Trump, Lula e os riscos de uma crise bilateral
A relação entre EUA e Brasil corre o risco de derrapar para o pior momento em quase 50 anos
Quase uma semana após a posse de Donald Trump, as peças do novo governo em Washington terminam de se encaixar. Vista do Brasil, a imagem que se forma é inquietante. Estamos longe de ser uma prioridade aos novos donos do poder nos EUA, mas, seja nas esferas política, comercial ou do meio ambiente, os objetivos no horizonte do governo Trump 2 se chocam diretamente com interesses estratégicos brasileiros e, mais ainda, com a atual política externa Lula. Ao mesmo tempo, dinâmicas no nível doméstico podem incentivar figuras, em Washington e Brasília, a ver no antagonismo uma forma de obter dividendos políticos com setores de sua própria base. O espaço para o pragmatismo, com foco nos interesses em comum, parece reduzido.
O resultado é que, com Trump na Casa Branca e Lula no Planalto, a relação entre EUA e Brasil corre o risco de derrapar para o pior momento em quase 50 anos – quando o presidente Jimmy Carter, morto no mês passado, e a ditadura brasileira, sob Ernesto Geisel, chocaram-se de frente em função do programa nuclear e da questão dos direitos humanos no Brasil. Uma crise entre Lula e Trump não é um destino certo. Mas reconhecer sua iminência é o primeiro passo para tentar evitá-lo. Afinal, uma derrocada dos laços bilaterais teria efeitos deletérios, sobretudo ao Brasil, o lado mais frágil da relação. Ou, como disse Trump em seu primeiro dia no Salão Oval, o Brasil “precisa mais” dos EUA do que o inverso.
Antes mesmo da mudança em Washington, os primeiros sinais não foram nada auspiciosos. Como fizera Jair Bolsonaro diante da reeleição fracassada de Trump, em 2020, Lula rompeu a tradição diplomática brasileira ao manifestar, publicamente, sua preferência por Kamala Harris na corrida eleitoral. Depois, veio o “fuck you” de Janja a Elon Musk – uma das figuras mais influentes hoje junto ao novo mandatário. Do lado americano, a metralhadora de Trump nas redes sociais se voltou contra os Brics, com a ameaça de impor tarifas de 100% sobre todos os produtos dos países membros do grupo, caso tentem minar a hegemonia do dólar. (Lula defende a criação de uma moeda dos Brics – sob oposição das duas outras democracias fundadoras da sigla, Índia e África do Sul – e o Brasil sediará a cúpula do grupo em 2025.) Trump também citou, em entrevista coletiva antes da posse, as tarifas brasileiras como exemplo de tratamento “injusto” aos EUA e prometeu retaliar. Blefes talvez, mas que já começaram a dar o tom da relação.
O risco de incêndio
Indo mais além da política feita nas redes sociais, há elementos estruturantes que favorecem atritos. Um deles é a percepção, entre os novos formuladores da política externa americana, de que o governo Lula sabota os interesses dos EUA nas Américas e mundo afora, ao supostamente se alinhar a China, Rússia, Irã e ditaduras latino-americanas (Cuba, Venezuela e Nicarágua). É uma caricatura da diplomacia lulista, que pega traços reais e os simplifica, distorce e exagera. Mas é como Marco Rubio, o novo secretário de Estado, descreveu recentemente o atual governo brasileiro, enquanto era senador. No revés da moeda, o governo Bolsonaro era “o maior aliado de Trump na região”, segundo Mauricio Claver-Carone, o ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nomeado, agora, a enviado especial da Casa Branca para a América Latina. Desta vez, o xodó será o presidente argentino, Javier Milei, a nêmesis de Lula na América do Sul.
Ao que tudo indica, a polarização que contamina as políticas domésticas dos EUA e do Brasil pautará também a relação bilateral.
Ao que tudo indica, a polarização que contamina as políticas domésticas dos EUA e do Brasil pautará também a relação bilateral. É algo novo: ao chegar ao poder, há quatro anos, Joe Biden tentou evitar essa dinâmica, abrindo canais de diálogo com o então presidente Bolsonaro e oferecendo-lhe o benefício da dúvida. O resultado foi uma relação medíocre, mas não em crise. Agora, a lógica da polarização cria um campo de palha seca, no qual uma controvérsia cara às bases de apoio dos dois governos – por exemplo: regulação das redes sociais no Brasil – pode rapidamente virar um incêndio diplomático.
Uma das cartas nesse baralho é a possibilidade de o governo Trump mirar o Supremo Tribunal Federal (STF) e, em particular, o ministro Alexandre de Moraes, que já foi alvo de ataques do então senador Rubio e é odiado por Musk. Se Washington impuser qualquer tipo de sanção à Corte ou a seus membros, com palavras ou mais, o governo brasileiro será forçado a responder à altura – e estaremos em meio a uma crise inédita.
