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Crítica cultural ou vigilância moral?

O debate em torno de "Ainda Estou Aqui" revela a dificuldade dos críticos identitários em entender o valor intrínseco de uma obra de arte

Críticas identitárias ao filme Ainda Estou Aqui não apenas revelam a dificuldade de reconhecer o valor intrínseco de uma obra, mas também exemplificam o estágio avançado de um consenso ideológico progressista que tem transformado a crítica cultural em um exercício de vigilância moral com claras motivações políticas. Esse consenso frequentemente banaliza sofrimentos reais, impõe demandas de representatividade inalcançáveis e sufoca as singularidades artísticas e pessoais.

Que a política e a ideologia identitárias, sobretudo as promovidas pela esquerda progressista, estejam se espalhando pela sociedade brasileira é algo que dificilmente se pode negar. Mesmo que, aparentemente, estejam em declínio em seu epicentro, os Estados Unidos, no Brasil elas continuam a moldar comportamentos e atitudes com intensidade crescente. O que se formou foi um “consenso ideológico identitário” que, por um lado, é quase impenetrável a desafios externos e, por outro, transforma em dogmas as crenças compartilhadas por seus adeptos, naturalizando valores e atitudes automaticamente.

Os que aderem a esse consenso adotam o peculiar dialeto grupal, incorporam sem discussão seus símbolos e premissas e mobilizam estratégias padronizadas do repertório identitário — como vitimismo, vigilantismo, punitivismo e o uso simbólico das minorias como escudo ideológico. Esse arsenal é então aplicado a praticamente tudo, da formação escolar às decisões amorosas, da discussão pública às escolhas em arte e literatura. Em essência, tudo é “identitarizado”: interpretado, sentido e expresso através do prisma da ideologia identitária.

A análise estética e narrativa foi substituída, em grande medida, por julgamentos sociopolíticos rigorosos que subordinam as obras de arte a exigências ideológicas.

Na crítica cultural contemporânea, especialmente no Brasil, essa postura tem produzido efeitos profundos. A análise estética e narrativa foi substituída, em grande medida, por julgamentos sociopolíticos rigorosos que subordinam as obras de arte a exigências ideológicas.

Aqui ocorre uma dupla redução. Primeiro, subordinam-se as abordagens tradicionais de obras expressivas (estética, poética, hermenêutica, semiótica, narratológica) à abordagem sociológica: antes de ser uma obra estética, um romance, quadro ou filme é tratado como um objeto político e um documento social, onde se incrustam conflitos (principalmente entre oprimidos e opressores), fazem-se escolhas sobre as representações das identidades em luta na sociedade e definem-se perspectivas para reproduzir ou construir o mundo que a obra apresenta.

A segunda redução é ainda mais específica: não é qualquer sociologia ou historiografia que fornece o padrão legítimo para a crítica cultural, mas apenas a sociologia e historiografia identitárias, decoloniais e progressistas. Só essa abordagem é considerada politicamente legítima para uma crítica cultural epistemologicamente justificada e emancipatória. Qualquer outra é descartada como comprometida com a perpetuação da opressão.

Essa abordagem tribaliza a crítica cultural legítima: só nós temos competência epistêmica, moral e política para o juízo de valor sobre obras de negros, gays, trans, mulheres e pessoas periféricas ou que reflitam histórias ou apresentem “corpos” negros, gays, trans, femininos e favelados. Toda outra abordagem deve ser desprezada não apenas por ser epistemológica e hermeneuticamente incapaz, mas, bem mais que isso, por oferecer um ponto de vista desrespeitoso, violento e opressor por si mesmo, quer dizer, pelo próprio fato de existir.

