Edição de sábado: A esquerda e o trabalho
José de Souza Martins está para virar santo. Vá lá, seu homônimo português, José de Sousa Martins, médico do último rei de Portugal que atendia os desvalidos gratuitamente, dando-lhes saúde e, frequentemente, dinheiro. Filho de carpinteiro, morreu aos 33 anos e, não à toa, “com cheiro de santidade”, conta o xará. O Sousa Martins lusitano é de Alhandra, um lugar à beira do Rio Tejo, não muito longe de Lisboa, que era um reduto comunista, repleto de fábricas. “Os comunistas encamparam o santo local, fizeram dele seu patrono.” E dizem que ele era kardecista. Esse tipo de contradição em termos, de um santo comunista não católico, e que nos acostumamos a testemunhar no sincretismo daqui, é a essência do que estuda o nosso José de Souza Martins, esse um sociólogo bem brasileiro.
Como um dos maiores especialistas do país em relações de trabalho — do operário ao rural e à escravidão — e em linchamentos — e, portanto, na natureza extremamente cruel de nosso povo —, Martins se debruça sobre as inconsistências da sociedade brasileira. Mas com muita generosidade, a típica dos cientistas, capazes de distanciamento para diagnosticar, e embebidos de empatia para tratar. Martins, o nosso, é um sociólogo cuja experiência se desenrola desde o ABC paulista e seu trabalho infantil numa fábrica até a Universidade de Cambridge, com incontáveis títulos acadêmicos e livros escritos. Ele estava lá no trabalho da Comissão Pastoral da Terra na gênese do Partido dos Trabalhadores, tentando compreender quem eram e o que queriam esses trabalhadores, afinal. É com a autoridade de quem entende tão profundamente a divisão de classes, a ponto de classificá-la como insuficiente para qualificar a sociedade atual, que Martins repreende duramente o PT, enquanto reconhece sua relevância. É com a autoridade de quem enxerga e compreende as técnicas sociais de manipulação que ele crava que o olavismo e o consequente bolsonarismo não deveriam ter lugar num país minimamente democrático.
Martins é também fotógrafo. Tem o olhar treinado para, mesmo pessimista, ver poesia na inospitalidade. Conversar com ele é trafegar entre causos e teorias de forma mista e instrutiva. Ele comenta que visitou a estátua do xará Sousa Martins, em Lisboa, diante da Faculdade de Medicina. Ao redor, mulheres vendiam flores para os devotos do quiçá futuro santo. Lá do alto, o médico, de beca, observa tudo. E há placas com os dizeres: “ao professor José de Sousa Martins, pela graça alcançada”. “Eu faço milagre em Portugal. No Brasil, não consigo fazer.” Ele diz que o milagre que faria aqui é inconfessável. Mas dá algumas pistas na entrevista concedida ao Meio, que de tão especial abre o ano de 2025 para nossos assinantes premium. Confira os principais trechos.
Como o senhor enxerga o movimento da renovação do trabalho e da dificuldade das esquerdas de se conectar com essa massa de trabalhadores?
Essa é uma questão muito complicada no Brasil. Aqui, o Partido Comunista não nasce como um partido operário, mas como um partido ideologicamente inspirado na classe operária. Claro que houve muito operário no Partido Comunista, mas não tantos quanto existiam e ainda existem no Brasil. Esse é o problema de toda a esquerda no país. Ela é de classe média. Sou do ABC paulista, cresci e trabalhei em fábrica. O ABC do PT, por exemplo, é o ABC da elite da classe operária. Eram os operários altamente qualificados, com grande capacidade de reivindicação política. Tenho um irmão que era um operário altamente qualificado, ganhava o que queria. No fim da adolescência, já tinha comprado um terreno no centro de São Bernardo e equipado nossa casa com televisão e rádio grande. Os primeiros carros foram comprados pelos operários da indústria automobilística. A esquerda brasileira é anômala, porque ela não tem o substrato social que define o que a esquerda deve ser. Claro que tem muita gente de classe média, muito burguês que pode ser de esquerda. Pode até ser comunista. O pessoal sempre fala do Caio Prado Júnior — a Dona Veridiana Prado foi a mulher mais rica do Brasil. Houve muito militar comunista também. É uma esquerda muito peculiar.
E hoje?
