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Idos de novembro

As muitas notícias do mês reforçam a sensação de que a política brasileira vive um momento de lenta transição

Vistas retrospectivamente, as muitas notícias do mês de novembro de 2024 reforçam a sensação de que a política brasileira vive um momento de lenta transição. A história não avança, mas também não retrocede, aprisionando o país em uma dinâmica paradoxalmente arrastada, de incertezas e disputas fragmentadas.

Os resultados das eleições municipais demonstram que o fracasso do bolsonarismo como projeto de poder não significou sua extinção enquanto força política. Sua base social, composta por cerca de um terço da população, persiste, alimentada por ressentimentos históricos, exclusão social e narrativas conspiratórias. Essa base não é homogênea. Ela reúne tanto elites econômicas interessadas em preservar privilégios quanto setores populares desiludidos com o pacto democrático e atraídos pelo discurso antissistema. O que os unifica é a rejeição ao establishment e a crença em uma política de confronto permanente, onde a destruição das instituições não é apenas um objetivo, mas um método de ação.

Já as descobertas da Polícia Federal, que finalmente indiciaram a camarilha de Bolsonaro por golpe de Estado e outros crimes, confirmaram a lógica de desprezo absoluto dela e de seus apoiadores pela ordem jurídica liberal democrática. Para eles, o direito nunca foi um campo autônomo ou regulador, mas um instrumento a ser moldado e manipulado conforme as necessidades do momento. A retórica de que o governo atuava “dentro das quatro linhas da Constituição” não era apenas uma falácia; era uma estratégia deliberada para deslegitimar os tribunais e afirmar que a única interpretação válida da Constituição era a do Executivo. Essa postura encontra ecos na tradição autoritária de Carl Schmitt, onde o líder político — e não as instituições — é apresentado como o verdadeiro guardião da ordem jurídica.

Essa relação instrumental com o direito também moldou o perfil dos operadores jurídicos do bolsonarismo. Em vez de advogados de prestígio, o governo recorreu a figuras menores, muitas vezes inexperientes, mas completamente subordinadas aos interesses políticos do núcleo familiar e militar do governo. Essa escolha reflete o desprezo pelo Estado de Direito, tratado não como um espaço de mediação, mas como um obstáculo a ser superado ou destruído. Basta dizer que o cérebro jurídico da camarilha golpista de Bolsonaro, o jovem olavista Filipe Martins, sequer formado em direito é.

A atuação das Forças Armadas na tentativa de golpe revela que, infelizmente, trinta anos de antibióticos fornecidos pelo regime democrático não conseguiram extirpar a bactéria do golpismo nelas presente desde a queda do Império.

A atuação das Forças Armadas na tentativa de golpe revela que, infelizmente, trinta anos de antibióticos fornecidos pelo regime democrático não conseguiram extirpar a bactéria do golpismo nelas presente desde a queda do Império. Embora a maioria dos comandantes tenha optado por não se envolver diretamente na conspiração, sua postura foi marcada mais pelo cálculo pragmático do que por um compromisso com a democracia. A cultura conservadora e corporativista que permeia a instituição continua a ser uma barreira significativa à consolidação de um regime plenamente democrático. A ideia de “neutralidade” militar no episódio golpista não é apenas um mito, mas um exemplo da facilidade com que setores armados flertam com a política quando suas prerrogativas corporativas são ameaçadas.

No entanto, condenar as Forças Armadas como um todo seria um erro estratégico. Corporações burocráticas dessa natureza não constituem um monólito ideológico, o que explica por que o Alto Comando do Exército se dividiu entre legalistas, golpistas e uma maioria acomodada com o status quo. Não se deve realisticamente esperar nas Forças Armadas, naturalmente conservadoras, maior comprometimento com a república do que personagens como Arthur Lira, Ciro Nogueira ou Kassab. Ademais, em um mundo cada vez mais marcado por tensões nacionalistas e “desglobalizantes”, o papel dos militares tende a crescer, não a diminuir. Demonizar a instituição em bloco apenas reforça narrativas extremistas que polarizam ainda mais o debate e dificultam a construção de consensos mínimos para a defesa da República.