Como vimos várias vezes ao longo dos últimos anos, críticas estéticas são refutadas brutalmente ou porque quem as faz não tem as autorizações dadas pelas identidades que fizeram a obra ou que são nela refletidas; nem as automáticas, dadas por pertencimento (só preto pode analisar obra de preto ou em que se representem pretos, por exemplo), nem as expedidas por algum cartório identitário para certos analistas que pagaram todos os pedágios e boletos da ideologia. As recusas são acompanhadas de acusações de crimes identitários: praticou-se uma violência identitária quando uma crítica literária branca e burguesa se atreve a fazer o seu trabalho diante de um romance, por exemplo, escrito por um preto e que tem personagens negros ou, melhor, “corpos historicamente subalternizados”. Ou quando uma antropóloga branca e rica tem o atrevimento de atravessar o Rubicão ideológico para, em uma coluna, criticar a persona e a performance de uma artista pop negra.

Nos últimos dias, mais uma vez, todos os que acompanharam o debate político nacional puderam experimentar o nível que chegou a crítica cultural que parte do consenso ideológico da esquerda identitária brasileira, justamente na discussão dos últimos dias sobre o filme Ainda Estou Aqui. Celebridades do universo progressista brasileiro, de Jones Manoel (em vídeos no YouTube) a Tom Farias (no Roda Viva), do influencer da esquerda radical Chavoso da USP à filósofa Márcia Tiburi, entre muitos outros, participaram dessa convergência. Está tudo online, é só buscar.

Os elementos críticos comuns nas diversas intervenções podem ser resumidos a três. Primeiro, o “recorte narrativo” tornou-se ponto de controvérsia. Ou, como se diz nesses ambientes, teve que ser “problematizado”. O tal “recorte” é o ponto de vista usado na história, claro. A obra é acusada pela esquerda radical de parcialidade por não incluir perspectivas mais amplas ou mais identificadas com o “povo” e, pelos identitários, por não oferecer o ponto de vista de outros oprimidos — no caso, os negros e os pobres.

O que reflete, obviamente, a tendência de tratar o cinema como um instrumento político antes de reconhecê-lo como arte. Inclusive como um instrumento que ou serve à pedagogia política dos subalternos ou está a serviço da dominação dos hegemônicos, sem uma terceira alternativa.

E, assim, estamos no segundo elemento: a negação da autonomia estética. Há pouca ou nenhuma atenção ao valor estético ou à qualidade da direção, atuação e roteiro. O Chavoso da USP, inclusive, começa sua crítica dizendo que não vê filmes nem gosta de cinema. Jones Manoel e Tiburi, que se dirigem a outro público, reservam umas poucas palavras para admitir que o filme é bom, mas... Em todos os casos, o filme é reduzido ao contexto de sua produção, à identidade social de seus personagens e ao ponto de vista do criador da história ou realizador da obra, desclassificados, ambos, por serem brancos e burgueses.

O terceiro elemento é a comparação de dores e experiências. A experiência do sofrimento é um componente fundamental da estratégia de vitimização e de busca de superioridade moral dos identitários. Por isso, o argumento é evocado nesse caso para realizar o contraste entre a dor de brancos burgueses e outras dores que se ignoram, como a dos pretos e moradores de favela, a dos negros na ditadura ou a dos indígenas do Mato Grosso. Muitos críticos, implícita ou explicitamente, sugerem que o sofrimento da classe média branca tem menos legitimidade ou importância para a memória histórica, mesmo que o filme narre uma história horrível.

É neste ponto, ao colocar sofrimentos para competir entre si com base nas identidades das vítimas, que o identitarismo produz um dos seus resultados mais perturbadores. Primeiro, cria a função do “sommelier de dores”, indivíduo especializado em comparar dores e escolher as que têm mais valor; que, vejam só, são sempre as que afetam os “corpos historicamente subalternizados”.

Uma característica recorrente da crítica identitária é a hierarquização dos sofrimentos, que banaliza a dor alheia quando esta não está associada a grupos historicamente marginalizados.

