexandre de Moraes para julgar o inquérito do golpe. “O STM julga crimes militares, não necessariamente os militares”, diz.
Mas tudo indica, sim, que uma parcela do problema será analisada pela Justiça militar. É o caso dos oficiais envolvidos nos atos golpistas por crimes propriamente militares, como a incitação à indisciplina. No início do ano, a primeira instância da Justiça Militar enviou ao STF uma investigação de coronéis envolvidos na elaboração da “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”, que pressionava o comando do Exército a aderir a um golpe a favor de Bolsonaro.
A leitura da presidente do STM é a de que a competência está definida como do STF, mas a apuração dos casos pode levar à indicação de crimes militares passíveis de serem julgados pela Justiça militar. Ela cita, por exemplo, ofensas de inferior a superior nas redes sociais, no contexto da pressão para que o alto comando impedisse a posse de Lula. Não há como o STM analisar eventuais crimes militares, no entanto, se o Ministério Público Militar não oferecer denúncia.
Há ainda a possibilidade de expulsão dos militares das Forças — ou, como dizem, a remoção da patente e do posto. O jornalista Marcelo Godoy, referência na cobertura dos militares, ouviu generais que se debruçaram sobre o inquérito do golpe. Ele escreveu, no Estadão, que a conclusão desses oficiais é de que, independentemente de decisão do Supremo Tribunal Federal, “a Força Terrestre, no que diz respeito à honra, deve punir todos os envolvidos”.
Isso significa que generais como Walter Braga Netto irão passar pelos Conselhos de Justificação, que podem retirar a patente dos oficiais por considerá-los indignos. A decisão do Conselho de Justificação, composto por três membros das Forças Armadas, deve ser homologada pelo Superior Tribunal Militar.
Beth, que critica o envolvimento de militares na política, já declarou que vê cometimento de crimes militares pelo próprio Bolsonaro, e bolsonaristas reclamam do que chamam de “aparelhagem” do tribunal por Lula. Se depender da nova presidente, os militares envolvidos no 8 de janeiro não terão vida fácil no STM. Mas a trajetória da ministra também tem mostrado que, dentro do tribunal militar, quem costuma não ter vida fácil é ela.
A Síria entre as promessas e a barbárie
Na última quinta-feira o presidente interino da Síria, Ahmed al-Sharaa, assinou uma declaração institucional que, ao longo dos próximos cinco anos, vai nortear a transição do país da ditadura de Bashar al-Assad, deposto em dezembro de 2024, para um novo regime. O documento deixa explícita a separação entre Poderes, “os direitos sociais, políticos e econômicos” das mulheres e a “liberdade de opinião, expressão e imprensa”. São princípios (até o momento) comuns nas democracias liberais do Ocidente, mas raros, ainda mais ao mesmo tempo, nos países islâmicos do Oriente Médio. Embora bem-vinda, a declaração ainda precisa ser transformada em ações, especialmente por chegar menos de uma semana após um episódio que reacendeu o temor de violência depois de cinco décadas de autocracia do clã Assad e quase 14 anos de guerra civil.
Na primeira semana de março, grupos de soldados leais ao ex-ditador atacaram postos do governo na província de Latakia, que concentra boa parte da minoria religiosa alauíta, à qual pertence a família Assad. Na reação, as milícias sunitas que integram o novo regime promoveram massacres nas cidades e aldeias da região, deixando, segundo fontes independentes, cerca de 1.500 mortos, em sua maioria civis. Al-Sharaa prometeu investigar e punir os responsáveis, mas o risco de perseguição religiosa e da troca de um regime brutal por outro ficou pairando no ar. Afinal, o que esperar do futuro da Síria?
Primeiro é preciso dar uma olhada no passado. A Síria é uma terra muito antiga. Sua capital, Damasco, tem indícios de ocupação contínua que remontam dez mil anos. Já passou pelas mãos de assírios (dos quais lhe vem o nome), babilônios, persas, gregos, romanos, árabes, cruzados europeus e até mongóis, antes de se tornar, entre 1516 e 1920, província do Império Otomano. Após um período de domínio francês, a República Árabe da Síria nasceu de fato em 1946 e, dois anos depois, fez parte da coalizão árabe que tentou, sem sucesso, impedir pela força a criação do Estado de Israel.
