Edição de Sábado: Ser tão brasileiro
Gusttavo Lima emergiu nesta semana como presidenciável. Sem partido, sem atuação política para além da de soldado na linha de frente da guerra cultural bolsonarista, o cantor, que tem 12,5 milhões de ouvintes mensais no Spotify, surge como a mais nova força da direita na pesquisa Quaest divulgada na última segunda-feira. Se o presidente Lula aparece com folga na preferência dos eleitores nos quatro cenários que combinam como opositores Tarcísio de Freitas (Republicanos), Gusttavo Lima (Sem Partido), Pablo Marçal (PRTB), Eduardo Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT), Romeu Zema (Novo) e Ronaldo Caiado (União), as intenções de voto no cantor mineiro radicado em Goiânia foram a maior surpresa do levantamento.
No pior cenário para o sertanejo, ele fica em terceiro lugar, com 12% das intenções de voto, apenas um ponto percentual atrás de Tarcísio de Freitas, ou seja, empatado ao se considerar a margem de erro. Já no melhor deles, sem Marçal nem Tarcísio na disputa, consegue um segundo lugar folgado, chegando a 18%.
O desempenho fez com que alguns partidos se mobilizassem em torno de seu nome nesta semana. PRTB e Avante já fizeram propostas de filiação. Nos próximos dias, ele deve conversar com o PRD — partido criado em 2023, a partir da fusão de PTB e Patriota. Legendas maiores, com mais dinheiro do fundo eleitoral, também se aproximaram de Lima. Mas União Brasil, PL e PP não conseguem vê-lo na disputa presidencial, preferem que o cantor tente concorrer ao Senado por Goiás.
Essa projeção de Gusttavo Lima pode ser pensada para além de sua própria figura e do papel que desempenhou nos últimos anos na corte de Bolsonaro. Reflete também o poder da música sertaneja hoje no Brasil. Na mesma segunda-feira, uma pesquisa sobre hábitos culturais, realizada pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte e apresentada em um seminário no Itaú Cultural, mostrou que o sertanejo é o gênero musical favorito em 15 das 27 capitais brasileiras. Também é citado por 34% do público como um de seus três ritmos prediletos, superando o pagode (18%) e o samba (11%) somados.
Dá para dizer que, além de conquistar corações partidos e cotovelos doloridos, a música sertaneja também ocupa um papel importante dentro do Brasil polarizado, com uma associação direta com o agro, pop ou tradicional, e também com a direita. Mas nem sempre foi assim. Ao analisar historicamente os principais expoentes do gênero ao longo dos anos, havia uma fluidez política grande.
Contudo, desde o seu nascimento como gênero, o sertanejo é marcado por disputas nos campos simbólico e da cultura. Além disso, a maneira como o negócio da música sertaneja se estrutura ao longo dos anos e a oposição que sofre de setores progressistas têm muito a ver com a recente guinada à direita.
Jeca Tatu versus Jeca total
A música sertaneja como conhecemos hoje começa a se formar nos anos 1970, durante a ditadura militar, embora só vá dominar os ouvidos da classe média a partir dos anos 1990. E nasce de uma ruptura dupla. De um lado, quer se diferenciar da música tradicional caipira; de outro, da idealização do homem do campo combativo e revolucionário, feita por compositores que viriam a formar a MPB nos anos 1960, como Geraldo Vandré, Milton Nascimento e Edu Lobo.
A distinção entre os dois estilos está bem descrita no livro Cowboys do Asfalto - Música Sertaneja e a Modernização do Brasil, lançado pelo historiador Gustavo Alonso em 2015, a partir de sua tese de doutorado — curiosamente a primeira a se debruçar sobre o gênero no país, mais de quatro décadas depois de seu surgimento.
Alonso trata dessa lacuna no livro, e aponta alguns fenômenos para que a música sertaneja não seja objeto de estudo. O primeiro deles é uma espécie de conservadorismo saudosista. Escreve-se sobre a música caipira a partir de uma idealização do homem do campo e de sua relação com a cultura.
