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Por que as autocracias temem os direitos LGBTQ+?

Repressão à sociedade civil, oposição à ordem internacional liberal e ideologia social conservadora explicam o temor

Nos últimos anos, questões de orientação sexual e identidade de gênero têm provocado debates acalorados e exposto divisões profundamente enraizadas em todo o mundo. As últimas duas décadas viram os direitos das minorias sexuais se expandirem, mas também enfrentarem novas restrições. Desde 2000, foram adotadas mais de duzentas novas políticas nacionais que aumentam as proteções e criminalizam a discriminação contra pessoas LGBTQ+. No entanto, durante esse mesmo período, foram mais de cem as novas políticas limitando ou discriminando abertamente o mesmo grupo. No plano internacional, um campo formado por países e ativistas favoráveis à expansão dos direitos das minorias sexuais enfrenta um campo contrário a eles.

Desde 2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) adotou cinco resoluções — entre as mais debatidas e controversas de sua história — relacionadas aos direitos das minorias sexuais. Grande parte da resistência às resoluções veio de regimes autocráticos que são persistentemente relutantes em conceder direitos às minorias. As razões para essa relutância são várias. Primeiro, as autocracias muitas vezes temem que qualquer minoria, uma vez concedidos direitos, comece a pressionar para expandi-los e, assim, desafie o regime. Em segundo lugar, as autocracias resistem aos direitos de de orientação sexual e identidade de gênero como parte de uma oposição mais ampla à ordem internacional liberal e aos “valores ocidentais”. Em terceiro lugar, muitas autocracias têm públicos socialmente conservadores, para os quais os papéis de gênero tradicionais e os relacionamentos heterossexuais estão profundamente arraigados no tecido social. A expansão dos direitos amplifica as ameaças percebidas às normas tradicionais, à estabilidade social e à identidade cultural.

Compreender quais países apoiam ou se opõem aos direitos LGBTQ+ no nível internacional — e por que eles o fazem — lança luz sobre os motivos e métodos dos regimes autocráticos contrários à ordem internacional liberal.

A resistência que os regimes autocráticos ao redor do mundo exibem aos avanços nos direitos das minorias sexuais não é coincidência, mas surge de uma interação tríplice complexa que envolve a repressão desses regimes à sociedade civil, a oposição à ordem internacional liberal e o compromisso com (ou talvez o uso instrumental de) uma ideologia social conservadora.

A visibilidade das minorias sexuais empodera as pessoas, mobilizando atores para exigir mudanças e tecendo novas normas nos tecidos das sociedades.

Em primeiro lugar, qualquer autocracia verá uma sociedade civil robusta como uma ameaça à legitimidade e ao controle autocráticos. Grupos da sociedade civil — por meio de defesa de direitos, campanhas de conscientização e mobilização — normalmente desempenham um papel vital no avanço dos direitos de orientação sexual e identidade de gênero. Ao se opor sistematicamente ao desenvolvimento dessas normas, as autocracias visam criar um ambiente hostil ao desenvolvimento de movimentos LGBTQ+, limitando assim sua influência e impacto. A mobilização em torno de uma questão social como esse conjunto de direitos tem o potencial de se tornar um ponto focal em torno do qual outros opositores do regime poderiam participar de redes para resistir ao poder do regime. Como argumenta Phillip Ayoub em When States Come Out, a visibilidade das minorias sexuais “empodera as pessoas, mobilizando atores para exigir mudanças, influenciando a disseminação de novos padrões legais e tecendo novas normas nos tecidos das sociedades”.Enquanto os direitos LGBTQ+ não forem reconhecidos, as autocracias podem continuar reprimindo organizações da sociedade civil que defendem os direitos das minorias sexuais.

Ao restringir essas liberdades, os regimes autoritários visam tornar os grupos de oposição menos capazes de se mobilizar. Em um mundo cada vez mais interconectado, onde os quadros normativos estabelecidos no nível internacional exercem pressão sobre todos os Estados para que se adequem aos padrões estabelecidos, os governos autoritários estão cada vez mais preocupados em impedir ou obstruir o desenvolvimento de normas que possam representar uma ameaça ao seu governo.

