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Edição de Sábado: O Estado sou eu!

Maior, melhor, incrível, magnífico, histórico, sem precedentes, extraordinário, fantástico. É vasto o vocabulário de superlativos e adjetivos do ex e próximo presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump. Essas e muitas outras expressões autocongratulatórias figuraram em seu discurso da vitória, na noite de terça-feira, dia 5 de novembro. Foi mesmo uma vitória notável. Condenado e conhecido, ainda assim ele varreu os sete estados-pêndulo e, na fúria de seu triunfo, garantiu maioria no Senado e deve levar a Câmara para o seu lado também. Trump começou sua fala com a afirmação de que o seu movimento, o Maga, ou Make America Great Again, “francamente”, deve ser “o maior movimento político de todos os tempos”. Não mencionou o Partido Republicano uma única vez. Nem precisaria. Trump já tragou o que um dia foi um partido para seu movimento — que, como ele e todos a seu redor sabem, é ele mesmo. Permitiu que orbitassem em torno de si, naquele palco, algumas figuras, presencial ou nominalmente: JD Vance, seu vice; Elon Musk, seu fiador; Dana White e Joe Rogan, seus brothers. E encerrou os vinte e tantos minutos de fala com o que jurou que será seu lema: “Promessas feitas, promessas mantidas”.

No caso de Trump, elas nem foram tantas — mas foram ambiciosas. Passam por implementar o mais ostensivo plano de deportação de imigrantes ilegais já concebido, se vingar e perseguir inimigos políticos até com forças de segurança, “drill, baby, drill", exterminar o identitarismo, acabar com a burocracia estatal, devolver empregos aos americanos, consertar a economia, coisas assim. Nos discursos erráticos de campanha, tantas vezes agressivos e ultrajantes, essas propostas pareciam nem ter tanto perigo, soavam desarticuladas. Seriam só parte dos devaneios habituais do homem. Mas não. As promessas que Trump fez e pretende cumprir estão ordenadas e detalhadas em um documento de mais de 900 páginas: o Project 2025.

Esse é o apelido do texto-guia. Seu nome completo, não coincidentemente, é Mandate for Leadership — The Conservative Promise. Quem o organizou foi a Heritage Foundation, um think tank conservador fundado na década de 1970. Mais de 100 outras entidades conservadoras ajudaram a formulá-lo, emprestaram cerca de 400 experts e financiaram sua produção com US$ 20 milhões. Entre esses 400, muitos ex-funcionários de Trump. O Project 2025 não é o primeiro Mandate for Leadership que a Heritage Foundation publica. Ronald Reagan, eleito em 1980, tomou posse em janeiro do ano seguinte com o calhamaço deles na mão. Desde então, a cada ciclo eleitoral, a organização edita um novo manual para um presidente republicano. A fundação se gaba de Reagan ter adotado 60% de suas “sugestões” e Trump, em seu primeiro mandato, 64%. Só que a extensão do que o documento e a teia de associações conservadoras querem promover desta vez é, como diria Trump, histórica e sem precedentes. E, para um político que já considera que um presidente deve ter praticamente poder total, um documento que ensina o caminho para fazer isso é mais que um manual. É um oráculo.

Quem é a estrela de quem

Um dos principais colaboradores na formulação do Project 2025 é o CPI, o Conservative Partnership Institute, espécie de dissidência da Heritage. O fundador do CPI é Jim DeMint, ex-senador pela Carolina do Sul. Ele ficou conhecido em Washington por insuflar os republicanos uns contra os outros, sempre pelo lado mais radical. DeMint foi presidente da Heritage, assumindo em 2013, e deixou a fundação mais tradicional da direita americana quando tentou impor mudanças que tornavam a organização menos intelectualizada e mais lobista e os outros membros do conselho ainda resistiam em embarcar no trumpismo. Numa reportagem da New Yorker, um ex-membro da Heritage narra que muitos no lado conservador viam em Trump o “cavalo em que poderiam cavalgar para a vitória” em 2016. DeMint era um deles.