Nesse sentido, entender a criação da figura do caipira — e sobretudo os preconceitos e idealizações — é fundamental para dar contorno à gênese desse gênero. No imaginário do Brasil educado, o símbolo do caipira é Jeca Tatu, personagem de Urupês, publicado em 1918 por Monteiro Lobato. Uma figura preguiçosa, que não queria melhorar de vida, à mercê do voto de cabresto, símbolo do atraso. Um estudo mais bem acabado sobre o caipira só surgiria em 1964, Os Parceiros do Rio Bonito, escrito pelo professor de literatura da USP Antonio Candido, sob uma chave marxista. Deixar esse homem do campo parado no tempo, a despeito das transformações sociais e do êxodo rural que ocorre com a industrialização, preenche o imaginário de toda uma linha de pensamento sobre a música caipira.
“Os escritores da linha saudosista aceitam como legítimos apenas artistas que se identificam com a tradição caipira e a respaldam, como Inesita Barroso, Sérgio Reis, Rolando Boldrin, Pena Branca & Xavantinho e Renato Teixeira. Esses artistas não teriam esquecido as suas origens rurais e seus legítimos representantes, músicos como João Pacífico, Angelino de Oliveira, Raul Torres, Cornélio Pires e Tonico & Tinoco”, escreve.
A oposição se dá com artistas que teriam deturpado os valores autênticos do caipira. Alonso lista justamente os modernizadores do gênero, que não apenas trocam as violas pelas guitarras, baixos, baterias e teclados, como ousam sacrificar a pureza caipira ao incorporar em seus sons o rock americano por via do iê-iê-iê da Jovem Guarda, as rancheras mexicanas e as guarânias paraguaias. São artistas dos anos 1970 como Leo Canhoto & Robertinho, Milionário & José Rico ou Trio Parada Dura.
É uma crítica semelhante à feita aos tropicalistas, lembrando que o tropicalista de primeira hora Tom Zé já cantava sua moda de viola 2001 com os Mutantes. Mas diferentemente dos tropicalistas, que após o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a ser aceitos no seleto clube da Música Popular Brasileira, os sertanejos não conseguiram fazer a travessia para o gosto da elite intelectual.
O sucesso desses primeiros artistas que ousaram romper com a tradição é concentrado em algumas gravadoras populares, como a Continental, a Chantecler, a Copacabana. E a partir de 1977, quando a rádio FM é introduzida no país, eles ficam relegados à banda AM. Mesmo duplas que têm sucessos enormes de vendas nos anos 1980, como Chitãozinho & Xororó, não conseguem romper a barreira do FM nessa década.
A grande mudança vem nos anos 1990, quando o sertanejo explode em todo o país e, ao lado do pagode e do axé, se torna não só a música mais vendida como garante também uma ampla difusão em rádio e TV. Ninguém conseguiria mais ignorar o estilo, independentemente de classe social. Não por acaso, é o som que embala as festas do presidente Fernando Collor de Mello na famosa Casa da Dinda.
Para parte da esquerda, a leitura é de que essa música, que agora se aproxima mais do som country pop de Nashville, de artistas como Garth Brooks, além de cafona e pobre liricamente, é também a trilha sonora de um neoliberalismo collorido. Nada de muito novo para uma turma que já vinha apanhando há anos por conta de seu som impuro e entreguista, mero produto da indústria cultural.
Não que isso importasse. Essa geração colecionou discos de platina e lotou por anos as casas de show mais cobiçadas das capitais, como o Canecão, no Rio de Janeiro, ou o Olympia em São Paulo. E, enquanto as grandes gravadoras davam as cartas do mercado e dominavam rádio e televisão, continuaram a vender como água e a fazer shows grandiosos, não só nos rodeios do interior e nas festas de peão — a mais famosa delas acontece em Barretos, no interior de São Paulo—, como nos grandes centros urbanos.
