Vista chinesa
Especialista em China, o cientista político Maurício Santoro fala das relações com o Brasil e o que muda com a vitória de Trump e a ascensão da direita na Europa
Hoje Luiz Inácio Lula da Silva recebe no Planalto o presidente da China Xi Jiping, que veio ao Brasil para participar da Cúpula de Líderes do G20, encontro anual que reúne os líderes das 19 principais economias do mundo, além da União Europeia e, recentemente, a União Africana. Durante o encontro, o líder chinês anunciou uma maior cooperação com o Sul Global, sobretudo nas áreas de inovação tecnológica e científica. Para falar sobre as relações entre Brasil e China, e também dos desafios políticos que se impões com a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos e com a ascensão da direita na Europa, conversamos com especialista em China, Maurício Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Durante o G20, o presidente da China Xi Jinping anunciou um pacote de cooperação mais forte com o Sul Global. Quais serão os impactos?
Vamos colocar algumas coisas em perspectiva. Os investimentos da China no exterior, sejam em países do Sul Global, sejam em países desenvolvidos, estão caindo desde a pandemia. Há uma série de razões para isso. A economia chinesa está crescendo menos do que no passado, há uma crise imobiliária muito grave e o governo chinês tem lançado uma série de pacotes de estímulo que não têm sido bem-sucedidos em reativar a economia, gerando uma frustração muito grande. Agora, o que existe é o prosseguimento de uma série de grandes projetos, iniciados anos atrás e que, em alguns casos, estão dando frutos agora. Pensando no âmbito da América Latina, o mais importante deles foi a inauguração, alguns dias atrás, do mega-porto que os chineses construíram em Chancay, no Peru. E há uma percepção dos chineses de que o futuro governo Trump vá ser um momento de muita instabilidade nas relações dos Estados Unidos com América Latina e que isso vai criar oportunidades para os chineses. Mas ao olhar em termos de como esse cenário de fato está se colocando para o China, ele está mais difícil hoje do que ele era há 10 anos. A situação econômica ficou mais complicada e o ambiente internacional está muito mais turbulento, está muito mais tenso para a China, pela deterioração das relações de chineses com os Estados Unidos, com a União Europeia e porque essa aliança da China com a Rússia está se tornando uma amizade muito custosa.
E não há nenhuma perspectiva de que essa amizade arrefeça, pelo contrário. Tanto do ponto de vista geopolítico quanto econômico, levando em conta os BRICS, russos e chineses estão sempre reafirmando esses laços. Putin é um peso que a China tem de carregar?
A decisão do governo chinês foi de dobrar a aposta no seu apoio à Rússia, ainda que isso provoque algumas reações negativas na elite chinesa, quer dizer, não é 100% consensual. Mas a decisão é apoiar a Rússia, muito embora o prolongamento da guerra na Ucrânia esteja causando muitos problemas para os chineses. A relação da China com a União Europeia ficou muito ruim, e ela não era tão má assim no passado.
Há essa percepção crescente dos europeus de que é preciso tomar cuidado com a China, que se tornou poderosa demais, influente demais.
E nas relações comerciais? Porque também existe na Europa, com a ascensão de diversos governos nacionalistas, uma inclinação antilgobal. Como você vê essa tensão no campo econômico?
Olha, ela aparece também na relação com os europeus, mas acontece muito mais por razões políticas. Por exemplo, uma empresa chinesa de alta tecnologia, como Huawei, está enfrentando uma série de sanções e restrições na Europa. Ela não pode vender equipamento de padrão 5G em vários países europeus. Talvez a crítica mais dura esteja sendo formulada na Alemanha. O modelo econômico alemão neste século foi de usar energia barata da Rússia para fabricar produtos que seriam exportados para a China. Esse modelo está em crise nesses dois pilares. A proximidade econômica e política com a Rússia mostrou um erro histórico para os alemães e teve impacto negativo em muitas carreiras políticas, sobretudo no partido social-democrata. E há essa percepção crescente, tanto dos alemães quanto dos europeus em geral, de que é preciso tomar cuidado com a China, que se tornou poderosa demais, influente demais, e que a questão do regime político-autoritário tem consequências negativas para a Europa. As vozes mais críticas à China na Europa, em geral, estão nos países bálticos. Porque são os países que estão na linha de frente do confronto com a Rússia. E eles entendem a Rússia e a China nessa aliança como um só bloco.
Qual é o peso da China na Europa?