Em 1970, três anos após o país perder as Colinas de Golã para Israel na Guerra dos Seis Dias, um golpe de Estado comandado pelo ministro da Defesa Hafez al-Assad (1930-2000) deu fim à instabilidade política. Assad, cujo filho e sucessor foi deposto há três meses, estabeleceu uma ditadura na cartilha do partido Ba’ath, de ideologia autoritária, secular e vagamente socialista, dominante também nos governos do Egito e do Iraque.
Secular aí é importante porque a Síria é um cadinho de povos e crenças. A maioria da população é sunita, ramo que compreende quase 90% dos muçulmanos do mundo, mas há uma minoria xiita e cristãos das mais diversas denominações. Os Assad, em particular, pertencem a um grupo ainda menor, os alauítas, uma facção do xiitismo que ocupou a elite da administração pública ao longo dos 54 anos da ditadura — e há um rancor grande em relação a eles por isso. Também são diversas as etnias, incluindo os curdos, que lutam para criar um país no que hoje são o norte da Síria e do Iraque e o leste da Turquia. A despeito da natureza autoritária e violenta do regime, Hafez adotou e Bashar manteve uma política de tolerância religiosa e proteção às minorias.
Em 2011, na esteira da malfadada Primavera Árabe e da desestabilização o Oriente Médio pela invasão americana ao Iraque, diversos grupos de civis e desertores do Exército iniciaram uma campanha para depor Bashar al-Assad. Para complicar ainda mais, a partir de 2014, um grupo sunita ultrarradical, o Estado Islâmico da Síria e do Iraque (ISIS, na sigla em inglês), varreu a região e chegou a controlar parte do país, impondo uma severa lei religiosa, perseguindo “infiéis” e destruindo sítios históricos. Estados Unidos, Rússia, Turquia e Irã, cada um defendendo seus interesses, participaram de ações contra o ISIS até sua derrota na região em 2019. A luta contra Assad continuou, mas o ditador contava com apoio russo, iraniano e, no Líbano, do grupo xiita Hezbollah.
Esse apoio, porém, se desintegrou, com a Rússia atolada na Ucrânia e o Irã e o grupo libanês acossados por Israel na guerra que se seguiu aos atentados do Hamas em outubro de 2023. Em dezembro do ano passado, o grupo islâmico Hayat Tahrir al-Sham (HTS) tomou Aleppo, a segunda maior cidade da Síria e avançou sobre Damasco praticamente sem resistência. Assad fugiu para Moscou com a família, e Ahmed al-Sharaa formou um governo provisório.
O temor sobre o futuro da Síria, agravado pelo massacre em Latakia, não é injustificado. O HTS existe desde 2017, surgido da fusão de diversos grupos armados islâmicos, vários dos quais com ligações com a rede terrorista al-Qaeda, de triste memória. Seu discurso era fortemente religioso sunita, pregando uma “jihad popular” que livrasse a Síria tanto do regime do Ba’ath quanto da influência xiita do Irã e do Hezbollah.
Desde que assumiu o poder, al-Sharaa vem tentando convencer o mundo de que as ligações com organizações terroristas são coisas do passado, que os remanescentes da al-Qaeda no HTS foram expurgados e que pretende montar um governo de união nacional. Mas a matança de alauítas põe em xeque sua capacidade de controlar as tropas e evitar vinganças e perseguições. Além disso, a Síria é uma peça em um tabuleiro mais que conturbado. O Hezbollah e o Irã, xiitas, estão desarticulados, mas não devem estar felizes de ver um governo sunita literalmente no meio do caminho entre eles. Por outro lado, é a oportunidade de a Arábia Saudita, maior e mais rico país sunita da região, aumentar ainda mais sua influência. Israel, que vê a mudança de regime na Síria como resultado direto de suas ações, vem fazendo incursões por terra e ataques aéreos, oficialmente para evitar que material bélico das forças de Assad caia nas mãos do novo governo, e criando uma “zona de segurança” para além de Golã, o que não facilita a estabilidade no país. E não se sabe o que Vladimir Putin fará quando não tiver mais de se preocupar com o combate na Ucrânia.