Em 2017, ele fundou o CPI não como um think tank, mas como uma incubadora e multiplicadora de outras células ultraconservadoras. Ofereceu financiamento e aconselhamento legal a ex-membros do governo Trump que se viram sem morada a partir de 2020, e fundaram seus próprios grupos. Os prédios do CPI são uma espécie de WeWork do radicalismo de direita nos Estados Unidos e boa parte da transformação do Partido Republicano se deu em suas salas. O mundo girou, Trump se fortaleceu, e a Heritage Foundation sucumbiu ao CPI de DeMint.

Russel Vought, outro ex-Heritage, fundou o Center for Renewing America e foi chefe do gabinete de Gestão e Orçamento de Trump. Sua entidade faz parte do sistema solar do CPI. Ele assina o capítulo sobre como o Poder Executivo deve retomar o poder no país, que o Congresso foi delegando à burocracia federal, por meio das agências. “O grande desafio que um presidente conservador enfrenta é a necessidade existencial pelo uso agressivo dos vastos poderes do Poder Executivo para devolver o poder — incluindo o poder atualmente detido pelo Poder Executivo — ao povo americano”, Vought escreve. Quem conhece Trump consegue imaginar que ele vá retomar o poder de um lado e redistribuí-lo de outro?

Na constelação do CPI está também a America First Legal, cujo vice-presidente é Gene Hamilton, que foi do Departamento de Segurança Nacional e do Departamento de Justiça de Trump e escreve o capítulo no Project 2025 sobre como submeter o DOJ direto ao poder presidencial. O presidente da America First Legal é Stephen Miller, formulador da política anti-imigrantes de Trump e autor de seus discursos (quando Trump se digna a lê-los).

Quem preside a Heritage Foundation atualmente é Kevin Roberts, que se proclama o idealizador do Project 2025. Acompanhar essa mutação da fundação é flanar sobre o processo de radicalização dos conservadores como um todo. Roberts lançou recentemente um livro em que defende “uma queima longa e controlada” de variados alvos, incluindo o FBI, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, o New York Times, “todas as faculdades da Ivy League” e até os Escoteiros. Quem escreve a apresentação do livro é JD Vance.

É difícil cravar quem cavalga quem a essa altura. Está claro que Trump atende a um propósito de muito mais gente e muitos mais grupos do que os seus próprios. É bastante claro, também, que o ego de Trump não conhece fronteiras. Questionado sobre o Project 2025, ele vem tentando se afastar dos seus autores, na medida do possível, chegando a tachá-los de extremistas. Mas a CNN apurou que ao menos 140 pessoas que trabalharam no primeiro mandato de Trump estão envolvidas no documento. Oficialmente, sua campanha disse que o único texto que a representava era a Agenda 47, que, inclusive, tem muitos pontos em comum com o Project 2025. Mas há quem aposte que ele só fez isso para, primeiro, reduzir o custo eleitoral da associação a um texto tão minucioso e, realmente, extremista. E, segundo, porque abomina a ideia de que a percepção pública sobre ele seja a de alguém que recebe ordens de outros.

O exército e as armas

Uma das premissas básicas na elaboração do Project 2025 é a de que, quando assumiu o poder em 2016, o trumpismo estava despreparado, pouco equipado e não tinha gente qualificada o suficiente para ocupar os cargos governamentais. Ou qualificada o suficiente para fazer nesses cargos somente o que Trump desejava, inclusive infringir a lei. Um estudo da Brookings Institution mostra a exuberante rotatividade de pessoal do alto escalão em seu governo. No primeiro ano de gestão, a taxa ficou em 35%. Para se ter uma ideia do estrago, passe os olhos nas taxas de seus antecessores: Obama, 9%; Bush, 6%; Clinton, 11%; Bush pai, 7%; Reagan, 17%. Trump demitiu e demitiu muito. Como nos tempos de TV. Entre as causas dessas demissões, segundo fontes contaram à New Yorker, estavam a resistência de assessores de, por exemplo, bolar um plano de invasão ao México ou de chefes de agentes da fronteira em ordenar que se atirasse a esmo em imigrantes que atravessavam o Rio Grande.