Cowboys digitais
Criando raízes nas capitais, a cultura sertaneja passa a se instalar de uma maneira que não pode ser mais desprezada. Mesmo quando a indústria do disco começa a morrer com a chegada do MP3 no começo dos anos 2000, ela se adapta com facilidade. Mas agora com uma nova geração, ainda mais pop, batizada de sertanejo universitário. Essa leva começa com duplas como João Bosco & Vinícius, César Menotti & Fabiano e depois desemboca nos sucessos de Luan Santana e Michel Teló. É dessa época, por exemplo, a abertura do Villa Country em São Paulo, até hoje o maior templo da música sertaneja da cidade.
Conversando com Gustavo Alonso, ele vê uma virada na distribuição da música nesse momento. As rádios seguiam importantes, mas, com as gravadoras em declínio, a nova geração abraça a pirataria. “Eles gravavam disco pirata e davam os CDs. E claro, já tinha a internet, o MP3. Curioso que alguns deles fizeram sucesso antes em alguns lugares que não esperavam. Por exemplo, Vitor & Leo foram morar em São Paulo achando que iam bombar na cidade, onde gravava a geração anterior, e começam a ver a música deles tocar em Uberlândia, por conta da internet”, diz.
Começa aí uma mudança importante que impacta a geração de hoje. Como manter o interesse — e os negócios lucrativos — quando a música produzida tem de competir com canções de todas as épocas disponíveis nas plataformas de steaming? Como migrar do tempo da TV para os canais de YouTube?
Duas estratégias se mostraram vencedoras. A primeira foi a aposta no ao vivo, em grandes espetáculos, festivais, rodeios. Produtoras como a Talismã Music, a Workshow, a AudioMix ou a FS Produções Artísticas passam a dominar esse mercado, não apenas vendendo shows em grandes centros, mas trabalhando as cidades médias, muitas vezes vendendo shows para prefeituras. E, para fazer a música circular, se valeram de uma estratégia emprestada das igrejas evangélicas: não pagar jabá (dinheiro para tocar música na rádio), mas comprar estações de rádio para ajudar a difundir os artistas. Isso sem deixar de fazer um trabalho sério de divulgação junto aos principais streamings e em redes sociais.
Ao mesmo tempo, a música não para de se modernizar e se multiplicar. O que hoje chamamos de sertanejo engloba uma série de subgêneros, do sertanejo raiz ao universitário, do pop ao romântico, da sofrência ao feminejo, além de interseções com outros gêneros populares como o arrocha e o piseiro. É uma cultura muito mais fluida, que já não faz distinção entre arranjos com instrumentos acústicos, elétricos ou eletrônicos.
Política, sucesso e identidade
Se hoje culturalmente o som sertanejo é tão amplo, como explicar a sua guinada para a direita? Na nossa conversa, Alonso identifica alguns movimentos sociológicos. Primeiro é a transformação do campo em agronogócio. A cultura sertaneja hoje é uma cultura urbana. “Apesar do nome sertaneja, eu diria que hoje ela é mais a música das cidades médias brasileiras. Não é exatamente a música de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, embora esteja nessas cidades. Mas são as músicas de Maringá, de Araraquara, de Uberlândia, de Sinop. É o som de um Brasil interiorano, mas que também é urbano.”, diz
E existe o fator de crescer junto com a ideia do agro. “O agro nasce nos anos 1970, com a Embrapa fazendo os estudos de química dos solos que permitem com que comece a se plantar no cerrado, que antes vivia de agricultura de subsistência.” Enquanto o braço do Estado transforma o interior do Brasil em um celeiro mundial, o som sertanejo passa a ser a trilha sonora das cidades que concentram as populações que vivem nessas cidades em franca expansão populacional.
Correndo por fora, existe essa pecha de neoliberal que vem desde os anos Collor. Alonso pensa que, de certa maneira, o campo progressista entregou a música sertaneja para o agro, e desconsiderou seus matizes. “A música sertaneja poderia ser a grande trilha sonora da era Lula, se houvesse uma mínima simpatia por ela. Veja, Lula integrou uma multidão às universidades na mesma época em que surge o sertanejo universitário”, diz, frisando que em seus dois primeiros mandatos como presidente, Lula nunca rompeu com o agro, que Blairo Maggi foi ministro de Dilma Rousseff e que o agro sempre esteve próximo a todos os governos. E que, mesmo entre os sertanejos, havia apoio ao governo Lula. Zezé di Camargo & Luciano, por exemplo, chegaram a fazer jingle para a campanha do petista em 2002.