Estima-se que, ao longo da guerra civil, 600 mil pessoas morreram e pelo menos 9 milhões de sírios tenham fugido, provocando uma crise migratória e uma reação xenófoba na Europa. Cidades foram arrasadas, infraestrutura desmantelada. Reconstruir um país nessas bases é uma tarefa difícil. Reconstrui-lo com respeito às minorias (étnicas, religiosas, culturais, sociais etc.) em meio a tantos rancores e pressões externas, mais ainda. Mas uma Síria estável — preferencialmente democrática, mas isso talvez seja esperar demais — é um passo importante para restabelecer alguma ordem civilizatória nesses tempos estranhos que estamos vivendo.
Doce veneno da atuação
Se você quer ir ao teatro para relaxar e não ser provocado, definitivamente o espetáculo O Veneno do Teatro não é para você. “Estamos dentro de um teatro, com uma plateia enclausurada, um homem vaidoso, egocêntrico, e outro que é mais vaidoso e egocêntrico ainda, só que mais perturbador e perturbado. É nesse jogo de poder e sedução entre os dois que o espetáculo encontra a sua magnitude, entende?”, resume o ator Maurício Machado, que interpreta o ator Gabriel de Beaumont.
O thriller psicológico, obra-prima do premiado autor espanhol Rodolf Sirera, ambientado na França, em 1784, na pré-revolução francesa, é aquela clássica história sobre a hipocrisia, a sede de poder, a vaidade e tudo aquilo que é essencialmente humano e que lutamos para transformar em alguma espécie de virtude — ou ao menos para performarmos como virtuosos.
Indignados, angustiados e aprisionados pela incerteza do desfecho, a montagem dirigida por Eduardo Figueiredo conta ainda com música ao vivo, quase que uma assinatura do trabalho do diretor: o impecável violoncelo de Matias Roque Fideles, com direção musical e trilha de Guga Stroeter.
“Música ao vivo é uma vantagem. Dá uma beleza incomparável à cena. E pra nós (atores) é muito bom. Uma das músicas que eu sugeri ao Eduardo e ele acatou foi a Ária da Quarta Corda, de Johann Sebastian Bach. Pelo Marquês, meu personagem, ter uma sensibilidade extraordinária, isso o prepara para a lambada que ele precisa dar no público, do ator, senta o cacete mesmo”, diverte-se Osmar Prado.
Até 6 abril, no Teatro Carlos Gomes, no Centro do Rio, o espetáculo descortina a nossa teia de preconceitos e nos convida a questionar nossos julgamentos. Depois, eles têm uma curta temporada na cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, onde estrearam em 2024.
De volta aos palcos
“Tem uma frase emblemática do Marquês, que o Osmar vai se lembrar melhor do que eu, que é sobre o julgamento que temos com o outro, sem nunca tê-lo visto, Sobre o que você imagina que o outro seja. De alguma maneira, é assim que a gente caminha na sociedade. Há quem veja uma pessoa preta, vestida de maneira simples, e atravesse a rua por medo de ser assaltado. Por isso, essa peça é um exercício de desconstrução. E isso eu aprendo muito, mesmo sendo mais jovem, com o Osmar. Ele é um cidadão do seu tempo”, conclui Machado, elogiando o colega de profissão, há 10 anos longe dos palcos.
Assim, como se estivesse sendo iluminado por um feixe de memória, Osmar Prado, alegre e vívido, lembrou dos percalços de quando começou na profissão de ator, mesmo antes de ser regulamentada. No Brasil, a categoria de atores, atrizes e demais artistas e técnicos em espetáculos de diversões teve sua última regulamentação pela Lei n° 6.533, de 24 de maio de 1978, durante a ditadura militar. Na sua escolha pela atuação enquanto ofício, pagou um preço alto.
“Como cidadão e como artista, estou submetido ao poder, o que já me diferencia muito do Marquês, que brinca com essa coisa a hipocrisia da sociedade. Muitas profissões nos colocam em posição até mesmo de enfrentamento do poder. Destoei de toda a minha família”.