Com a chamada reestruturação produtiva, a classe operária começou a encolher e surgiram as outras profissões dos setores médios, que não são propriamente trabalho criador de valor, mas muito mais trabalho da distribuição do valor criado. Isso muda tudo do ponto de vista teórico. A esquerda começou a ficar confusa.
Pode explicar melhor esse conceito da distribuição do valor criado?
Olha, a classe operária é a classe da linha de produção, é a que cria riqueza. É o trabalho que cria valor. A grande massa de valor, chamada a massa da mais-valia, não fica apenas na mão da burguesia. Desde o século 19, ela é distribuída pelos outros setores: o do comércio, o de finanças. E você pode dizer distribuída também indiretamente para a classe operária. A mais-valia não é atenuada apenas pelo tanto que se paga do salário do operário. Ela é atenuada também pelo tanto de mais-valia que é distribuída através dos hospitais, de instituições culturais das empresas. Pense num Moreira Salles, em alguns setores dos Matarazzo. Isso é a distribuição da mais-valia. Não é apenas o salário que dignifica o trabalho. A distribuição de cultura é um bem necessário. É o que Henri Lefebvre e Ágnes Heller chamavam de necessidade radical. Então, essa coisa de pensar a luta de classes como uma luta pelo salário, simplesmente, é também. Mas hoje em dia não é mais nem principalmente.
Que outras lutas estão se travando?
No mundo inteiro, a grande discussão que estamos tendo, e aqui de forma muito mal conduzida, é sobre a jornada de trabalho. A salvação para o capitalismo, se é que existe alguma salvação, tem de passar por uma redefinição da jornada de trabalho. O Brasil adotou a jornada de 8 horas em 1908. Desde então, pouquíssimas vezes se alterou a jornada de trabalho. Comecei a trabalhar com 11 anos em fábrica. Era ilegal. Eu ganhava um sexto do salário do menor que trabalhava ali. Eu era empregado de uma fábrica de um homem que trabalhava em outra fábrica como operário. Eu era o proletariado dele. Trabalhava seis dias por semana. Era um serviço insalubre, perigoso, tenho problemas físicos até hoje, e eu trabalhava para que o filho dele pudesse fazer o ginásio. Fui para outro emprego em que a jornada de trabalho era de seis dias por semana, mas no sábado era só meio dia. Isso foi na década de 1950. Levou 42 anos para ter uma redução na jornada de trabalho. Depois eu fui trabalhar numa fábrica maior, que me mandou estudar e pagava 15 salários por ano. A mais-valia vinha por formas indiretas. Há técnicas sociais para transformar o trabalhador num cúmplice daquilo que ele faz. Depois, quando entrei na universidade, tinha outro emprego numa grande empresa e só trabalhava cinco dias por semana. Vivi o único período em que houve mudanças na jornada de trabalho.
E quais foram as consequências?
Nenhum empresário ficou pobre por causa disso. O capitalismo não fica rico se matar o operário. Ele precisa do operário não só como trabalhador, mas como consumidor. O tempo ganho com a redução da jornada é empregado em atividades culturais. Um argumento que se usou para convencer a direita evangélica é que o trabalhador poderia ir à igreja, ao culto. Isso é uma bobagem. Você tem que usar como argumento aquilo que emancipa a classe operária das suas carências descabidas. É isso que tem que ser feito. Isso deve melhorar o nível das próprias empresas. Se você tem um operário analfabeto, ele não sabe ler uma ordem de serviço. O operário é um sócio cultural da empresa.
Faz sentido falar em operário em 2025? Ou estamos tratando do trabalhador em geral?
Quem criou a ideia do “trabalhador em geral” no Brasil foi o PT. Os petistas inventaram uma categoria mais abrangente para ter mais gente no partido. Com isso, também enfiaram os trabalhadores rurais na categoria. Trabalhei muito com a população do campo, assessorei a Pastoral da Terra várias vezes. Uma das coisas que fiz, junto com Carlos Rodrigues Brandão, foi uma pesquisa com trabalhadores rurais do Sul de Goiás. Uma das coisas que a Pastoral da Terra, que estava envolvida na fundação do PT, queria saber era qual compreensão eles tinham da categoria “trabalhador”. Era uma pesquisa participante: os próprios trabalhadores fizeram entre eles a pesquisa e depois produziram um relatório. Para desencanto dos militantes do PT que estava nascendo, havia para o trabalhador rural mais de 100 categorias diferentes de trabalhadores.
