A apologia de Silvio Almeida

Com desfecho político rápido, o escândalo atingiu diretamente o coração identitário do governo

Apesar de recente, já se escreveu bastante sobre o julgamento público de Silvio Almeida e o escândalo político que culminou em sua demissão. Um escândalo, aliás, particularmente interessante por algumas razões peculiares.

Primeiro, porque o ciclo do escândalo foi rapidíssimo: surgiu, atraiu enorme atenção pública e foi resolvido politicamente em apenas alguns dias. Isso não é trivial. Escândalos políticos costumam demorar meses e seguir um roteiro em que as etapas (revelações, choque moral, reações, apologia do acusado, novas revelações, ondas de indignação pública, avaliação e desenlace político) tendem a se espaçar. Este não. Na história dos escândalos políticos, digamos que este foi a versão “pocket” – condensada, intensa e rápida –, como convém aos acelerados tempos desta civilização digital.

Segundo, porque foi o primeiro escândalo e a primeira grande controvérsia política a que assistimos nessa fase pós-Twitter da sociedade brasileira. Claro, estava lá o bom e velho Instagram para os vídeos de apologia e de acusação, para a publicação das notas oficiais dos envolvidos e do Governo Federal, e para a foto de Janja consagrando a sua favorita na disputa moral. O Twitter (ou X, como insiste Elon Musk), contudo, foi por anos o principal radar de polêmicas e o principal medidor público da confusão do dia. Assim como servia para que se soubesse o tempo todo em que as outras pessoas estavam prestando atenção, também servia para que as pessoas escolhessem lados e entrassem na refrega do momento. As estruturas do Twitter, enfim, ajudaram a transformar as tretas em esporte nacional.

Para sorte de Silvio Almeida, creio, a queda de braço entre Moraes e Musk fez com que a confusão em que ele se meteu acontecesse num universo em que a atenção pública mais interessada nas disputas morais estivesse dispersa entre várias plataformas, nenhuma delas com o mesmo potencial de agregar fluxos de indignação como o Twitter. Voltamos a um mundo em que os telejornais da noite coletam e organizam as informações produzidas durante o dia pelas versões diurnas dos jornais, para plateias ávidas por acompanhar os fatos quentes do momento.

Por último, tratou-se de um escândalo que atingiu diretamente o coração identitário do governo. Desde que Lula decidiu que as pastas que tratam de direitos civis, direitos humanos e minorias deveriam ser atribuídas a adeptos da ideologia identitária, e que essas causas deveriam ser tratadas pelo viés identitário, todos entenderam que os ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania e da Igualdade Racial seriam a prova de conceito dessa ideologia dentro do Estado. No identitarismo, o Estado é uma potência hostil e opressora por definição; nele e por causa dele o estigma é perpetuado, a desigualdade é naturalizada, a injustiça se cristaliza.

Ao subir a rampa com “representantes interseccionais” de todas as identidades oprimidas, e ao escolher dois modelos icônicos de “representantes” para chefiar as duas pastas, Lula empossou na política institucional a política de movimentos sociais típica do identitarismo. Eis a razão pela qual uma parte tão vocal da esquerda ficou tão chocada e dividida com esse episódio; e por que a direita se regozijou imensamente em ver um escândalo envolvendo justamente os dois campeões morais de um governo pós-bolsonarista para o qual é importantíssimo ser ele mesmo um campeão de virtudes.

Na antiguidade clássica, a apologia era um discurso de autodefesa em resposta a uma acusação pública que envolvesse um ataque ao caráter do acusado.

Antes de tudo, gostaria de me deter na apologia de Silvio Almeida, algo de que pouco se falou até agora. Na antiguidade clássica, a apologia era um discurso de autodefesa em resposta a uma acusação pública que envolvesse um ataque ao caráter do acusado. Era uma defesa moral da própria integridade, feita em primeira pessoa, diante de uma assembleia que tinha a prerrogativa de, ao final do discurso, decidir ou não pela condenação do orador.