Nessa questão do preconceito da esquerda, há um paralelo muito próximo com o Brasil evangélico, na visão de Alonso. “Eu arrisco uma hipótese de por que foi tão difícil para os progressistas negociar com essa estética: acho que, no final das contas, é uma dificuldade em ler o Brasil, o Brasil real, o Brasil profundo.”
A guinada à direita viria, então, desse sentido de exclusão, de falta de diálogo e que se torna mais radical com o ambiente de polarização após o impeachment de Dilma. “Nessa hora, a maior parte escolhe um lado. Mas não dá para tratar isso como um fenômeno absoluto. A gente tem exemplos, principalmente dentro do sertanejo mais feminista, de negar esse lugar. Em cultura, nada está dentro de uma caixinha absoluta”, argumenta.
Uma outra hipótese levantada com frequência é de que a música sertaneja chega a esse lugar através de um processo de branqueamento, que vem junto com a modernidade. Marcos Queiroz, professor no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, desenvolve essa tese em um dos episódios mais interessantes da série Música Negra do Brasil, produzida pela Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles. Para ele, o gênero sertanejo é antropofágico, bebe de todo o tipo de influências da música de diversas partes do mundo, mas só os brancos conseguem digerir as referências e se manter no mercado. E que esse branqueamento acaba trazendo o apagamento das raízes negras, acarretando em uma falta de representatividade na cena atual.
Alonso tende a relativizar esse branqueamento, dizendo que a polarização o incomoda. “Há uma retórica atual, muito ligada às pautas identitárias, que só quer ver o indígena ou o negro quando ele atua como se espera que o indígena ou o negro atuem. Quando ele não atua desse jeito, não é nem reconhecido como negro nem como indígena” diz.
Ele lembra de uma série de exemplos de negros e indígenas na música, como João Paulo, da dupla com Daniel, de Rick, par de Renner ou, mais recentemente, de Gabriel Vittor, dos Agroboys, uma das duplas mais entusiastas do agronejo. “Chitãozinho & Xororó têm claros traços indígenas. Claro que isso foi sumindo ao longo da carreira porque o enriquecimento e as plásticas diminuem isso”, diz. “Não é que não haja esse embranquecimento, mas eu fico mais preocupado com o embranquecimento do olhar.”
Fato é que de Ouro Fino à descida pra BC, passando pelo Rancho Fundo, o sertanejo hoje fala com e sobre o Brasil. É só ouvir.
Os muskitos
Elon Musk acha que é uma divindade, mas não é onipresente. Então, para ser capaz de levar adiante seu projeto de desmantelar o aparato estatal dos Estados Unidos, precisa de operadores fiéis. De um exército. Montou o seu com rapazes jovens, com alto grau de capacidade tecnológica e, acima de tudo, com plena devoção a ele, seu deus acima de tudo.
Esses “minions”, como denominou a especialista em tecnologia Kara Swisher — possivelmente a jornalista com maior conhecimento de como funcionam a mente e o modus operandi de Musk —, têm características semelhantes àquelas dos assessores que o bilionário sempre buscou para cercá-lo: serem mais novos que ele e menos inteligentes, o que os coloca numa posição de admirá-lo profundamente e “sempre rir de suas piadas”. “Musk é altamente influenciável pelo mundo de videogames e se enxerga como o Jogador nº 1. Todos ao seu redor são NPCs (non-playable characters)", ela explica no podcast The Ezra Klein Show (Spotify).