Por exemplo?
O aluno que vai à escola e que, portanto, deixa de trabalhar para o pai na hora da aula é um trabalhador. Porque ele está fazendo alguma coisa no lugar do trabalho a que ele está obrigado como membro da família. A escola é parte de uma transformação na vida dele como trabalhador. E por aí ia um monte de categorias que obviamente o PT não tinha a mínima condição de reconhecer como trabalhador.
Por quê?
Porque não é o trabalhador da doutrina petista. Ele é produtor direto dos meios de vida, uma coisa que o operário não é. O operário é o trabalhador cuja realidade social produziu, para Marx, a base de interpretação do que é a condição operária, do que é a luta de classes e do que é o capitalismo. Mais ainda, do que é a superação do capitalismo. Veja, o capitalismo não é para você ser contra. Na ideia do confronto de classes, o capitalismo é para ser superado. Ele é um poço de contradições e as contradições só podem ser resolvidas se superadas. O operário oferece a base social de interpretação teórica dessa possibilidade.
Outros trabalhadores não oferecem?
Não, porque a classe média não produz nada, vive da distribuição da mais-valia. Uma parte da mais-valia paga os salários da classe média. Se nós pararmos de trabalhar não acontece nada. Tem estudante que quer imitar o operário e para de estudar. A elite fica feliz, porque vai deixar de gastar dinheiro com a universidade. Eles querem mesmo diminuir esse negócio. Nunca o estudante vai causar um grande dano se fizer greve e deixar de estudar. Então, é muito complicado discutir, analisar e interpretar essas realidades sociais que não estão no miolo explicativo do que é o capitalismo e do que é a sua superação.
O que o senhor está dizendo é que o Partido dos Trabalhadores, desde sua gênese, não entendia a totalidade dos trabalhadores.
O PT via o trabalhador fenomênico, o trabalhador como expressão da condição de alguém que trabalha, recebe um salário. Nesse sentido, todos nós somos parecidos. Mas o PT não via a substância da condição de trabalhador que explica a existência do capitalismo e suas contradições, inclusive as de sua superação. Por que o PT é um partido que só atua com eficácia, com garra e com êxito contra o outro? Eles fizeram bobagens do tamanho de um bonde, como definir Fernando Henrique Cardoso como direita. Enquanto eles brincavam de atacar FHC como direita, que ele nunca foi, Bolsonaro e o bolsonarismo se criaram na sombras desse equívoco. Quando acordaram, a direita toda estava organizada em bases diabólicas.
Que bases são essas?
Pega o Olavo de Carvalho. É basicamente isso, não é? Não é ser a favor de nada. É ser contra aquilo que se opõe a eles. O [historiador] João Cézar de Castro Rocha [entrevistado no Conversas com o Meio], que é brilhante, tem o melhor entendimento do que aconteceu, do que está acontecendo e do que pode acontecer ainda. Ele mostra como o Olavo de Carvalho cria uma realidade de oposições em que só existe um núcleo de referência, que são eles mesmos. Só eles são de Deus, são da pátria, são da família. Eles são o bem. O resto é demonizado. Logo, não há alternativa sem eles. O que o Castro Rocha não levou em conta foi o sociólogo que está por trás disso.
Quem foi?
Harold Garfinkel, um sociólogo americano que recebeu uma encomenda do Pentágono para criar uma nova disciplina na área de Ciências Sociais, a etnometodologia. Ela trabalha com o senso comum. Não trabalha com consciência de classe. É uma ciência que faz experimentos com seres humanos. Garfinkel fez experimentos em hospitais, com autorização da direção, em que pessoas com variados problemas chegavam lá e conversavam com ele, mas não o viam, estavam em recintos separados. A pessoa dizia qual era o problema, fazia perguntas de sim ou não, e a resposta que ele dava era sorteada de um saquinho, aleatória, sem a pessoa saber disso. Lembro de um caso: um rapaz judeu namorava uma menina não judia. “Devo continuar namorando com ela?”. Garfinkel sorteia a resposta e vem que sim. A conversa segue. “A gente deve ter filhos?”. Novo sorteio, e a segunda resposta, aleatória, contradiz a lógica da primeira. Vai-se criando uma tal confusão na cabeça das pessoas que elas não têm mais referências. É o que está acontecendo no Brasil. Aquele bando de idiotas no dia 8 de janeiro, na porta dos quartéis, eles estavam todos manipulados. Achavam que estavam fazendo uma coisa, mas estavam fazendo outra, que estava na cabeça de outras pessoas. A ideia é essa. Criar um país em que as pessoas não são donas da sua própria consciência, das suas opções, um país não democrático em todos os sentidos.