Bem, isso tudo está prestes a mudar. Se Trump ama fazer campanha e ganhar eleição, ele certamente nutre bem menos entusiasmo por governar. Então, ainda que queira resistir a uma lista de nomes oferecida pelo Project 2025, vai ser difícil escapar da tentação de ceder ao LinkedIn conservador com milhares de nomes de pessoas já testadas em seu grau de lealdade ao chefe. (A intenção original da Heritage era selecionar e treinar ao menos 20 mil candidatos para cargos variados da administração federal). O processo de treinamento desses selecionados se dá na Presidential Academy e a ProPublica obteve alguns vídeos da retórica agressiva, que inclui a orientação de que ninguém fale com a imprensa tradicional.

Os conservadores baseiam essa estratégia de ocupar o governo federal apenas com trumpistas — chamada de aparelhamento quando é o outro lado que faz — num grande argumento: a ideia de que o Estado Administrativo, como eles nomeiam no documento, está inflado demais, tomado pela esquerda radical e contaminado de cima a baixo com ideias identitárias, ou woke no termo em inglês. Estado Administrativo, na linguagem conspiratória (que também está presente no texto), é o Deep State. É basicamente a burocracia estatal. “Olhe para a América sob o comando da elite cultural hoje: a inflação está devastando os orçamentos familiares, as mortes por overdose de drogas continuam a aumentar e as crianças sofrem a normalização tóxica do transgenerismo com drag queens e pornografia invadindo as bibliotecas escolares. (…) Além disso, comunidades de baixa renda estão se afogando no vício e na dependência do governo. As elites contemporâneas até reaproveitaram os piores ingredientes do ‘radicalismo chic’ dos anos 1970 para construir o culto totalitário conhecido hoje como ‘The Great Awokening’”.

O que acontece é que o Project 2025 chama de “woke” absolutamente qualquer pauta de diversidade e igualdade promovida pelo governo, qualquer agenda pró-meio ambiente, tudo que represente uma dose mínima de progressismo. Não se trata apenas de condenar ações descabidas ou exageradas dos grupos de esquerda. Uma ação de educação de militares para ficarem menos violentos: identitarismo. Burocratas que falam de inclusão de crianças trans nas escolas: identitários. Então, qual a solução? Acabar com a burocracia de Estado.

Ao ler as 900 páginas do Project 2025, o tom do que é aceitável para um “burocrata” vai ficando límpido. E também qual a identidade que lhe é permitida defender. Meio ambiente e direitos reprodutivos estão no alvo.

São quatro as grandes promessas conservadoras. Abre aspas:

1. Restaurar a família como peça central da vida americana e proteger nossos filhos.
2. Desmantelar o Estado Administrativo e devolver a autogovernança ao povo americano.
3. Defender a soberania, as fronteiras e a generosidade da nossa nação contra ameaças globais.
4. Garantir os nossos direitos individuais dados por Deus de viver livremente – o que a nossa Constituição chama de ‘as Bênçãos da Liberdade’.

Fecha aspas.

Na primeira, sobre a família americana, o texto decreta, de saída, que não é o governo que une uma sociedade. São o “casamento, a família, o trabalho, a igreja, a escola e o voluntariado”. Não há na lista a opção de viver em comunidade para quem não frequenta igrejas. O texto segue para cravar que “não existe nenhum programa governamental que possa substituir o buraco aberto na alma de uma criança pela ausência de um pai”. Em momento algum, trata-se da responsabilidade eventual de um pai ausente.

Mas, em seguida, sugere-se que, para proteger a sociedade dos “guerreiros culturais woke”, eliminem-se os “termos orientação sexual e identidade de gênero; diversidade, equidade e inclusão (DEI); gênero; igualdade de gênero; equidade de gênero; consciência de gênero; sensibilidade ao gênero; aborto, saúde reprodutiva; direitos reprodutivos e qualquer outro termo utilizado para privar os americanos de seus direitos da Primeira Emenda de todas as regras federais, regulamentação da agência, contrato, concessão, regulamentação e legislação existentes”. Uma reação e tanto ao identitarismo.