A retórica apologética e suas estratégias não são certamente desconhecidas de um professor de Direito. Por isso é interessante verificar as estratégias a que Silvio Almeida recorreu para buscar a exoneração pública das acusações à sua conduta e ao seu caráter.

As táticas retóricas preliminares adotadas por ele foram clássicas: repudiar as acusações e caracterizá-las como falsidades. É uma estratégia de simples negação, sem mais. A partir daí, muitos caminhos se abririam: ataque ao acusador, recorrer a um bode expiatório, evasão de responsabilidade (o ocorrido é desculpável), diminuição da gravidade do acontecido (não foi tão grave), autoelogio, até chegar, se for o caso, à mortificação ou assunção da culpa (errei, fui moleque).

Almeida centrou sua defesa em duas táticas. A primeira foi o autoelogio ou reforço (em inglês, chama-se “bolstering”), que consiste em colocar o acusador em uma posição delicada, pois a acusação deve ser vista como um ato desconsiderado e insensível diante de alguém que certamente já demonstrou ser correto, generoso e digno de reconhecimento. Almeida se defende por amor à família, esposa, filha, em meio à luta que trava diariamente, “com todo o carinho, com todo o cuidado” que tem “com os direitos humanos castrados dentro desse país”. A captura da benevolência também deve levar em consideração a dor (“está doendo na minha alma, do fundo do meu coração”) que lhe foi infligida pela acusação. Por fim, estabelece que é o seu caráter ilibado o que o compele a reagir com veemência e determinação: “eu não vou transigir com a minha honra”. Imoral, portanto, não é Almeida, mas quem o acusa.

A segunda tática consistiu em acusar o acusador, alegando intenções imorais por trás das acusações feitas. Na teoria formulada por Almeida, está em curso um esquema, um complô, uma ação planejada e articulada cujos objetivos são sabotar a defesa dos direitos humanos e destruir a imagem do ministro enquanto homem negro “que tem uma posição de destaque no Poder Público”. Racismo e desprezo aos direitos humanos se combinam numa “campanha orquestrada”. Os envolvidos na suposta orquestração são diretamente acusados por Almeida: “Vocês têm um caráter vil, baixo, vocês são comprometidos com o atraso, com a mentira. E vocês têm tentado o tempo todo silenciar a voz do povo brasileiro independentemente de visões políticas ou partidárias”.

Com isso, Almeida informa retoricamente ao público que não é ele o objeto deste vil ataque, mas as pautas que ele representa, além, naturalmente, do fato de que as represente fisicamente enquanto homem negro. O que querem os que o atacam, assim como os seus cúmplices que os publicam e acolhem, é “apagar a história das pessoas“, “comprometer o futuro da luta pelos direitos humanos”. Almeida, como último guardião da última fortaleza, contudo, afirma que resistirá: “eu não vou deixar que isso aconteça”, “eu vou sempre lutar pela situação dos direitos das mulheres. E vou continuar lutando pelo futuro dessas pessoas”.

O argumento tem claramente a intenção de virar contra o acusador a imputação de imoralidade que é atribuída a ele. Quem esperava que ele se justificasse, minimizasse a gravidade das acusações ou simplesmente pedisse desculpas, frustrou-se. Em sua apologia, Silvio Almeida faz questão de lembrar a integridade do seu caráter e os méritos de sua luta, além de mencionar o sofrimento que a acusação lhe causa. Com isso, prepara a audiência para sua estratégia retórica fundamental, que consiste em mostrar que ele é acusado de malfeitos não por ter feito algo errado, mas pelas coisas certas que é (homem negro comprometido e de destaque) e que faz (como campeão da causa dos Direitos Humanos). Defender Almeida, absolvê-lo das injustas acusações e punir os seus acusadores é, a essa altura do argumento, o mesmo que defender os Direitos Humanos e, inclusive, os direitos das mulheres.