O bolsonarismo revelou a sociedade brasileira que sempre existiu ou revelou uma nova configuração da sociedade brasileira?
Nós nunca fomos um povo politizado. No Império, havia escravidão. A República manteve essas restrições estamentais. Uma sociedade baseada na exclusão social, na exclusão da condição de cidadania. As pessoas pensam assim até hoje. Só que agora é uma alienação manipulada. Não existe nada de novo. Existe o velho com novas técnicas sociais de manipulação. Essa mulher que foi botar uma coroa de flores na porta da casa do Lula esses dias foi presa porque usou uma expressão racista contra o policial. Ela e mais alguns milhões de brasileiros são esses desconectados por esse experimento de manipulação de consciência. Isso não faz deles inocentes. Eles são culpados. Devem ser processados, ter as penas aplicadas, porque isso vai inclusive revelar o fato de que o sistema político brasileiro é profundamente defeituoso tanto na esquerda quanto na direita. Claro que a esquerda tem uma consciência crítica, mas não a de que foi criado um fantasma de uma direita que não era direita, na sombra de um equívoco de polarização ideológica de que o PT foi ativo. O PT é incapaz de fazer coalizões políticas.
E a frente ampla? E a eleição municipal em São Paulo?
A coalizão aqui em São Paulo foi muito mais por iniciativa do PSOL do que por iniciativa do PT. O PSOL tem mais clareza sobre as coisas. O Partido Socialista, o PSB, tem características interessantes também. A realidade social é diversificada, não é um monobloco. O Brasil tem de assumir que a frente política não tem de ser de esquerda necessariamente. Ela será de esquerda se for democrática. Isso é a esquerda na atual situação. Não é mais a esquerda lá de O Capital. É isso que tem que conviver na frente democrática de esquerda. Houve esse problema com a Igreja Católica também.
De que maneira?
Na questão da opção preferencial pelos pobres. A Teologia da Libertação que se desenvolveu no Brasil não tem uma referência social substantiva para se firmar. Eles aplicaram a teoria da luta de classes numa diferenciação social que não é de classe. O pensamento que informa a Teologia da Libertação no Brasil, que é diferente daquele do padre [Gustavo] Gutiérrez, o peruano que é o pai da teoria, é do [Louis] Althusser. Ele era da Ação Católica, não vem de uma tradição marxista. Ele não leu Karl Marx, só passou os olhos. Eles produzem um pensamento de esquerda para conciliar com o totalismo explicativo do catolicismo. Você não podia chegar para os católicos e dizer que eles estão divididos em classes sociais. Isso acaba com a militância, com a própria Igreja Católica. As pastorais sociais estão encolhendo por conta desse equívoco na base.
Qual é a alternativa das esquerdas?
Tentar fazer aquilo que Lefevbre chama de coalizão dos resíduos. Juntar tudo que escapou da captura pela dominação do capital e da direita e criar uma frente democrática pluralista.
Mas não é o que o Lula fez?
Eu não acho. Penso mais no que o PSOL fez aqui em São Paulo e, ainda assim, com problemas. Penso numa outra categoria de militante que é residual da era PT. Veja, o PT tem sua importância e vai continuar tendo. Sem ele nós estamos fritos, porque qualquer esquerda sairá enfraquecida. No entanto, é preciso ampliar o leque do reconhecimento da diversificação social daqueles que são residuais em relação a esse tipo de dominação que deu no triunfo indiscutível de uma direita burra, inescrupulosa, perigosa, antidemocrática e anti-humana.
Ainda faz sentido falar de classe social?
Só como referência teórica.
Na prática, então, como se analisa a sociedade hoje? A partir de qual recorte?