Em nome de não misturar com os minions brasileiros, que têm outro perfil, vamos denominar os do bilionário de muskitos, espécie de paquitos do Musk. Jovens eles realmente são. Seis dos garotos foram identificados pela Wired: têm entre 19 e 24 anos, um se formou há pouco no ensino médio. A maioria passou por estágio em alguma empresa de tecnologia, não raro do próprio Musk. São engenheiros, formados ou em formação. Um outro fez parte de uma equipe premiada que decifrou partes de um pergaminho grego antigo. Eles têm zero experiência em cargos públicos. Mas foram arregimentados para papéis críticos no Departamento de Eficiência Governamental (Department of Government Efficiency), o Doge, comandado por Musk.
Ao criar esse departamento, Donald Trump assinou uma (entre as dezenas) ordem executiva que assim descreve sua missão: “modernizar a tecnologia e o software federais para maximizar a eficiência e produtividade governamental”. O que não estava escrito era o mote subliminar dos bilionários libertários e extremistas do Vale do Silício: destruir para recriar do nosso jeito. “Não há como construir algo sem destruir antes. Isso é parte da mentalidade de figuras como Musk e Peter Thiel", diz Swisher. Thiel é ex-sócio de Musk, padrinho de JD Vance, vice-presidente dos EUA, e um ativista vocal pelo fim da democracia. Esse novo regime político guiado por bilionários antidemocráticos da tecnologia ela batiza de tecno-autoritarismo.
Desde que Musk assumiu o Doge, há quem o chame de presidente de fato dos EUA — o que deve desagradar Trump em algum momento, mas não até aqui. Suas ações não deixam espaço para dúvida: a intenção é desmontar cada agência governamental, uma a uma, e substituir por um outro modelo de governo, quiçá mais à sua semelhança. Não dá para ignorar a maligna ironia de ver o homem mais rico do planeta começar esse processo pela agência americana que distribui recursos para países pobres e paupérrimos, a USAID.
Mas não para por aí. Sua ofensiva mais recente, que deixou políticos americanos de cabelo em pé, foi sobre os dados do Tesouro dos Estados Unidos, que incluem informações sensíveis de pagamentos a servidores federais. Musk já havia dito a outros membros do governo Trump que pretende assumir o controle dos computadores do Tesouro usados para realizar pagamentos, com a intenção de mapear fraudes e abusos, segundo fontes do New York Times. É o Tesouro quem paga em nome de todas as agências do governo. Só no ano passado foram US$ 5,4 trilhões, ou 88% de todos os pagamentos federais.
A blitzkrieg de Musk tem sido feita, frequentemente, por seus muskitos. Os seis identificados pela Wired são Akash Bobba, Edward Coristine, Luke Farritor, Gautier Cole Killian, Gavin Kliger e Ethan Shaotran. Além deles, alguns outros veteranos das empresas de Musk assumiram posições no Doge e já estão com acesso aos dados do Tesouro e da USAID, inclusive aqueles classificados como sigilosos.
Um ex-funcionário da Tesla, Thomas Shedd, passou a chefiar o que vamos chamar, para simplificar, de TI do governo americano. (Quem quiser o nome científico, trata-se da Technology Transformation Services, ou TTS, que fica sob a General Services Administration, ou GSA.) Shedd, então, começou a distribuir acessos restritos aos muskitos e incluí-los em reuniões com seus subordinados, com cobranças sobre seus desempenhos, sem qualquer conhecimento prévio do trabalho sendo realizado ali. Os acessos de quem é da GSA são quase ilimitados no governo.
Sob o nobre pretexto de aumentar a eficiência do governo e diminuir eventuais fraudes, Musk e seus paquitos estão violando leis americanas, segundo objeções internas levantadas no Departamento do Tesouro, no Departamento de Educação, na USAID e em várias outras agências, de acordo com o Washington Post. “A preocupação constitucional geral é de que uma espécie de Poder Executivo paralelo existe, opera e exerce o poder fora dos canais da Constituição e dos estatutos autorizados pelo Congresso”, avaliou Blake Emerson, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da UCLA, em conversa com o jornal. Acontece que a velocidade das ações de Musk e Trump e a velocidade das decisões judiciais para derrubá-las, se é que elas virão, é absolutamente díspare. Dá tempo de causar muito estrago antes que algum juiz ou juíza os impeça.