Em segundo lugar, as autocracias muitas vezes veem a expansão dos direitos LGBTQ+ como um cavalo de Tróia para a ordem internacional liberal, com sua ênfase na democracia, nos direitos humanos e no liberalismo econômico. Resistir aos direitos oferece uma maneira de despertar reações contra essa ordem, deslegitimando seus princípios e minando sua influência global.

Ao enquadrá-los como uma ameaça aos valores tradicionais e às identidades nacionais, os regimes autocráticos se unem para se opor a tais direitos no nível internacional. A resistência geralmente está ligada a uma visão dos direitos humanos como relativos e dependentes do contexto, com cada país mantendo a autoridade soberana para decidir quais normas são compatíveis com sua cultura e tradições. A participação em instituições internacionais permite que as autocracias consolidem “redes de resistência” e coordenem estratégias para resistir ao avanço e desenvolvimento dos direitos de orientação sexual e identidade de gênero.

Em terceiro lugar, muitas autocracias aderem a ideologias socialmente conservadoras que enfatizam papéis tradicionais de gênero, estruturas familiares e crenças religiosas. Essas ideologias muitas vezes percebem os direitos LGBTQ+ como uma contestação da ordem social estabelecida e uma ameaça aos valores tradicionais. Ao se apresentarem como defensores dos valores tradicionais contra os excessos percebidos do Ocidente, as autocracias podem consolidar o apoio interno, atrair eleitores conservadores e legitimar ainda mais seus regimes.

Longe de serem mutuamente excludentes, a hostilidade à sociedade civil e à ordem internacional liberal e o conservadorismo social trabalham juntos de maneira complexa e interconectada. As autocracias podem, ao mesmo tempo, reprimir a sociedade civil, buscar enfraquecer a ordem internacional liberal e explorar ansiedades sociais conservadoras para mobilizar o apoio interno.

As razões públicas que as autocracias oferecem para se opor ao desenvolvimento dessas normas também merecem atenção. Ao explicar sua oposição à resolução de 2011 do UNHRC para reunir evidências de discriminação e violência contra pessoas com base em sua orientação sexual ou identidade de gênero, o Paquistão e a Arábia Saudita expressaram preocupação de que a resolução estava introduzindo novos conceitos não apoiados pelos acordos internacionais de direitos humanos existentes. A isso se somou a preocupação de que critérios universais para identificar violações de direitos substituiriam a abordagem relativista expressa na Declaração de Viena produzida pela Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU de 1993. Outros países autoritários, incluindo a China, também favorecem a visão relativista. Eles resistem aos padrões universais e afirmam que o cumprimento das normas internacionais deve ser “adaptado” a diferentes contextos históricos, culturais e religiosos.

Em 2011, a Hungria se destacou dessa abordagem. O representante de Budapeste no UNHRC apoiou a resolução Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, explicando que a Hungria acreditava que isso promoveria um diálogo aberto e construtivo sobre uma questão sensível. Ele também enfatizou que a resolução não criava novos direitos, mas simplesmente afirmava as proteções existentes aos direitos humanos para pessoas com base em sua orientação sexual ou identidade de gênero. O governo da Hungria naquela época era liderado, como ainda é hoje, pelo primeiro-ministro Viktor Orban, cujo partido havia conquistado uma ampla maioria de assentos nas eleições de 2010.

Em 2019, quando a renovação do mandato do especialista independente em direitos de orientação sexual e identidade de gênero foi submetida a uma votação, a Hungria não se manifestou a favor, abstendo-se. Essa mudança na ONU estava em consonância com as crescentes tendências autocráticas internas do país. De acordo com o V-Dem e o Índice de Poliarquia, as pontuações de democracia liberal da Hungria diminuíram significativamente entre 2011 e 2019. Uma mudança em direção à resistência à expansão dos direitos das minorias sexuais acompanhou a virada autocrática do país.