De nenhum, porque ela está profundamente diferençada. A condição de classe não influencia mais a práxis política. A costura da práxis é possível, em nome dos valores históricos da tese sobre as classes sociais. Na essência, a sociedade capitalista continua sendo uma sociedade de classes. Só que tem um processo de diferenciação social das classes que vem da transformação do proletariado em classe média, das aspirações de classe média. O pobre não quer fazer a opção preferencial pelos pobres. Ele quer deixar de ser pobre. Tem um livro maravilhoso do nosso fotógrafo Sebastião Salgado, Êxodos, e alguém disse que esse é um grande livro sobre multidões tentando escapar do capitalismo. Se você olhar bem as imagens, você descobre que são multidões tentando escapar para o capitalismo, entrar nele finalmente. Isso é revolucionário, porque o capitalismo não tem lugar para todo mundo. Esse é o grande drama. Ele exclui. Aliás, eu sou contra essa coisa de falar em exclusão social, porque o que você tem é uma inclusão social perversa. Nós temos trabalho escravo. E não só no Brasil. Eu fui da comissão de trabalho escravo da ONU. Como é que o capitalismo chega ao século 21, com tudo que ele pode fazer, criando e recriando escravidão? O capitalismo precisa do escravo por causa do lucro extraordinário que a pobreza e o subdesenvolvimento criam. Isso não se explica estritamente pela concepção de classe social.
Por quê?
A concepção de classe pressupõe que o trabalhador que recebe o salário, o operário, recebe um salário que ele considera justo. Ou, se ele considerar injusto, não é porque seja efetivamente injusto. Mas porque é menos do que ele precisa para sobreviver. O patrão comprou a força de trabalho dele. Só que o patrão também não sabe, isso é uma coisa de Marx, que ele não comprou somente a força do trabalho. Comprou, pelo preço da sobrevivência do trabalhador, mais do que esse trabalhador precisa para sobreviver. Tem essa diferença. Esse mais é invisível. Esse mais está na falsa consciência. O proletariado não é um portador de uma consciência verdadeira. Isso é do [György] Lukács, História e Consciência de Classe. Para ser operário e viabilizar o capitalismo, ele tem de ser portador de uma falsa consciência. Quando ele descobre que a coisa pode ser diferente, descobre antropologicamente errado, porque não tem como sobreviver sem a falsa consciência. Isso complica muito. Se você diz isso para o militante de esquerda… bem, eu já desisti, não digo mais para ninguém. Se você diz isso, pulam no seu pescoço e dizem que você é de direita. Fizeram comigo várias vezes.
Aproveitando essa deixa para abrir um grande parênteses, o senhor é talvez o maior estudioso de linchamentos do mundo. Tendo sofrido esse tipo de cancelamento, real e virtual, consegue fazer uma analogia entre cancelamentos e linchamentos?
O verdadeiro linchamento tem sangue. Isso é decisivo. O fato de ter sangue e morte, e uma morte muito cruel, é muito mais que cancelamento. Não dá para juntar, porque isso encobre a gravidade e a violência própria do linchamento. Nós somos um povo muito cruel. Criei um índice de crueldade para fazer o meu estudo. É uma fórmula. Começa um linchamento, por qualquer motivo. Como é que ele acontece? Um linchamento dura, em média, uns 20 minutos — pode durar muito mais ou um pouco menos. Alguém é identificado como uma vítima possível de alguma coisa, que é o linchamento, mas que as pessoas que vão linchar ainda não sabem que é o linchamento. Alguém pega uma pedra, um pau, chega perto. Todo linchador é covarde. Por isso, todo linchamento à noite é muito mais violento. Porque à noite a possibilidade de alguém reconhecer o linchador é muito pequena. As pessoas primeiro começam a correr atrás de quem vai ser linchado, recuam, correm, é um jogo de gato e rato. De repente, tem gente com faca, revólver. Daqui a pouco, estão furando os olhos e pondo fogo nela. O típico linchamento termina com a vítima queimada viva.
E lincham-se mais negros?
Não é verdade. Tem negro linchando muita gente. O motivo do linchamento não é racismo. Muitas vezes, o motivo é besta. Frequentemente, não é. O estupro de uma criança, de uma mulher indefesa, todo tipo de violência que atinge os mais frágeis. Há um senso de justiça ali, o que, evidentemente, não o torna recomendável. Agora, à medida que o linchamento vai progredindo, se a vítima for negra, o índice de crueldade aumenta. O fato de a vítima do linchamento ser negra traz para fora do subconsciente de quem está linchando um ódio racial. A culpa é do negro. É sutil e é algo que não se resolve combatendo o racismo. Porque esse substrato invisível da consciência vai continuar invisível. O racista não se reconhece como racista, o linchador não admite que linchou. É um vai e vem de consciência, lucidez e discernimento muito grande.