A China não tem o mesmo peso econômico na Europa, que tem para um país como o Brasil. A China hoje é de longe o maior parceiro comercial, o destino de um terço das exportações brasileiras, e não é assim na Europa. Os países europeus têm como principais parceiros comerciais outros países europeus. Então, eles também podem se dar ao luxo de terem posições politicamente mais duras com relação a China. Que é uma coisa que não é possível no Brasil. Mesmo no governo Bolsonaro, que tinha uma relação muito dura com a China, que discutiu a possibilidade de proibir a Huawei de fornecer esse equipamento de alta tecnologia no Brasil, o próprio governo teve que recuar, em grande medida porque a pandemia ressaltou essa dependência tecnológica da China, em termos de medicamentos, de equipamentos de proteção, de vacinas, de insumos médicos. Na Europa, há um pouco mais de margem de manobra. Mas é interessante também olhar esse novo mundo. Agora com o presidente Lula,
o governo tem uma simpatia política muito grande pela China, tem uma afinidade na agenda diplomática, mas mesmo assim o governo Lula optou por não entrar na nova rota da seda. Isso também é muito significativo.
Por que o governo Lula tomou essa posição?
Tive longas conversas com diplomatas brasileiros e com integrantes do governo desde a transição. Já era muito claro, lá em 2022, de que havia um pé atrás do Itamaraty com a nova rota da seda. Na visão dos diplomatas profissionais brasileiros, o Brasil não teria muito a ganhar entrando nesse projeto, porque já recebe muitos investimentos chineses. Se a gente olhar a série histórica, a maior parte dos investimentos chineses acontecem em países ricos, nos Estados Unidos, nos países europeus, mas o Brasil é o país em desenvolvimento que mais recebeu investimentos da China. O Brasil discute os seus problemas com a China sobretudo na relação bilateral, na comissão de alto nível. Se entrasse na nova rota da seda, qualquer discussão envolveria mais de 100 países. A influência brasileira seria muito diluídas. E, nos últimos meses, aumentou muito o temor brasileiro de que, entrando na nova rota da seda, o país sofreria retaliações comerciais dos Estados Unidos. Essas ameaças estavam presentes tanto no governo Biden, quanto nos discursos de campanha do Donald Trump. Então, com republicanos ou democratas, essas retaliações provavelmente viriam contra o Brasil. Botando tudo na balança, faz todo sentido para o Brasil adotar uma posição mais cautelosa. Não é um veto total, eventualmente o Brasil poderia um dia entrar, mas no cenário atual é bem complicado.
Quais são as divergências entre o Brasil e a China hoje?
São principalmente contenciosos e comerciais. Existem algumas atitudes por parte dos chineses que desagradam o Brasil e que às vezes levam a medidas de defesa comercial. Nesses últimos meses, já no governo Lula, houve duas medidas nesse sentido. Uma delas foi com os carros elétricos e a outra foi com produtos siderúrgicos. O Brasil começou a importar muito carros elétricos da China. Isso incomodou muito as grandes multinacionais automobilísticas instaladas aqui. Elas pressionaram o governo brasileiro, que começou então a elevar as tarifas de importação para os carros chineses. Tem uma escalada tarifária que vai estar completa em 2026, e as tarifas vão para 35%. É bastante coisa e isso praticamente inviabiliza a competitividade de um carro importado. Mas qual é a lógica do governo brasileiro? É dizer para as montadoras chinesas o seguinte: “vocês querem vender seus carros aqui no Brasil? Maravilha, mas vocês vão ter que fabricá-los aqui dentro, gerando emprego, desdobramentos positivos para a economia brasileira”. É exatamente o que as grandes montadoras estão fazendo. A BID comprou a fábrica da Ford na Bahia, a Great Wall Motors vai produzir no interior de São Paulo. Então, já tem um movimento em trânsito nesse curso. O que no caso dos automóveis faz um certo sentido, porque o custo do frete de um automóvel é muito alto. E fabricando esses carros aqui no Brasil, as montadoras chineses podem inclusive usar o Brasil como uma plataforma de exportação para outros países da América do Sul.
E pode usar o aço brasileiro?