Mas há ainda um outro grande problema: os interesses comerciais do próprio Musk em promover tal devastação. O que um homem com seu histórico “disruptivo” pode lucrar com esse grau de acesso a informações tão delicadas? Um péssimo prenúncio dessa intersecção promíscua é o fato de que um dos muskitos, Edward Coristine, foi previamente demitido de um estágio por ter vazado dados sigilosos para um concorrente.
Isso tudo para não falarmos da ideologia que une essa turma. Musk é um obcecado em exterminar o vírus “woke”, sem se importar de jogar com a água da bacia as conquistas de direitos fundamentais de variados grupos. Então, suas medidas de “eficiência” incluem encerrar qualquer política de diversidade das agências federais. E seu tipo de discurso atrai seguidores do tipo de Marko Elez. Ele era um funcionário do Doge até que o Wall Street Journal revelou tuítes antigos em que Elez se autoproclama um racista e pede que se normalize “o ódio a indianos”, além de dizer que não se incomodaria se Gaza e Israel simplesmente deixassem de existir.
Bem ao modo Musk, o bilionário abriu uma enquete no X para sondar se deveria recontratar o garoto, que se demitiu depois da reportagem. Claro que a resposta à enquete foi majoritariamente que sim. Especialmente depois de JD Vance, o vice, sair em defesa de Elez e argumentar que não se deve nunca premiar jornalistas que tentam “destruir vidas".
A nova forma de governo que Trump e seus patrocinadores estão promovendo já ganhou vários apelidos: broligarchy, a oligarquia dos brothers, é um deles. Agora tecno-autoritarismo se apresenta como um possível. Tendo Elon Musk como elo (desculpe) entre as duas noções, a definição que Ezra Klein dá ao bilionário-em-chefe parece indicar uma terceira. Diz Klein que Musk “é o garoto de 15 anos mais inteligente do mundo". Rodeando-se de outros adolescentes radicalizados e tendo como presidente um idoso famoso pelas birras, inaugura-se uma “teenocracy”.
IA feita no Piauí
Até então conhecida como “a cidade da fome”, em um longínquo fevereiro, Guaribas começaria a vivenciar uma profunda mudança social. Há 22 anos, ela foi o cenário do lançamento do Programa Fome Zero. Desde então, muito mudou. Não há mais vítimas fatais pela fome. Outros desafios se apresentam: a falta de perspectiva no mercado de trabalho é um dos mais latentes — que agora pode ser solucionado com outra revolução. Esta, dentro das salas de aula e impulsionada pela Inteligência Artificial.
“É uma matéria que veio para abrir nossos olhos para o que está acontecendo mundo afora", resume Kananda, aluna do Centro Estadual de Tempo Integral (Ceti) Paulo Freire, situado na região de pouco mais de 40 mil habitantes. Guaribas é um dos municípios contemplados pela iniciativa do governo do estado de Piauí que, no ano passado, tornou a disciplina de inteligência artificial (IA) obrigatória para os alunos do 9º ano do ensino fundamental e das três séries do ensino médio. Com essa medida, o Piauí foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como o primeiro território das Américas a incorporar o ensino dessa tecnologia na educação básica.
Amanda Sousa, que até 2024 lecionava apenas biologia, lembra que a chegada da disciplina foi uma surpresa. “Nos sentimos meio que ‘cobaias’”, ela conta. Mas destaca que a capacitação dos professores foi essencial para o sucesso da iniciativa. Hoje, ela também é a responsável por ministrar aulas de IA no Ceti. A capacitação de cerca de 700 professores da rede estadual foi realizada por meio de aulas online, que ocorreram de fevereiro a dezembro, com o apoio de universidades como a Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e o Instituto Farroupilha. Os conteúdos eram oferecidos semanalmente e, ao longo do processo, foram realizados encontros pelo Google Meet para esclarecer dúvidas. Amanda destaca que a metodologia de ensino ofereceu flexibilidade, permitindo que os educadores adaptassem os conhecimentos às necessidades de cada escola. “Nos deixaram à vontade para moldar os ensinamentos de acordo com a nossa realidade. Afinal, tínhamos medo de não termos a estrutura necessária para ensinar tudo isso”, revela.