Parece haver uma forte correlação empírica positiva entre democracia e tolerância para com minorias sexuais.

Quanto às democracias, por que elas costumam apoiar esses direitos em organizações internacionais? A democracia é um sistema de governo no qual o povo detém o poder, seja diretamente ou por meio de representantes eleitos. Parece haver uma forte correlação empírica positiva entre democracia e tolerância para com minorias sexuais. Isso torna mais provável que haja atores domésticos que apoiem uma política externa que promova a proteção das minorias sexuais no nível internacional. Há também uma relação positiva entre democracia e apoio a uma ordem internacional de direitos humanos baseada em regras. Todos esses fatores apontam para a mesma expectativa: as democracias, especialmente as democracias liberais, são mais propensas a apoiar os direitos de orientação sexual e identidade de gênero.

O caso russo e a exceção cubana

A Rússia, juntamente com o Egito, lidera a oposição aos direitos das minorias sexuais nas Nações Unidas. A Rússia foi membro do UNHRC durante três das cinco votações sobre resoluções relacionadas ao tema. O representante de Moscou votou contra todas as três. Para o governo de Vladimir Putin, opor-se a elas é um meio de suprimir a mobilização da sociedade civil e contestar a ordem internacional liberal. Essa posição também é consistente com as preferências de seus apoiadores socialmente conservadores, incluindo a Igreja Ortodoxa Russa. A Rússia nunca foi um país particularmente amigável para com a comunidade LGBTQ+. As relações homossexuais foram descriminalizadas em 1993 — um passo necessário para que a Rússia fosse admitida no Conselho da Europa — mas, desde então, não houve progresso em direção a uma maior proteção dos direitos.

Desde 2012, quando Putin retornou à presidência após sua passagem pelo cargo de primeiro-ministro, a discriminação contra as pessoas LGBTQ+ aumentou gradualmente. Em 2013, foi aprovada uma lei federal proibindo a “propaganda de orientações sexuais não tradicionais” entre menores. Em 2020, a Duma incluiu uma proibição explícita do casamento entre pessoas do mesmo sexo na constituição russa. Em 2021, várias organizações LGBTQ+ foram colocadas na lista federal de “agentes estrangeiros”. Em 2022, a Duma ampliou o escopo da lei de propaganda, proibindo a exposição a “orientações sexuais não tradicionais” não apenas entre menores de idade, mas para qualquer faixa etária. Em 2023, a Suprema Corte decidiu que o movimento LGBTQ+ internacional é uma “organização extremista” — segundo a lei russa, financiar ou participar de tais grupos pode resultar em uma pena de doze anos de prisão. A repressão contra a comunidade LGBTQ+ tem andado de mãos dadas com a autocratização do país e serve ao propósito, entre outros, de facilitar a perseguição de dissidentes.

A defesa dos “valores tradicionais” também se tornou um eixo da política externa da Rússia. O regime de Putin considera os direitos das minorias sexuais como uma imposição estrangeira que é contra os valores do país e uma ameaça à sua existência. No UNHRC, a Rússia promoveu a adoção de resoluções reconhecendo a relevância dos valores tradicionais para os direitos humanos e fez lobby contra qualquer referência aos direitos de orientação sexual e identidade de gênero. De acordo com a Human Rights Watch, “o ataque aos direitos LGBT tornou-se um símbolo da rejeição russa aos direitos humanos universais” A Rússia busca ativamente se posicionar como defensora dos “valores tradicionais” e da soberania nacional, e apresentar uma alternativa ideológica ao Ocidente em oposição à ordem internacional liberal.

Nem todos os casos se encaixam em nosso argumento como o da Rússia. Assim como há alguns governos democráticos que votam contra esses direitos na ONU, há algumas autocracias que votam a favor deles. Cuba é o caso mais emblemático de um governo autoritário que votou a favor das cinco resoluções entre 2011 e 2022.