Pode usar o aço brasileiro e provavelmente vai usar inclusive o lítio extraído na Bolívia, na Argentina e no Chile. Esses países, claro, querem que esse lítio seja utilizado por lá mesmo, na produção de baterias de veículos elétricos, mas provavelmente quem vai ganhar com isso será o Brasil. A questão do aço é maior. O governo chinês tem um problema histórico no seu modelo de desenvolvimento nas últimas décadas: o consumo é muito baixo em termos do PIB. Se a gente olhar um país desenvolvido, algo em torno de dois terços do PIB é o consumo das famílias. Mesmo no caso brasileiro é acima de 60%. Na China, não chega a 40%. A economia chinesa é muito dependente dos investimentos, como os em infraestrutura, por exemplo, e das exportações. Isso tem gerado uma série de problemas. O excesso de investimentos em construção de casas, edifícios, é a raiz dessa crise imobiliária que eles estão vivendo. O governo incitou as empresas a construírem residências, imóveis comerciais, o que fosse, muito além do que era realmente a demanda daquela população. Tem fenômenos interessantíssimos na China. Você entra num shopping center numa grande cidade, em horário comercial, durante a semana, e não tem ninguém no shopping. Meia dúzia de consumidores. Por isso há uma dependência muito grande das exportações. O que acontece no setor siderúrgico é que eles estão com uma superprodução, tentando escoar para outros países. Então, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, os governos responderam a isso aumentando as tarifas de importação dos produtos siderúrgicos mesmo, para tentar proteger as indústrias locais.
Há um desequilíbrio no regime tarifário?
A política tarifária dos chineses é muitas vezes ruim para o Brasil. Se você pegar, por exemplo, o complexo soja, as tarifas são baixas para a soja em farelo, já para o óleo de soja, com um pouco mais de valor agregado, a tarifa é alta. O Brasil e a China se entendem bem, viraram dois parceiros importantes, mas existem vários momentos de divergência, particularmente nessas questões mais pontuais ligadas ao comércio. Então, é muito melhor para o Brasil discutir esse tipo de problema no âmbito da comissão de alto nível bilateral do que ter esse tipo de conversa com cem outros países em que fatalmente o Brasil teria muito menos influência, muito menos importância. É um pouco do problema também que o Brasil está vivendo agora com os BRICS ampliados. Na perspectiva brasileira, os BRICS cresceram demais.
O multilateralismo está vivendo uma crise. A última década foi de declínio das instituições globais e do fortalecimento de agendas nacionalistas, protecionistas, ruim também para o Brasil.
Há uma complicação geopolítica que vem com essa ampliação dos BRICS?
Aí é muito mais uma questão de que tipo de país está alinhado politicamente. Quando o Lula e o embaixador Celso Amorim a propuseram, a ideia era juntar as grandes economias do Sul Global e criar um grupo pra pressionar pela reforma das instituições econômicas internacionais. Isso fazia e faz todo sentido pro Brasil. Só que concorrendo o tempo, sobretudo com essa ampliação que houve agora no início do ano, os BRICS ganharam um caráter mais agressivo na sua relação com a Europa e com os Estados Unidos. A Rússia invadiu a Ucrânia, então fatalmente levou nesse problema também pra dentro do bloco. O que fazer com a Rússia, como tratar a Rússia? O multilateralismo está vivendo uma crise. A última década inteira foi de declínio das instituições globais e do fortalecimento de agendas nacionalistas, protecionistas, ruim também para o Brasil. E aí como lidar com o BRICS que agora tem o Irã, com toda a carga que traz na sua política externa, nas relações com o Oriente Médio? O que o Brasil tem tentado fazer agora é tentar ressaltar esse caráter original dos BRICS. Provavelmente é isso que o Brasil fará agora, que está assumindo a presidência do grupo. Mas para usar a imortal frase do Garrincha: “vocês já combinaram isso com os russos?” Vai ser muito complicado. O Mauro Vieira vai virar pro Putin e dizer: “olha, eu acho que você não deveria invadir a Ucrânia, porque a gente está muito mais preocupado com a questão das exportações de soja?”. Como é que o Putin vai responder a isso? Os BRICS são filhos do Lula e do Amorim. Como quaisquer pais, eles acham que as suas crianças são as mais bonitas do mundo. Vai ser muito difícil fazer qualquer tipo de ajuste agora. Se houver uma mudança de governo em 2026, se voltar o governo de direita no Brasil, como é que ficaria essa questão?
E como isso muda com o Trump? Porque a eleição de Trump traz um fator ambíguo até, com uma proximidade com a Rússia e uma animosidade com a China. E no caso brasileiro há tem um antagonismo natural que ficou claro quando Lula declarou voto a Kamala Harris. Como é que você vê essas peças se mexendo a partir do momento em que o Trump for presidente?