O Ceti Paulo Freire, que acomoda cerca de 270 alunos, tem apenas um laboratório de informática com conexão de internet considerada razoável. Mais máquinas estão previstas para este ano, mas o número ainda não é suficiente. Por isso, um revezamento entre as turmas foi adotado. Isso não impediu a continuidade das aulas de IA. A flexibilidade para organizar as temáticas possibilitou que Amanda lançasse o projeto “IA sem cabos”, no qual ela ensina sobre a tecnologia sem depender totalmente da conectividade. “O aluno pode pensar com a IA, utilizando as ferramentas, e pensar sobre a IA. Então, colocamos de pé aulas teóricas refletindo sobre sua importância, a revolução que ela tem provocado no mercado de trabalho e os ensinando a usar os aplicativos de uma forma que não substituísse a inteligência deles. Desplugados, às vezes trabalhávamos mapas mentais e conceitos-chave. Se o tema da aula fosse rede neural, fazíamos dinâmicas nas quais eles aprendiam o que eram camadas intermediárias, camadas de entrada… todo o necessário para compreender como a IA funciona. Volta e meia, quando tinham oportunidade, aplicavam os conceitos no laboratório”, explica.
Da teoria à prática, os aprendizados saíram do papel e tornaram-se o protótipo de um aplicativo, o HortaConnect. “Gosto de falar para meus alunos que não adianta só estudar outros estados ou países se não conhecemos sobre nossa própria realidade. Então, em meio a uma maratona, uma equipe de alunos teve esse olhar para a comunidade.” Eles tiveram a ideia de desenvolver um app voltado à agricultura familiar, já que vivem em uma região que enfrenta seca intensa e irregularidades nas chuvas, o que resulta em perdas significativas para os agricultores. O programa permite que os produtores troquem ou doem sementes perdidas devido à seca, criando uma rede de solidariedade.
Os alunos conseguiram criar a interface do app, desenhar cada tela, desenvolver o slogan e a arte. A ideia é colocá-lo em funcionamento a longo prazo, a partir de parcerias com turmas do curso técnico de desenvolvimento de sistemas, também oferecido pelo Ceti. O próximo passo será apresentar o projeto à Secretaria de Educação para tentar obter financiamento. Yara, uma das alunas responsáveis pelo protótipo, terminou o ensino médio no ano passado, mas o projeto segue reverberando. “Foi um dos momentos mais emocionantes da minha trajetória trabalhar em equipe para desenvolver uma solução que une a tecnologia e a sustentabilidade. O projeto não só nos desafiou a ampliar os conceitos de inteligência artificial, mas também aprendemos a importância da colaboração e criatividade”, relata.
Ferramenta para o cérebro
A aplicação de Inteligência Artificial unida a soft skills como criatividade é o ponto crucial para Pedro Burgos, professor do Insper e fundador da consultoria Co.Inteligência. E esse tipo de conhecimento não precisa vir, necessariamente, do estudo formal. “IA não é um conteúdo, é uma ferramenta para o cérebro. Não sei o quanto é útil explicar, apesar de intelectualmente interessante, o que é uma rede neural. Os adolescentes usam o celular o tempo todo, mas a gente não ensina como funciona o 4G ou o touch. Nós simplesmente usamos a tecnologia.” Ele evoca também o exemplo da China. “Por lá, eles não falam sobre IA no ensino básico, tampouco no ensino médio, e concentram 7 das 10 principais universidades do mundo em produção de artigos sobre IA. Também têm o deepseek, estão despontando em um monte de coisa. Por isso, tenho dúvidas se inserir esses conhecimentos precocemente é o melhor caminho”, pondera.