Ao descrever detalhes da sua trajetória, Prado revela como ser ator era uma espécie demérito, uma profissão marginal no sentido de ser “de fora”, de não se adequar, quase um ser perigoso e inaceitável pelos padrões da sociedade.
“Era garoto quando comecei a atuar, uma senhora se aproximou de mim e disse que eu havia começado muito mal a vida por ter escolhido atuação. Quando tive de platinar o cabelo para um papel, enfrentei muito preconceito. Fui suspenso várias vezes na escola por desacato. E minha tia, mesmo sendo operária, sem tempo, sacrificou horas da sua vida pra me levar ao teatro, mas tentaram me demover muitas vezes. Com meu pai, bati de frente: ‘Para eu deixar a minha profissão, você vai ter que me tirar a força, a gente cai na porrada agora, então!’”, relembra, “não foi, e não é mole fazer arte”.
“Imagina você ter uma vocação e enfrentar tudo isso? É só um amor desbragado, de paixão, de tesão por uma profissão que permite que a gente enfrente tanto. Pra mim, que não tive sequer uma tia que me levasse para o teatro, essa luta cria dores indeléveis. O frescor do Osmar, aos 65 anos de carreira, depois de sermos tão machucados, de chegarmos ao ponto de sermos vistos como ladrões de dinheiro público por conta de leis de incentivo, é muito poderoso. E O Veneno do Teatro é resultado dessa luta. Tanto Osmar quanto eu fizemos uma grande escolha por escolher contar uma história na qual nós dois acreditamos e isso é um privilégio enquanto ator”, conta Machado, com os olhos marejados.
Para o artista, já com 37 anos de carreira, é lamentável que atores, cineastas, e todas as artes sejam vistos por uma fatia da população como ‘ladrões de dinheiro público’ quando se fala em recursos governamentais de fomento à cultura. Atuar, na verdade, é uma profissão deveras difícil. E quem diz isso são os matemáticos da Queen Mary University, em Londres, que analisaram a trajetória de 2,4 milhões de atrizes e atores de cinema e televisão registrados na Internet Movie Database (IMDb): 69% deles tiveram carreiras curtas, terminadas no ano em que começaram.
Depois de uma longa conversa, já abordando a beleza e o desafio de envelhecer, o ávido leitor de Espinosa Osmar Prado refletiu sobre sua carreira: “Todas as vezes em que eu estive mal na vida, o teatro me acolheu. Imagine se eu tivesse desistido, teria morrido. Mas 'Ainda Estou Aqui’, e pretendo continuar!’”, brincou o ator, em um jogo de palavras com o filme de Walter Salles — que não por acaso fala sobre o poder da resistência. Atuar, representar, de fato, é um ato de resistência. Ocupar o teatro também. Fica o convite.
O Veneno do Teatro está em cartaz de 14 de março a 6 de abril, no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, Centro do Rio de Janeiro. Sexta, às 19h; Sábado e domingo, às 18h. A classificação é 14 anos.Os ingressos custam R$80 (inteira), R$ 40 (meia) e a peça tem duração de 70 minutos.
O Ponto de Partida voltou com tudo nessa semana, deixando a produção do Meio bem bonita entre os mais clicados:
1. UOL: Supremo Tribunal Federal decide anular mandato de 7 deputados eleitos em 2022 na Câmara, veja quem assume no lugar.
2. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria analisa a relação de Donald Trump com a economia, dizendo que o presidente dos EUA tem cabeça mercantilista, pré-capitalista.
3. UOL: Uma técnica de construção a seco, conhecida como light steel framing, tem ganhado espaço no Brasil, oferecendo isolamento acústico e térmico e economizando a grandes quantidades de água.
4. Panelinha: Perfumado, úmido, com as lascas soltas. O peixe assado imerso no azeite é um escândalo.
5. Meio: Pedro Doria junta o livro The Status Game com a reportagem deste Meio sobre o homem de classe média para argumentar que os homens periféricos são uma ameaça à democracia.