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A obsolescência institucional nos EUA e o risco autocrático

As instituições democráticas norte-americanas parecem sucumbir ao coquetel combinado de decadência geopolítica e econômica

A longeva imagem dos Estados Unidos como a terra por excelência da democracia liberal vem caindo por terra nas últimas décadas. Por detrás dessa imagem, havia, claro, uma série de idealizações. O modelo norte-americano organizado pela Constituição de 1787 não era democrático para os padrões de hoje. Tratava-se de uma confederação dotada de um governo geral de poderes bastante limitados, cujo sistema eleitoral consagrava um ideal oligárquico de governo. Excluía a maioria da população, comportando a participação política de até de 15% da população, e previa eleições indiretas para filtrar a vontade da maioria.

Julgado tão soberano quanto a União Federal, cada estado tinha seus próprios códigos, inclusive eleitorais, e seus próprios Senado e Suprema Corte, se assim o desejasse. Não existia, por óbvio, justiça eleitoral. Como se não bastasse, a maioria esmagadora dos estados decidiu que não seria o eleitorado nacional quem elegeria o presidente. Replicando em ponto grande o sistema majoritário de eleições por distritos, os eleitores do presidente no colégio eleitoral seriam os próprios estados, cujos delegados votariam em bloco em um único candidato, escolhido por maioria simples dos eleitores. Se 51% da população escolhesse o candidato A, os votos dos 49 % seriam simplesmente jogados no lixo.

Ocorre que, com todas as distorções oligárquicas do sistema, aquela da Constituição de 1787 era o mais moderno e democrático para o padrão dos séculos 18 e 19. Por isso foi replicado com adaptações em todas as repúblicas latino-americanas. Mas, justamente porque a história constitucional destas últimas foi mais acidentada, elas puderam reconstruir seus sistemas políticos quase sempre em sentido mais democrático, abolindo mecanismos oligárquicos como a representação majoritária, a eleição indireta e o federalismo dual e estadualista. Nos EUA, porém, a Constituição resistiu quase incólume. Nos últimos cem anos, teve apenas 27 emendas — a última, há mais de trinta anos. Ela passou, assim, da condição de a mais moderna no século 19, à de mais anacrônica do século 21.

A baixa quantidade de emendas se deve ao rígido sistema criado para alterar a Constituição. Na prática, ela só pode se modificada por emenda proposta pelo Congresso, aprovada por dois terços dos deputados e senadores e ratificada por três quartos das legislaturas estaduais (atualmente, 38 estados). Do ponto de vista formal, a Constituição nunca sofreu alterações dignas de nota em seu desenho institucional confederativo. A última alteração foi a 17ª emenda, que em 1913 tornou direta a eleição para senador. Descrevi propositadamente no passado as características oligárquicas do sistema americano, para que o leitor se espante com o fato de que elas sigam em vigor.

Essa rigidez, que confere às instituições norte-americanas um certo ar de República Velha, só pôde ser atenuada e se acomodar à sociedade de massas por dois mecanismos. O primeiro foi a evolução da interpretação do texto da Constituição por parte da Suprema Corte, necessária para acompanhar as mudanças e resolver questões modernas, com que sequer haviam sonhado os convencionais de 1787. O outro foi a expansão continuada da economia americana, dando-lhe indefinidos ganhos territoriais e geopolíticos na condição de maior e mais poderoso império da história moderna sobre a Terra. Quem haveria, nessas circunstâncias, de questionar a excelência de suas instituições e a sabedoria oracular dos founding fathers?

Nunca o establishment norte-americano se percebeu em tão grande perigo. O fantasma da decadência o assombra.

A circunstância atual, porém, é hoje outra. Nunca o establishment norte-americano se percebeu em tão grande perigo. O fantasma da decadência o assombra. O sonho da hegemonia perenizada pela globalização econômica se converteu no pesadelo de um mundo multipolar liderado pela China. A União Europeia foi incapaz de se transformar em uma zona de dinamismo econômico e reapareceu o fantasma do expansionismo russo. Os Estados Unidos também se desindustrializaram e as famílias, empobrecidas, se ressentiram. Ao mesmo tempo, a imigração hispânica contínua, com a concomitante redução do contingente branco, correlacionado com a voga progressista, gerou uma sensação pânica de perda da identidade cultural histórica, que supostamente teria sido responsável pela grandeza da nação.