Como todo texto que opta por reinterpretar a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA de uma só vez, ambos documentos paridos sob a luz do liberalismo nascente e do iluminismo, o Project 2025 não está livre de contradições. Então, ao mesmo tempo em que defende que “os direitos dos pais como educadores primários dos seus filhos devem ser inegociáveis em escolas americanas”, define que “permitir que pais ou médicos ‘redefinam’ o sexo de um menor é abuso infantil e deve acabar”. Ou seja, a liberdade dos pais sobre os filhos acaba exatamente no limiar das questões de gênero e identidade.

Ainda na promessa familiar, o texto declara que a pornografia deveria ser proibida. E diz que as plataformas das big techs são uma fábrica de abuso infantil — a ver como o bro Elon Musk se sente com esse pedaço.

Transgredindo um pouco a ordem, a promessa da soberania tem como pilar a defesa de que tudo que foi construído pelos Estados Unidos é feito por e para os americanos. “We the People”, como comanda a Constituição. E que todo e qualquer projeto que abrigue estrangeiros ou ideais “globalistas” tem como objetivo final destruir o povo americano, começando, claro, pela unidade familiar — mas passando pela sua fé cristã também. Soa como olavismo, caminha como olavismo, cheira como olavismo, mas é Steven Bannon-ismo.

A quarta promessa se utiliza de uma literalidade da Declaração de Independência para destinar o direito à liberdade e às suas bênçãos somente aos tementes a Deus. E essas liberdades passam por uma variedade de coisas, como a posse e o porte quase irrestrito de armas. Mas não tanto pelo direito à livre manifestação ou à liberdade de imprensa.

Permeando as outras três, está a promessa de desmantelar o Estado Administrativo. É com esse pretexto que se constrói praticamente todo o manual de políticas públicas sugeridas a Trump. Para ele devolver ao povo americano o poder que lhe foi tomado pelo Deep State, só mesmo reconfigurando a coisa toda, quiçá destruindo órgão por órgão.

Tática comum de quem quer minar a democracia, o documento recorre à Constituição americana para declarar que ela está sendo usurpada. Afinal, ela determinaria que, de todos os Poderes, o Congresso é o maior. (Isso é uma distorção, claro. Lá como cá, há a noção de independência e harmonia entre os poderes e de um sendo contrapeso do outro.) Mas no argumento dos autores do texto o que acontece é que os parlamentares, em troca de dinheiro e benefícios, abrem mão de legislar e ajudar o Executivo a governar, cedendo espaço a mais e mais agências. E que elas, por sua vez, gastam demais e esses gastos são “a força vital do Great Awokening”. “Quase todos os centros de poder mantidos pela esquerda são financiados ou apoiados, de uma forma ou de outra, por meio da burocracia do Congresso”.

A solução para isso não seria aumentar a eficiência das agências. Mas eliminá-las. Totalmente. Seja a agência que regula o uso da água, a que monitora as epidemias, a que protege consumidores, fiscaliza mercados. Como diria um trecho do capítulo sobre fronteiras, afinal, “hoje, quase todos os presidentes das universidades de elite dos EUA ou gerentes de hedge funds de Wall Street têm mais em comum com um chefe de Estado socialista europeu do que com os pais num jogo de Ensino Médio em Waco, Texas”. Vai ser curioso ver como esse argumento de menos Estado vai se sustentar quando Trump precisar mobilizar mundos e fundos para construir o muro ou os campos de imigrantes ilegais. Ou como as bolsas americanas vão reagir quando parte da força de trabalho das empresas, com seus imigrantes ilegais, começar a ir embora do país.