Os próximos anos na relação Brasil-Estados Unidos vão ser muito complicados, não só porque a diferença de visão de mundo do Trump pro Lula é total, mas porque existe agora no Brasil uma situação política em que o Trump tem um vínculo muito forte com a oposição Bolsonaro. Caro que uma vitória do Trump vai ser uma injeção de vitaminas nos bolsonaristas brasileiros, mesmo que o Trump não conceda nenhum tipo de benefício econômico ou político a eles. Trump enfraquece temas fundamentais para a agenda diplomática brasileira, como a questão da mudança climática, toda a agenda ambiental, toda essa agenda de reforma das organizações internacionais. Tenho conversado muito com os chineses nesses últimos dias, por conta do G20, e, de modo geral, eles estão acreditando que a vitória do Trump vai criar muitas oportunidades para a América Latina. E eu acho que eles têm razão. Simplificando, os americanos estão vendo a América Latina como um problema e os chineses como uma oportunidade de negócio. E eu acho que o grande pedido é esse mesmo. Então qual é o papel da América Latina hoje na política externa americana? Os chineses sabem muito bem o que querem da América Latina. A China já publicou dois livros brancos no século 21, sobre a diplomacia deles para a América Latina, ao passo que os americanos têm uma visão muito mais confusa, muito mais dividida também por questões políticas partidárias dos democratas e dos republicanos. Ao olhar a conjuntura dos próximos dois anos do governo Lula, uma relação mais conflituosa com os Estados Unidos vai levar o Lula a tentar reforçar as relações, de um lado, com a União Europeia e, de outro, com os países dos BRICS. Uma coisa que está sendo muito interessante, acho que os europeus também têm essa leitura, e me impressionou que agora na cúpula do G20, foi o fato de o [Emmauel] Macron, presidente da França, mudar de posição e ser favorável ao acordo do Mercosul e União Europeia. Europeus e brasileiros estão entendendo que vai vir um momento muito duro para o comércio global, de protecionismo, de aumento de tarifas. Ontem, tive uma reunião muito interessante também com políticos diplomáticos canadenses, e eles também querem um acordo de livre comércio. A minha dúvida é muito mais até que ponto o governo Lula está interessado nesse tipo de acordo com países ricos. Historicamente, tanto Lula quanto o Partido dos Trabalhadores foram muito mais simpáticos à ideia do livre comércio que com outros países em desenvolvimento, particularmente na América Latina.
A gente está num mundo de uma transformação econômica gigantesca por conta das mudanças tecnológicas. O Brasil tem uma tradição de um protecionismo exagerado em relação à tecnologia. A China, por outro lado, tem expandido sua influência no mercado de tecnologia de ponta. Pensa que os chineses possam ter alguma influência em mudar esse modelo brasileiro de isolacionismo tecnológico? Ou o Brasil vai seguir fechado?
Se a China conseguir mudar o protecionismo brasileiro, eu saio na rua com uma camisa estampada com a cara do Xi Jinping. [risos] Mas eu sou um tanto pessimista nesse aspecto. E eu estava vendo agora os dados que o Ministério da Fazenda divulgou nesta semana, dos incentivos fiscais brasileiros. E a gente vê como esses incentivos não têm nada a ver com o desenvolvimento econômico, que é simplesmente a captura do Estado com grupos de interesse, grandes empresas, até influenciadores digitais, ávidos por construir uma amizade sincera com o governo brasileiro. A China oferece algumas possibilidades interessantes de parceria pro Brasil, em campos, por exemplo, como a inteligência artificial. Ontem, no almoço com os chineses, tinha um representante dessas novas redes sociais da China, o Kwai, falando muito da importância da pesquisa em inteligência artificial. Porque isso é fundamental para o modelo de negócio deles. Tem possibilidade muito boa de empresas como Kuai, TikTok, Huawei trabalharem em parceria com pesquisadores brasileiros para desenvolver tecnologia. Talvez agora nos Estados Unidos vai ficar mais difícil, pelo visto oficial é uma área de fronteira da economia. Com essa questão envolvendo veículos elétricos, energia solar, energia eólica. Mas o Brasil tem um modelo muito protecionista, apesar da abertura das últimas décadas. Isso estimula uma série de relações promíscuas entre as grandes empresas e o Estado, que tem um custo fiscal enorme para a sociedade brasileira. Como é que você vai garantir hoje, num cenário de competição global, uma indústria têxtil, uma indústria de calçado? É muito difícil, porque a competitividade dos chineses, dos indianos nessas áreas são gigantescas. O desafio para as empresas brasileiras é como é que elas se reinventam nesse novo mundo. Algumas têm soluções realmente inovadoras e interessantes. Pegue como exemplo as sandálias Havaianas. Somos da época era um negócio absolutamente vagabundo, de baixíssimo valor. Agora a gente vive num momento em que, quando eu recebo amigos estrangeiros aqui no Rio de Janeiro, uma das primeiras coisas que eles me pedem para eu levá-los a uma loja das Havaianas, né? Isso porque se inventou uma ideia de design, uma nova imagem.