Já o Supremo Tribunal Federal, depois do judiciarismo exacerbado da década passada e do ataque fortíssimo do militarismo durante o governo Bolsonaro, tenta encontrar um meio termo. A firmeza com que enfrentou o golpismo e negará o impedimento de Moraes para julgar Bolsonaro contrasta com sua disposição em fazer concessões ao conservadorismo, na tentativa de preservar a estabilidade institucional. O julgamento que validou argumentos baseados na “tradição cultural cristã” para justificar a presença de símbolos religiosos em espaços públicos exemplifica essa dinâmica. Trata-se de uma sinalização política que reflete o ar do tempo e as pressões de um contexto marcado pelo fortalecimento do conservadorismo cultural e religioso no Congresso. Ao mesmo tempo segue no “judiciarismo coalizão”, ajudando o governo a recuperar parte do controle orçamentário perdido e a restabelecer assim o sistema presidencial consagrado na Constituição.

No Comgresso, o que se percebe é a percepção crescente de que no médio prazo nem Bolsonaro nem Lula estarão à frente da direita ou da esquerda. Os últimos representantes ou líderes contemporâneos da fundação da república de 1988 sairão do proscênio. A perspectiva vai criando aos poucos um vácuo de liderança e disputa de poder entre postulantes a sucessores. À direita, o Centrão tenta consolidar-se como uma direita pragmática e negociadora, enquanto o extremismo insiste em sua lógica de confronto total, rejeitando qualquer possibilidade de acomodação. À esquerda, o pragmatismo lulista busca manter a governabilidade, mas enfrenta resistências internas de setores que demandam avanços em pautas estruturais como a reforma agrária, a taxação de grandes fortunas e políticas ambientais robustas.

Nesse cenário, o governo Lula acumula realizações significativas, como a recuperação econômica e o fortalecimento da presença internacional do Brasil. No entanto, esses avanços têm sido insuficientes para mobilizar a sociedade ou reverter a má vontade de setores conservadores e liberais. O governo enfrenta também a dificuldade de articular uma narrativa política que conecte suas ações às demandas populares. A percepção de que Lula governa de forma defensiva, mais preocupado em evitar retrocessos do que em avançar, limita seu potencial de impacto e o deixa vulnerável ao desgaste político.

A principal tarefa da democracia brasileira para os próximos anos seria a de reconstruir um pacto social que incluísse as parcelas da população atualmente alienadas do sistema político.

A principal tarefa da democracia brasileira para os próximos anos seria a de reconstruir um pacto social que incluísse as parcelas da população atualmente alienadas do sistema político. Isso requer não apenas a punição dos responsáveis pelos ataques à democracia, mas também um esforço simbólico e político para reafirmar a ideia de pertencimento comum. A convivência em meio às diferenças ideológicas só será possível se houver um compromisso mínimo com as instituições republicanas e com os valores da cidadania.

Entretanto, o cenário não parece auspicioso para atingir esse objetivo. A perspectiva de fim da dominação de Bolsonaro e seu clã não mudam o estado geral ideológico que os catapultou à presidência. A falta de eco das descobertas dos planos de golpe de Estado, inclusive de assassinato de Lula, Alckmin e Moraes, bem como do escândalo do orçamento secreto, revela o estado de espírito da direita política. Tanto quanto o crédito conferido ao escarcéu do mercado e a tendência constante a minimizar as ações positivas do governo. O clima conservador favorece privilégios das igrejas, corporativismo militar, matança policial, jogatina da bolsa e a corrupção político-parlamentar que, em nome da “autoridade”, deseja um governo semiautoritário e opaco para roubar e se reproduzir em paz.

Para as eleições de 2026, as coisas não parecem muito melhores. À esquerda, Lula realiza um governo relativamente eficaz, mas defensivo. Seus avanços econômicos e diplomáticos, como o sucesso do G20, são ofuscados por um cenário político adverso e pela falta de um projeto mobilizador. A escolha de Fernando Haddad como herdeiro político reflete essa transição pragmática, mas carece de entusiasmo e novidade. O governo, embora bem-sucedido em evitar crises, parece um intervalo em um processo de degradação mais amplo.

Enquanto isso, o candidato à presidência mais incensado pela direita, Tarcísio de Freitas, ilustra o perfil de um oportunista que se adapta às circunstâncias, mas que, no fundo, compartilha os valores que sustentaram o governo golpista. São os famosos democratas de ocasião que também formavam a “zona de conforto” da maioria do Alto Comando do Exército Seu governo em São Paulo parece ser o laboratório de um projeto conservador para o país, marcado por autoritarismo mais discreto e pragmatismo corporativo.

Enfim: o velho mundo parece ter morrido, mas o novo ainda não nasceu. E, pior, ainda não há motivos para a democracia depositar muita esperança na novidade que cedo ou tarde haverá de chegar.

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