O resultado dessa insegurança crescente foi o desinvestimento gradativo da direita norte-americana no sistema democrático para reverter o percebido processo de declínio estrutural. Primeiro o chamado “Tea Party” abraçou uma agenda francamente oligárquica, pretendendo retomar uma interpretação “originalista” da Constituição, tal como supostamente a teriam desejado os pais fundadores do final do século 18. Depois, julgando insuficiente esse programa, a direita reacionária de Trump se valeu dos pontos cegos e oligárquicos do sistema constitucional para driblar seus limites e avançar em uma agenda autocrática.

O caráter obsoleto da Constituição revelou-se com clareza meridiana nas eleições de 2020. Em primeiro lugar, porque os métodos ultrapassados de apuração se prestaram a todas as narrativas negacionista de fraude eleitoral. Foram eles que permitiram a Trump tentar um golpe de Estado, ao ordenar o assalto do edifício do Congresso Nacional para impedir declaração de vitória do adversário. Em segundo lugar, pelos quatro anos seguintes, o sistema político jurídico norte-americano foi incapaz de punir Trump pela tentativa de destruição do sistema democrático. Permitiu-lhe não só se recandidatar como reeleger-se, dessa vez com uma plataforma abertamente autocrática. Agora, para a suprema infâmia das instituições democráticas, ele será reempossado no edifício cuja depredação ordenou.

O chamado "Projeto 2025", orquestrado pela Heritage Foundation, estabelece para o segundo mandato de Trump um programa de governo baseado na centralização do poder e na repressão de críticos e opositores do governo. Ele preconiza a eliminação da autonomia do Ministério Público, da Polícia Federal e da administração federal, tornando-os instrumentos da Casa Branca. Prevê medidas como a construção de campos de concentração para reprimir a imigração e deportar centenas de milhares de pessoas por ano; a proibição de refugiados de origem muçulmana, a revogação dos vistos para estudantes ativistas, o fim da da cidadania americana por direito de solo, além do recurso ao estado de sítio para suprimir movimentos contestatórios pela via militar. Para o seu programa de reação, Trump conta com uma maioria de aliados no Senado e na Suprema Corte.

As obsoletas instituições democráticas norte-americanas foram incapazes de se desvencilhar de seus atavios oligárquicos.

Em outras palavras, as obsoletas instituições democráticas norte-americanas foram não só incapazes de se desvencilhar de seus atavios oligárquicos, como parecem sucumbir ao coquetel combinado de decadência geopolítica e econômica. Permitiram não só a impunidade daqueles que, em nome de uma concepção reacionária de democracia, tentaram golpeá-las, como a reeleição de seus quase algozes a título de recuperar a perdida grandeza americana. Repetiu-se o precedente de Hitler, cuja leve condenação por tentativa de golpe de Estado na Alemanha da década de 1920 (o “putsch da cervejaria”) antes incentivou do que coibiu seu golpismo extremista. Agora assistiremos as consequências, que podem ser o fim da democracia americana como a conhecemos desde muito tempo.

A república brasileira nada tem a invejar de seu antigo modelo norte-americano, visivelmente decrépito, incapaz tanto de refletir de forma fidedigna a pluralidade do eleitorado, quanto de proteger adequadamente os direitos das minorias. As amargas experiências de oligarquia e autoritarismo nos levaram ao longo de nossa história constitucional a reverter muito do que ela havia copiado da Constituição norte-americana. Coibimos o federalismo dual estadualista pelo modelo cooperativo alemão; substituímos o voto distrital pelo proporcional e a fraude eleitoral por uma justiça eleitoral centralizada e autônoma. Buscando aprender com nossas más experiências, desenhamos em 1988 uma Constituição o tanto quanto possível à prova de novos atentados autoritários. O resultado foi que, ao contrário do que parece ocorrer em Washington, ainda há juízes em Brasília. Para azar dos trumpistas brasileiros.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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