Como é que você vê essa tendência do antiglobalismo, você acha que ela é uma coisa que vai ditar os próximos anos, a gente vai ver uma ruína das principais instituições globais, como a Organização das Nações Unidas?
Tem uma expressão que eu gosto muito, que vem sendo utilizada por muitas pessoas nos últimos anos, que é a ideia de desglobalização. A gente teve um cenário nos anos 1990, nos anos 2000, que foi basicamente da criação de uma economia global mais aberta, mais integrada. Mais livre comércio, mais acordos de investimento, uma abertura econômica significativa no Brasil. E, da crise financeira global de 2008 para cá, o que a gente vem tendo são movimentos crescentes de maior protecionismo, de reforço do nacionalismo. Então a gente teve, por exemplo, o Brexit, a pandemia, a guerra na Ucrânia, cada um desses grandes eventos representam um recuo nessa agenda de uma globalização mais aberta, mais efetiva. Essa é a tendência atual. A China foi muito importante nessa abertura global dos anos 1990 e dos anos 2000. Mas foi mais cautelosa do que outros países. Por exemplo, a empresa estrangeira pode investir na China, mas ela tem que cumprir uma série de regras, como ter uma parceira local se quiser fabricar algum tipo de produto no país. Porque o governo está interessado em promover essa transferência de tecnologia para as empresas chinesas. No campo cultural, por razões políticas, a China ainda é muito fechada. Desde que o Xi Jinping se tornou presidente, há mais de 10 anos, o que a gente tem é uma concentração muito grande de poderes na mão do presidente, com a mudança de leis, da constituição. A China de hoje virou muito mais autoritária do que ela foi nos anos 2000 e com controles muito maiores do Estado sobre a economia. Isso vem tendo também um impacto negativo para a economia chinesa, que está crescendo menos. Não é um momento simples. Não diria, nesses últimos anos, que a China está em ascensão. Chegou num platô muito elevado, e se mantém nesse platô, mas é um cenário mais complicado, mais turbulento. E com a volta do Trump à presidência, a gente tem uma agenda muito anti-globalização no país que basicamente desenhou as instituições internacionais como elas existem hoje. Então, mesmo dentro dos Estados Unidos, tem segmentos da população muito hostis a esse mundo de uma economia mais aberta. Principalmente aquela classe média baixa nos Estados Unidos, que sofre com o impacto da desindustrialização, da competição com os chineses, uma classe média mais hostil à imigração, muito mais voltada para uma cultura americana tradicional. Esse mal-estar está presente também na Europa, em vários países. Eu diria que menos aqui no Brasil, porque a nossa economia não é tão aberta. E é até interessante, eu estou vendo muitos amigos americanos que têm experiência do Brasil, da América Latina, questionando seus compatriotas. Você quer aumento de tarifas? Sabe quanto custa o iPhone no Brasil?
Um último ponto. Hoje há muito medo da espionagem industrial chinesa e principalmente a espionagem tecnológica. Acha esse temor justificado?
Totalmente, totalmente. É até engraçado porque às vezes alguns amigos me perguntam qual é o equivalente da CIA, da KGB na China. Eu respondo que a espionagem deles é tão eficaz que você nem sabe qual é. Brincadeira à parte, eles têm muitas agências de inteligência. O equivalente a CIA, da KGB, seria o Ministério da Segurança do Estado, que é o que faz essa espionagem para fora, espionagem internacional. E tem o Ministério da Segurança Pública que faz a espionagem para dentro. Em geral, o que as análises apontam é que a espionagem chinesa, desde o início da reforma, da abertura econômica, ficou mais global e muito voltada para temas econômicos, que o foco dessa espionagem é exatamente conseguir avanços na ciência, na tecnologia, obter conhecimentos ali que possam ajudar a indústria chinesa. Isso virou um problema grave nos Estados Unidos e na Europa, porque a ciência ainda é muito cosmopolita, apesar desse recuo dos últimos anos. E você vai hoje numa universidade americana ou europeia, nos departamentos ligados à engenharia, ciência da computação, a quantidade de alunos chineses é enorme. Então o que você vai fazer? Proibir seus alunos de irem pra lá? Você vai vigiá-los, isso vai ter consequências muito negativas pra ciência global. E provavelmente vai retardar avanços científicos em áreas como inteligência artificial ou nanotecnologia, todas essas pesquisas de ponta. É uma coisa muito presente. Mas, olha, o primeiro grande manual de espionagem que a humanidade produziu, é um livro em chinês, né? É a Arte da Guerra, de Sun Tzu, e não desaprenderam essas lições, né?