Desejar menos Estado é bandeira comum a políticos americanos, a liberais, progressistas ou não, e à direita no mundo todo. Mas não é sobre isso. Ao colocar todos os agentes de Estado, da academia, da mídia e até do mercado financeiro como marionetes da esquerda, o que o Project 2025 propõe é entregar a um homem só todo o poder. O mesmo homem que tem — ou tinha, pelo menos — 91 acusações em quatro processos criminais está sendo instado a tomar todo o governo, incluindo as agências e os burocratas que poderiam conter seus ímpetos tirânicos, de assalto. Para si. Não há quem duvide que ele certamente gostaria desse tipo de poder. Trump, em tese, não poderia se reeleger, porque a Constituição americana não permite um terceiro mandato, consecutivo ou não. Só não parece que, a essa altura, ao contrário do que propagam, esse seja o documento mais importante na cabeceira de Trump.

Obrigado, Vanvan

Rio de Janeiro. Livraria da Travessa, 2016. Na noite de lançamento do meu primeiro livro solo, 100 Coisas que Cem Pessoas Não Vivem Sem, retratos de 100 brasileiros e fotos de suas coisas favoritas, Mariza, uma ex-aluna dos meus cursos de fotografia, chega até a mesa para ter o seu exemplar autografado. Ela me olha, lívida, como se tivesse passado por grande susto. “O que aconteceu?”

“Quem é aquele senhor ali?” aponta para Evandro Teixeira, meu amigo de décadas e que, óbvio, participa do livro. “Evandro Teixeira, um dos grandes fotógrafos do Brasil. Não conhece? Ele está aqui”. Abro a página 72, onde ele aparece. Ela olha o livro e para ele, como se quisesse associar a imagem à pessoa. “Isso aqui está iluminado”, se referindo à livraria. De fato, as luzes estavam acesas. A big store Travessa não é um lugar soturno. “Sim, mas...”

“Andre, ele anda com muita gente. Muitas almas o protegem. E estão ao seu lado, te protegendo também.” Ela estava como olhos marejados, visivelmente emocionada. Assino seu exemplar, fazemos as fotos de praxe e minutos depois ela estava abraçada a Evandro, que tinha o estranho poder de agregar pessoas à sua volta. Desconhecidos, em minutos, já conversavam com Vanvan como se fossem velhos amigos. Carisma, dizem. Mariza era espírita vidente. Nunca tinha me dito isso nas aulas. Ela participou de uma oficina de iluminação com o objetivo de registrar corretamente suas esculturas artesanais. Não conhecia Evandro Teixeira.

Santiago, capital do Chile, 10 de setembro de 2023. “Arruda, o homem me abraçava que parecia que ia me quebrar. Dizia Obrigado! Muchas Gracias! Me dava beijos, me espetava com aquela barba.” O homem ao qual Evandro se referia era Gabriel Boric, presidente do Chile. Boric recebeu Evandro no Palacio La Moneda, sede do governo, para abrir oficialmente a exposição Fotojornalismo e ditadura: Brasil 1964/ Chile 1973, de 40 fotografias, que aconteceu no Museu da Memória e Direitos Humanos. Evandro estava acompanhado por Flávio Dino, ministro da Justiça, e por Silvio Almeida, à época ministro dos Direitos Humanos. Em fotos, os ministros sorridentes posam com Evandro segurando uma câmera fotográfica.

Evandro Teixeira de Almeida, nascido em 25 de dezembro de 1935, no povoado de Irajuba, sertão baiano, a 307 quilômetros de Salvador, tinha esse dom. Evandro faleceu em 4 de novembro último, vítima de pneumonia, na clínica São Vicente, do Rio de Janeiro. Em setembro esteve com Sebastião Salgado num festival de fotografia na cidade de Paraty. Logo após a viagem, começou a se sentir mal.