Assim como Sousa, ele concorda que há duas abordagens para estruturar um currículo de aula, algo mais focado em “pensar com a IA”, explorando ferramentas de forma criativa, ou “pensar sobre a IA”. Burgos considera a primeira abordagem mais interessante, embora a segunda levante desafios éticos, como desenvolver uma visão crítica dos alunos acerca da tecnologia.
Amanda sente esse desafio na pele. Conta que os demais professores se sentiram incomodados, já que seus alunos passaram a usar o ChatGPT para escrever redações e resolver problemas matemáticos. “Eu percebi que isso poderia prejudicar a forma de aprendizado deles. Tive que remodelar o meu curso para fazer esse trabalho de ética desde o primeiro dia de aula, para que usem a IA de forma consciente, sem afetar a capacidade de pensar”, reflete a professora.
Burgos, por sua vez, valida o sentimento dos colegas de Sousa. “Entendo perfeitamente o problema apresentado por eles e teria muito cuidado para ensinar sobre essas ferramentas aos meninos mais novos, menores de 15 anos. Antes de usarmos calculadora, fomos ensinados a fazer as contas na mão. É relevante passarmos um tempo sem a IA para aprendermos sozinhos”, argumenta. Embora, na visão dele, outras aplicações da tecnologia, as quais considera mais interessantes, sejam bem-vindas mais cedo. “A IA é um recurso incrível para criar outros cenários. A Khan Academy é um caso interessante. Conta com um aplicativo no qual se pode criar cenários históricos. Você faz um prompt gigante com os detalhes, diz para a IA: ‘olha, você agora é o Dom Pedro II. Vai conversar com alunos da sexta série. Responda como se fosse uma pessoa daquela época’. Ele vai ser excelente em fazer esse role play e ensinar conteúdos formais de um jeito diferente”.
Ainda, indica o livro Brave New Words, do próprio Salman Khan, que explora vários cenários usando a tecnologia na educação — embora acredite que, em breve, aplicações pontuais da tecnologia não serão suficientes. “Precisamos repensar profundamente qual é a função da educação. Isso já deveria ter acontecido há um certo tempo, quando surgiu a internet. Com o Google, ficou evidente que a ‘decoreba’ não faz nenhum sentido, dado que todo mundo às informações, literalmente, na palma da mão, com o celular. Não reformamos a educação e agora chegou esse outro negócio que você não precisa nem pensar no que quer pesquisar”, afirma.
Burgos joga luz para caminhos que estão sendo discutidos no meio acadêmico, como o que os americanos chamam de flipped class, ou classe invertida. O conceito defende uma educação na qual os jovens aprendam em casa, com tutores de IA, e vão para a escola debater e desenvolver habilidades criativas e sociais. “Ainda exploramos IA na educação de uma forma muito modesta. Em geral, colégios têm usado ferramentas para preparar aula, slides, melhorar a construção de currículo quando, na verdade, com a tecnologia que já temos disponível daria para estruturar um sistema em que cada um dos alunos resolveria uma lista de exercícios diferente, baseada nas dificuldades e no nível de aprendizado dele”, conclui.
Mas um passo de cada vez. E ter entrado em contato com a IA na escola já foi um dos grandes para Kananda: “eu não sabia que tinha afinidade com tecnologia, nunca pensei em cursar alguma coisa nesta área. Hoje eu já tenho outra visão. Mesmo que, no futuro, não trabalhe com isso, nas aulas de IA descobri que realmente preciso dessa tecnologia na minha vida.”
O interesse pela história e pela ciência falou mais alto aos nossos leitores, isso sem contar as imbatíveis receitas da Panelinha. Confira os mais clicados da semana.
1. Meio: Telescópio James Webb revela disco berçário de planetas com resolução inédita.
2. Panelinha: Um saboroso ragu mediterrâneo de legumes com polenta.
3. g1: Peru descobre nova pirâmide de 62 metros em Caral, berço da civilização mais antiga da América.
4. Meio: Professor cria jogo de tabuleiro sobre o processo de urbanização do Rio de Janeiro no começo do século 20.
5. CNN Brasil: O desabamento do teto da igreja São Francisco de Assis, no Pelourinho, que deixou um morto.