Uma característica recorrente da crítica identitária é a hierarquização dos sofrimentos, que banaliza a dor alheia quando esta não está associada a grupos historicamente marginalizados. No Roda Viva, Tom Farias praticamente descarta o sofrimento de Eunice Paiva, cuja família foi dilacerada pela ditadura, ao sugerir que a narrativa seria mais legítima caso envolvesse uma família negra ou periférica. A implicação de que “deram bom dia” antes de torturar, matar e desaparecer com Rubens Paiva é, como aponta Luis Felipe Miguel, uma “mixórdia que visa à lacração fácil”. A dor da família Paiva, por não se enquadrar no padrão identitário de opressão, é desqualificada ou, no mínimo, relativizada.

Em seguida, vem a segunda estratégia retórica, que é protagonizada pelo “sommelier de comoção pública”. O papel desse crítico é denunciar como uma sociedade estruturalmente envenenada contra os oprimidos sempre prefere comover-se com o sofrimento dos opressores ou dos privilegiados, ignorando o sofrimento maior e mais persistente dos “condenados da Terra”. É nesse contexto que os críticos denunciam como escandaloso o fato de uma sociedade se comover com o drama de uma mulher cujo marido foi arrancado de casa pela ditadura, torturado, morto e desaparecido, enquanto ignora o sangue indígena que corre nas florestas do Mato Grosso do Sul ou a brutalidade policial cotidiana sofrida pelo “povo negro” nas favelas brasileiras.

Hierarquizada a dor e estabelecido o quão escandaloso é o “pacto da branquitude” e o conluio da burguesia que só se comovem com a dor dos seus, resta a descompostura moral que o identitarismo tanto aprecia. O dedo em riste mal disfarça o sentimento de superioridade moral: vocês não têm o direito à comoção e à empatia que estão desfrutando por causa da tragédia que sofreram. Vocês estão usurpando, com seu narcisismo, uma compaixão social que, de direito, pertenceria a outros corpos e identidades. Envergonhem-se disso!

O resultado dessa abordagem é a exigência de uma postura penitente de quem ocupa posições de visibilidade ou privilégio. Marcelo Rubens Paiva, como destaca Luis Felipe Miguel, sentiu-se acuado no Roda Viva e precisou justificar a dor de sua família mencionando Marielle, indígenas e favelas. Essa necessidade de alinhar toda narrativa pessoal a uma causa maior revela a pressão moral exercida por um puritanismo que desautoriza qualquer forma de expressão que não seja explicitamente alinhada às lutas identitárias.

A crítica identitária frequentemente opera como um tribunal que julga toda celebração à luz da injustiça universal. Para Tiburi, a vitória de Fernanda Torres é ofuscada pelo contraste com “os corpos indígenas sangrando no Mato Grosso do Sul”. A implicação é que nenhuma alegria é legítima enquanto houver sofrimento. Esse puritanismo ético transforma qualquer êxito individual ou artístico em um ato de insensibilidade coletiva, criando um ambiente cultural de vigilância moral constante.

Nessa perspectiva, nada é pessoal, nem deve ser. Até mesmo a singularidade é deslegitimada. A recepção ao prêmio Globo de Ouro por Fernanda Torres é exemplar dessa desconexão entre o fato singular e as críticas identitárias. Marcia Tiburi transforma a humildade e a surpresa genuínas da atriz em mais um sintoma do “Complexo de Vira-Lata” brasileiro. Segundo Tiburi, a celebração do prêmio reflete uma “baixa autoestima colonial”, projetando sobre o gesto individual de Torres uma narrativa nacional de submissão cultural. Nesse movimento, o foco na experiência pessoal e artística da atriz dissolve-se em uma explicação ideológica que ignora a importância do reconhecimento do trabalho artístico em si.

No final, as críticas identitárias a Ainda Estou Aqui não apenas desconsideram o valor artístico da obra, mas também refletem a dificuldade de reconhecer que a memória histórica se enriquece pela diversidade de narrativas, não pela exclusão. A insistência em reduzir toda experiência pessoal ou artística a uma luta identitária ameaça empobrecer tanto a crítica cultural quanto o entendimento da arte.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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