A primeira vez que estive com o “star” Evandro foi em 1989, quando eu era aluno do curso de Comunicação Social da extinta Faculdade da Cidade, do Rio. Havia um jornal impresso feito pelos alunos e sugeri entrevistar os dois grandes fotógrafos cariocas, Anibal Philot, do Globo, e Evandro, do Jornal do Brasil. Ninguém gostava do Globo na época. Motivado por um clima pós-ditadura ou pelo formato “cintura dura” da edição, o Globo soava para os alunos algo tão emocionante como o Diário Oficial da União. O JB era diferente. Era “o” jornal, o grande sonho da estudantada do jornalismo impresso. A fotografia gozava de prestígio no JB, algo que não ocorria no diário dos Marinho. Assim fomos eu e outro estudante. O Globo parecia uma repartição pública, e a impressão que tive era que todos estavam de mau humor. Philot nos recebeu com certo distanciamento, mas atencioso. Era um tremendo fotógrafo, excepcional, não se enganem. Entrou no Globo em 1968 e foi editor de fotografia até o meio dos anos 1990, quando voltou a fotografar. Philot morreu aos 46 anos, assassinado.

Aí fomos ao JB entrevistar Evandro. O ambiente era outro, mais leve, aberto. A fotografia ficava no sexto andar, junto com a redação; no Globo, um andar abaixo. Evandro já tinha um livro impresso, o Evandro Teixeira Fotojornalismo, de capa dura, editado pela Editora JB, um feito para uma época em que livros de fotografia nacionais eram raros. E ainda são. A faculdade fornecia um filme Kodak Tri X, preto e branco, de 20 poses, só isso. O equipamento era uma Nikon FM e uma lente 50mm, a “normal”. Uma das fotos que fiz de Evandro foi usada por ele durante muito tempo no seu Facebook. “Arruda, envelhecer é uma merda. Nessa foto eu ainda tô bonito”. Sim, Evandro gostava de confete...

Entrei no Jornal do Brasil em 1992. Era um garoto de 24 anos recém-formado, com todos os idealismos na cabeça e com o sonho pueril de entrar na agência Magnum, a mítica cooperativa de Henri Cartier-Bresson e Robert Capa, da qual Salgado foi presidente. Mas a fotografia do JB era a nossa Magnum. O staff era ótimo, mas incrivelmente diverso, de sujeitos com mestrado a semiletrados, todos com suas especificidades e capacitações. Dos cerca de 30 e poucos fotógrafos, apenas duas mulheres, se me lembro. Sim, era machista, bem machista. Pairando acima estava Evandro. O foca aqui caiu logo em umas de suas peças favoritas. Ele me disse que Dom Mauro Morelli tinha ligado e queria falar comigo. Fui procurar o telefone do bispo da cidade de Duque de Caxias, sem sucesso. A redação era cúmplice da pegadinha. Saí do JB em 1998 e fui para o Globo, onde fiquei até 2000. Evandro ficou um tempo sem falar comigo. Achava que era traição. Evandro entrou no JB em 1963 e saiu em 2010, quando o jornal deixou de ser impresso. Fez de editorial de moda a guerras, Copas e Olimpíadas. Salgado disse não havia nada mais brasileiro do que a fotografia de Evandro Teixeira.

A amizade se solidificou quando comecei a tratar suas fotos no Photoshop. Grosso modo, tratar não é manipular, mas ajustar a imagem para os parâmetros corretos de contraste e intensidade. Evandro não era bom de Photoshop, sabia o básico do básico. O livro Retratos do Tempo, seu catalógo raisonné, publicado em 2015, foi um tour de force. Seu acervo era bagunçado, como 90% dos arquivos de todos os fotógrafos. Algumas fotos estavam na resolução e contrastes certos, a maioria não, outras foram praticamente restauradas. A célebre foto da queda do motociclista da FAB levou uns 5 meses de restauração. O negativo estava péssimo, muito arranhado. Evandro me deu cópia grande da foto, assinada. Sou motociclista há mais de quatro décadas.

Trabalhamos noites e noites, muitas interrompidas para pizzas e até mesmo pra ver um filme. Dormiu no sofá da sala pelo menos duas vezes. Revisamos muito de seu acervo, que, felizmente, está no Instituto Moreira Salles desde 2019. Evandro era muito mais que o fotógrafo que registrou os anos de chumbo. Era extraordinário, tendo o seu ápice no fim dos anos 1980.