Mas, socialmente, o ato de cancelar alguém não passa por caminhos similares? De anular a pessoa?
Passa pela mesma cultura de fatores que induzem à prática da eliminação do outro. É a intolerância, é considerar o outro insuportável porque ele é diferente de mim.
Considerar o outro perigoso?
A diferença é perigosa numa sociedade reacionária como a nossa. O brasileiro não suporta a diferença. Vê perigo na diferença. Nós não fomos educados e não somos educados, nem nas escolas nem em lugar nenhum, a aceitar as diferenças. Não é só a diferença de cor. É a diferença de mentalidade, de gosto. Tem gente que gosta de samba, tem gente que gosta de Bach. Mas aí você começa a achar que quem gosta de Bach é fresco. Numa sociedade como a brasileira, a diversidade de identidades se tornou intolerável. Quem difama o outro por causa da sua diferença não percebe que está dando ao outro direito de também tratá-lo pela sua diversidade como uma anomalia social. A sociedade é relacional. Tudo tem reciprocidade. A política também é relacional. Ela significa você ser tolerante com a pluralidade. Isso faz a diferença do Olavo de Carvalho, que é um idiota, que não reconhece a questão da pluralidade. Olavo de Carvalho não poderia existir numa sociedade democrática. Agora, querem mexer na educação. Essa história de colocar as escolas na mão da Polícia Militar ou do Exército, isso é a conspiração final contra a educação plural. É uma educação autoritária, unívoca, unilateral, linear e completamente antidemocrática.
O olavismo, então, também promove a falsa consciência?
Não, não. O olavismo pegou uma via alternativa para promover a negação da verdadeira consciência. É muito mais radical. É a negação absoluta da possibilidade da consciência. A negação absoluta. As pessoas precisam de alguém que defina a consciência por elas. Isso é incompatível com a ideia de práxis, que é o que explica tanto a verdadeira quanto a falsa consciência. A falsa consciência é uma modalidade de consciência para ser superada e o trabalhador pode fazer isso observando as contradições que existem no trabalho dele. Eu vou te contar uma historinha para ilustrar.
Sim, por favor.
Fui convidado para um retiro, não espiritual, mas de estudos de trabalhadores cortadores de cana do interior de São Paulo. O cortador de cana é um assalariado. Então, em princípio, ele está muito perto da condição de operário do campo. Fui convidado pelo sindicato, porque os donos dos canaviais estavam mudando a técnica de remuneração do trabalho. Em vez de pagar o que vinham pagando, que já era pouco, pagavam por tonelada de cana colhida. É o período em que os pais tiram os filhos da escola e levam com eles para o canavial para completar o salário. Só que no fim do mês, diziam eles, tinha sobrado mês no fim do salário — o que já é uma clareza sociológica sobre a diferença de classe. Ficamos três dias lá reunidos. Expliquei que o que eles estavam me contando se chama exploração do trabalho. Você ganha menos do que a riqueza que o trabalho cria. Fui de um por um perguntando: “Você se considera explorado? Por quê?”. Quase todos diziam que sim, porque no fim do mês iam comprar tudo que precisam para suas famílias comerem e o dinheiro não dá. Então, quem explora é o dono da venda. Isso é a falsa consciência.
Todos tinham essa falsa consciência?
Tinha um casalzinho jovem. E a moça, diferentemente das outras mulheres, não tinha ainda aquelas rugas do trabalho. Eu vi muito isso acontecer na fábrica, aquela pele envelhecida no rosto, mas de um jeito diferente, não pela idade, pelo trabalho. Bem, ela disse que se considerava explorada. Eu pedi que ela explicasse. “Porque quando eu faço amor com meu marido o meu corpo dói. Quando eu estou cortando cana no canavial o meu corpo não dói. Eu sou explorada, porque meu corpo não é mais meu. O meu corpo é do canavial.” Nem Salomão, em toda a sua sabedoria profética, jamais pensou nisto. Nem Karl Marx.
Talvez porque nenhum deles fosse mulher.
Claro.
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