Em Cuba, o triunfo da revolução socialista em 1959 trouxe políticas que discriminavam a comunidade LGBTQ+. O exemplo mais extremo foi a criação, na década de 1960, das Unidades Militares de Apoio à Produção. Eram campos de trabalho onde as pessoas LGBTQ+, juntamente com dezenas de milhares de outros cidadãos que o regime de Fidel Castro considerava “impróprios”, eram forçados a trabalhar nos campos para se tornarem membros produtivos da sociedade.

A virada na política cubana começou com a descriminalização das relações homossexuais em 1979. Dez anos depois, Cuba criou uma agência nacional de educação sexual conhecida como Cenesex. Em setembro de 2022, veio um referendo que legalizou o casamento e a adoção por casais do mesmo sexo, com a mídia estatal fazendo campanha a favor do “sim”.

Por que o governo autoritário cubano apoia essa agenda? A combinação de progressistas sociais em posições de poder e o sufocamento bem-sucedido da sociedade civil pelo regime autoritário explica o apoio cubano. Vale a pena notar que, embora o governo de Cuba, como o da Rússia, critique aspectos da ordem internacional liberal, Cuba nunca procurou instrumentalizar a oposição aos direitos LGBTQ+ contra essa ordem.

O que esperar no futuro

As dificuldades do UNHRC em aprovar resoluções de orientação sexual e identidade de gênero podem ser explicadas pela resistência das autocracias. Essa resistência torna improvável que a ONU adote um tratado internacional protegendo esses direitos em um futuro próximo. Um bloco significativo de Estados-membros — composto principalmente, mas não exclusivamente, por autocracias e anocracias — opõe-se fortemente à legalização dos direitos. A principal acusação do bloco é que são um conceito ocidental que carece de fundamento no direito internacional dos direitos humanos. Também se ouve o argumento de que essas questões seriam mais bem tratadas no contexto social e cultural de cada Estado, em vez de por uma convenção global. Argumentamos que essa oposição é função, pelo menos em parte, dos regimes políticos dos países. As autocracias tendem a ver o desenvolvimento e a codificação dos direitos de orientação sexual e identidade de gênero como uma ameaça ao seu controle sobre a sociedade. Mas é necessária a codificação?

Em uma convenção juridicamente vinculante, a codificação oferece várias vantagens potenciais para as minorias sexuais. Primeiro, forneceria proteções legais claras para indivíduos LGBTQ+, eliminando a atual ambiguidade que alguns Estados exploram para justificar práticas discriminatórias. Essa clareza abordaria diretamente o argumento, frequentemente levantado por Estados opositores, de que a falta de menção explícita nos tratados da ONU significa uma falta de base legal para os direitos de orientação sexual e identidade de gênero sob o direito internacional dos direitos humanos. Além disso, a codificação fortaleceria a sociedade civil dos países.

Infelizmente, os benefícios potenciais das minorias sexuais são potenciais ameaças aos olhos dos regimes autoritários. A precisão jurídica deixa menos espaço para arbitrariedade e repressão estatal, enquanto o empoderamento da sociedade civil cria mais chances para as pessoas expressarem suas queixas contra o regime. Essas circunstâncias, além da crescente polarização sobre os direitos LGBTQ+ até mesmo dentro das democracias, tornam improvável que se possa negociar uma convenção internacional.

Os últimos anos testemunharam avanços sem precedentes no desenvolvimento dos direitos de orientação sexual e identidade de gênero No entanto, a maior parte desse progresso ocorreu no mundo democrático. Tais vitórias fornecem pouca garantia de que os direitos se expandirão ainda mais: quanto mais as autocracias crescerem em poder e alcance, mais difícil será para essas normas se estenderem para além dos países democráticos. Esses desenvolvimentos preocupantes devem apenas reafirmar a importância do trabalho dos defensores dos direitos LGBTQ+. Seus esforços não podem ser separados de outras frentes na luta para expandir a igualdade e a proteção dos direitos das minorias em todos os lugares.

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O artigo completo estará no Journal of Democracy, da Plataforma Democrática (Fundação FHC e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais), que será lançado em outubro deste ano. Outras edições da publicação estão disponíveis de graça.

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