De uns 10 anos pra cá, eu produzia seus cartões digitais de Boas Festas. Ele me mandava umas cinco, seis fotos para escolhermos e eu editava no Photoshop. Evandro não era bom um editor, não por falta de competência, mas por paixão. Gostava de todas as fotos. Era difícil para ele escolher “a” foto. Neste ano, porém, em julho, ele me enviou meia dúzia de imagens. “Evandro, já...?”Ele mandava as fotos por email em outubro, início de novembro. “Arruda, sou ansioso, você sabe, pórrraaa”, falava com um sotaque baiano-carioca. Escolhemos uma foto bonita, céu azul, com o povo brasileiro, seu principal afeto, como protagonista.

Obrigado, Vanvan.

Feito por amor

Los Angeles, fim dos anos 1980. No pequeno apartamento do DJ Matt Dike, que abrigava mais discos de vinil do que móveis, um jovem brasileiro nascido em São Paulo mas criado na cidade dos anjos montava seu primeiro estúdio em Hollywood. Matt tinha comprado uma bateria eletrônica com sampler, a E-mu Sp-12, que permitia samplear 5 segundos de música, e Mario Caldato Jr já era dono de um gravador de rolo e alguns equipamentos de gravação. Mais do que isso, meio nerd, já entendia o processo de gravar discos de vinil e sabia como deixar o som bom para a pista. As produções que Mario e Matt faziam eram funcionais. Tinham de bater bem na pista de dança, nos clubes que tocavam hip-hop em uma época em que o som da Costa Leste ainda não era dominado pelo gangsta rap de Dr. Dre e Snoop Dogg.

“Matt tinha um monte de discos, e foi muito inspirado pelo Rick Rubin, por essa mistura de rap e rock. A gente ficava sampleando de tudo, umas guitarras do Van Halen, uns trechos dos Rolling Stones e montava as bases”, conta Mario enquanto almoça no fim de tarde em uma padaria no Bexiga, em São Paulo. Ele está acompanhado de  sua mulher Samantha Caldato, e os dois conversaram com o Meio pouco antes de assistir a um show no Teatro Oficina.

Com esse estúdio minimalista montado e tendo aprendido o necessário para prensar singles de vinil de 12 polegadas para tocar na balada, eles começam a assinar uma série de produções, que acabam sendo lançadas pelo selo independente Delicious Vynil, parceria com um terceiro amigo, Michael Ross. Mike e Mario criavam as bases e chamavam rappers para colocar a voz. Muitas vezes orientando sobre o que rimar. E logo de cara conseguiram emplacar hit em cima de hit.

Quem passasse pelo pequeno apartamento não imaginaria que anos depois aquelas produções caseiras, que emprestavam do punk rock o ethos do faça você mesmo, seriam a base para uma carreira repleta de discos de platina, de artistas como Beastie Boys, Björk, Beck, Jack Johnson, sem falar de brasileiros como Marcelo D2, Nação Zumbi e Seu Jorge.

Os responsáveis pela explosão de Mario na produção e na mixagem de discos são sem dúvida os Beastie Boys. Mike, Mario e os Dust Brothers produzem Paul's Boutique, o segundo álbum do grupo, para muitos um dos pontos altos da carreira desses inquietos exploradores dos limites do hip-hop e rock'n'roll. Os Beastie Boys tinham mudado para Los Angeles e trocado de gravadora. Deixaram a Def Jam para trás e conseguiram um contrato de três discos com a Capitol. Nessa mudança, Adam Horovitz foi parar no apartamento de Mike e ficou maluco com as produções deles. Os Beastie Boys tinham total autonomia sobre o contrato, e conseguiram chamá-los para o time de produção.