Embora menos explosivo, outro elemento complicador é a questão comercial. Trump se apronta para lançar os EUA na maior ofensiva protecionista em quase um século, com apoio inédito entre a maioria republicana, mas também entre setores democratas. Essa guinada pode ter impacto direto sobre o Brasil na forma de tarifas mais altas, como já indicado. Talvez ainda piores sejam as consequências indiretas, via economia global, de uma guerra comercial contra a China e outros países, incluindo um ambiente internacional de juros, inflação e dólar em alta, em um momento de fragilidade fiscal brasileira.
Em um horizonte de mais longo prazo, ao aprofundar a agenda anti-China, o governo Trump 2 acelerará o reordenamento das cadeias globais de produção para fora do território chinês – o chamado “friendshoring”. Mas há amigos e amigos. Países como México ou Vietnã, com uma economia aberta e ampla capacidade industrial de alta tecnologia, estão em uma posição bem mais vantajosa do que o Brasil para se beneficiar.
Há ainda o tema do meio ambiente. A saída dos EUA, novamente, do Acordo de Paris é a parte externa de um amplo programa de negacionismo do aquecimento global, o qual inclui a oposição radical ao financiamento climático ou a qualquer controle sobre produção e consumo de combustíveis fósseis. São dois pontos fundamentais na agenda da COP-30, em Belém, o grande momento da diplomacia brasileira em 2025. Caberá ao Brasil costurar consensos e entregar um documento com avanços tangíveis, mas as expectativas mudaram desde a eleição de Trump.
E, como ficou claro no fim de semana, a deportação em massa de indocumentados nos EUA envolverá brasileiros e criará atritos entre os governos. Há quase dois milhões de brasileiros em solo americano, segundo as contas do Itamaraty, embora não se saiba o número de pessoas em situação irregular. Diante da recusa da Colômbia em receber um avião militar com deportados, Trump imediatamente anunciou tarifas de 25% contra todos os produtos colombianos e sanções contra Bogotá (os detalhes dessas medidas ainda são incertos). O governo brasileiro se irritou com a imagem de concidadãos algemados saindo do avião em território nacional, e despachou a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, para recebê-los. Ao que parece, serão os primeiros de um grande número que chegará de volta ao País.
Uma estratégia calibrada
Há uma tentação em acreditar que a ausência do Brasil na lista de prioridades de Trump é, em si, fator protetivo suficiente à relação bilateral. De fato, o novo governo americano herda um mundo de crises múltiplas, da guerra na Ucrânia ao frágil cessar-fogo em Gaza, e de acirramento da disputa estratégica com a China. Mesmo na América Latina, o foco será imigração, narcotráfico e comércio, temas que envolvem, principalmente, o México e a América Central. Mas a relação EUA-Brasil é altamente assimétrica e ações pontuais de Washington – seja nas esferas política, comercial ou multilateral – podem ter efeitos desproporcionalmente grandes ao Brasil.
Em vez da aposta na irrelevância, melhor será adotar uma política friamente calculada para lidar com Trump e conter danos à relação. Seu ponto de partida: não dar espaço para improvisação, seja em falas de Lula ou de outros membros do governo, pois um deslize pode rapidamente sair do controle. Os canais institucionais, a começar pelo Itamaraty, e não as redes sociais, devem guiar a posição brasileira. Dentro da lógica diplomática, o governo Lula tem chance de demonstrar a Rubio e a outros membros do governo que sua caricatura é falsa. O Brasil, afinal, causou a ira de Nicolás Maduro ao se recusar a reconhecer o resultado fraudado das eleições venezuelanas, teve seu embaixador expulso da Nicarágua, e recentemente impôs tarifas sobre carros elétricos da China. Existem espaços de convergência e o pragmatismo é alcançável, a despeito da enorme distância ideológica.
Lula terá de construir uma relação pessoal com Trump, um líder mercurial, centralizador e altamente transacional. O servilismo caricato de Bolsonaro não levou a nenhum ganho objetivo ao Brasil.
Por fim, Lula terá de construir uma relação pessoal com Trump, um líder mercurial, centralizador e altamente transacional. O servilismo caricato de Bolsonaro não levou a nenhum ganho objetivo ao Brasil, apesar das promessas de tratados de livre-comércio ou acordos em áreas mil. Eterno empresário, Trump aparentemente despreza bajuladores e, como o ex-sindicalista do ABC, faz política na língua franca da negociação. De barreiras comerciais ao futuro da Venezuela, passando pela presença da China na América Latina, o Brasil tem grande peso a temas caros ao novo governo americano. A capacidade da diplomacia brasileira de converter essa relevância em poder de barganha, ao mesmo tempo evitando controvérsias supérfluas que movem as redes sociais, determinará seu sucesso junto a Trump.
Há quase 50 anos, Carter emparedou Geisel até a ditadura romper praticamente toda a cooperação militar com os EUA, mas o americano teve o cuidado de manter um piso para a discórdia e evitar uma ruptura ainda maior. Trump não tem a visão de estadista, nem a personalidade de seu antecessor.