“Eles tinham contrato para três discos e um budget fechado. Ninguém na gravadora estava dando muita bola para eles, então eles tinham muita liberdade”, lembra Mario. "Para a sequência de Paul's Boutique eu dei uma ideia de eles alugarem uma casa, em vez de pagar estúdio". E foi o que fizeram, alugaram uma casa com quadra de basquete e montaram o estúdio por lá, em vez de gastar um mês de estúdio, dava para pagar um ano de aluguel da casa. Um dia, Mario chamou seu amigo carpinteiro e ex-companheiro de banda na adolescência Money Mark para arrumar o portão de madeira da casa. Mark levou seu teclado e eles começaram a mesclar jams com partidas de basquete. A sacada de gênio do disco seguinte dos Beastie Boys foi usar como samples trechos dessas sessões instrumentais. No disco anterior,  eles haviam pago uma fortuna para bancar os samples das bases criadas pelos Dust Brothers. Depois de 3 anos saiu Check Your Head, marcando uma outra virada no som dos Beastie Boys e consolidando Mario como o produtor dos melhores discos da banda. O resto é história e nos traz para o momento atual.

Do pequeno estúdio numa sala no Santa Monica Boulevard, em Hollywood, corta para hoje, em que Mario tem um estúdio dos sonhos, montado no terreno vizinho à sua casa em Los Angeles. “O Mario chegou em um momento da carreira dele que pode escolher o que quer fazer, e faz o que dá mais tesão”, diz Samantha para introduzir a mais nova paixão do casal, o selo Amor in Sound. Carioca, cellista que tocou no trio de Black Alien, criadora de hortas urbanas, Samantha é quem puxa a conversa sobre o selo. “Nos últimos anos, o Mario veio mais ao Brasil e acabou gostando da pluralidade, da musicalidade daqui”, diz. “Muitos artistas queriam fazer coisas com ele, mas os projetos não viravam”, completa. Agora, com o selo eles conseguem ter controle total sobre os projetos e apostar naquilo que realmente gostam.

O primeiro lançamento do selo foi de um monumento da música negra do Brasil, o disco que comemora os 80 anos da Orquestra Afro-Brasileira, depois eles gravaram em Los Angeles um grupo de jazz gospel, Jimetta Rose & The Voices of Creation, e agora acabam de lançar o novo álbum do sambista carioca Alvaro Lancellotti, Arruda, Alfazema e Guiné. É um trabalho que mergulha no som do candomblé para trazer essa dimensão espiritual da música de percussão, influenciado tanto pelos experimentos de Pedro Santos e do seminal Krishnanda, de 1968, quanto das cantigas de terreiros.

Nos planos futuros, estão regravar faixas clássicas dos Tincoãs, grupo baiano que fez uma aproximação com o som da África nos anos 1970. Mateus Aleluia, líder dos Tincoãs, inclusive participa do disco de Alvaro Lancellotti. O que o casal tem vontade de lançar? “Basicamente música negra, da diáspora, dos tambores”, diz Mario, apontando para onde o coração deve levar o Amor in Sound.

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As eleições americanas, como não podia deixar de ser, foram o tema mais quente da semana. Mas a terra do Tio Sam deu o ar da graça também na receita do Panelinha. Olhando para a nossa realidade, destaques para a obra de Evandro Teixeira, que nos deixou nesta semana, e um retrato do PT moderado. Veja os mais clicados:

1. IMS: Uma seleção de obras do fotógrafo Evandro Teixeira (1935-2024), que tem seu acervo preservado pelo Instituto Moreira Salles.

2. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria fala da vitória de Donald Trump, e discute o perfil de quem o elegeu, frisando que os eleitores que votaram nele sabiam exatamente no que estavam votando.

3. Meio:  Mais um Ponto de Partida. Neste Pedro Doria comenta a entrevista que Edinho Silva, provável sucessor de Gleisi Hoffmann na presidência do PT, deu a Malu Gaspar, deixando claro o que o PT mais moderado pensa a respeito das eleições deste ano.

4. Panelinha: Na semana das eleições, um clássico americano, o Mac & Cheese, um macarrão com queijo gratinado tem gostinho de infância, com uma receita para um que fica pronta num piscar de olhos.

5. Meio: Reportagem que lançamos no último sábado com dicas de filmes e livros que ajudam a entender as eleições americanas.

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