O discurso falhou

Este é um caso de apologia que falhou. Não se pode dizer que tenha falhado por razões retóricas, embora para muitos que lhe atribuíram uma devida presunção de inocência, o previsível recurso à “cartada do homem negro” e a rápida vitimização tenha causado uma má impressão. A outros, o autoelogio pode ter parecido excessivo. E o conjunto todo soou como um banal e típico discurso que qualquer acusado faria quando não quer simplesmente assumir a culpa que lhe é imputada.

A apologia é um discurso de sobrevivência; Almeida parece ter se esquecido disso. Profissionais de comunicação de crise têm mais um exemplo de alguém que acredita que, porque fala bem, pode cuidar da própria defesa pública, mas fracassa.

Mas a apologia falhou mesmo, acredito, por duas razões. Primeiro, por causa do depoimento em primeira pessoa, depois publicado, da professora que descreveu um episódio de agressão sexual por parte de Almeida. Há momentos em que a mais linda e coerente das histórias se vê assaltada e destruída por fatos brutos.

A lâmina da guilhotina identitária é sedenta e precisa ser saciada: iniciada a contenda com a denúncia da transgressão, um pecador precisava ser punido.

A segunda pode parecer brutal, mas juro que é do mais cândido realismo político. A lâmina da guilhotina identitária é sedenta e precisa ser saciada: iniciada a contenda com a denúncia da transgressão, um pecador precisava ser punido. Ou ela ou ele. Coube a ele.

O escândalo teve todos os componentes das cerimônias públicas de purgação de pecadores segundo o rito identitário: identificação da falha moral, pré-julgamento rápido e sem presunção de inocência, humilhação pública do penitente à espera de uma “mea culpa” que não veio, sacrifício litúrgico para expiação do mal.

Curiosamente, porém, como quem estava sendo considerado em situação de pecado era um dos sacerdotes do culto, por algum tempo se hesitou sobre qual era mesmo a violação a ser castigada, isto é, se a falta a ser punida era mesmo uma ofensa sexual contra mulheres ou uma perseguição a um homem negro de destaque na vida pública. Vencida a breve crise, contra o partido de Silvio Almeida, o resto foi só mais uma jornada normal de destruição de persona pública, ainda que desta vez o ícone destruído tenha sido justamente Mister Racismo Estrutural.

Afinal, como já disse neste espaço mais de uma vez, a política identitária repousa inteiramente em quatro pilares: antagonismo, vigilantismo, denuncismo, punitivismo. As controvérsias não acontecem por acaso ao redor dos identitários, assim como as ondas de denúncia de violações, a busca ativa por escandalização pública e os eventos de humilhação e punição não são episódios eventuais. Não há, nunca houve política identitária sem esses elementos.

A única novidade nesse caso é que, por acaso, não havia um culpado nitidamente inscrito em uma classe dos culpados habituais. Sim, Silvio Almeida é homem, mas é homem negro e um ícone da classe das vítimas da opressão, o que são atenuantes consideráveis ao seu pecado original. Por estarem dessa vez a vítima e o algoz do mesmo lado da trincheira, a hesitação foi um pouco maior do que costuma ocorrer antes das liturgias de envergonhamento público. Mas, no final das contas, despido de suas vestes e insígnias identitárias, retiradas todas as suas prerrogativas, Almeida foi devolvido à sua condição de mero e imperdoável opressor.

O governo foi correndo buscar outra “poster person” para representar os oprimidos, cuidando para que desta vez fosse uma mulher. Vida que segue, página virada, a virtude prevaleceu mais uma vez. Menos para Silvio Almeida, cujo capital reputacional, diretamente associado às lutas e pautas identitárias, dificilmente será recuperado depois de ter recebido no corpo a marca de macho agressor sexual, independentemente de isto ser verdadeiro ou não.

A imagem pública é hoje um ativo de extrema importância para carreiras, projetos de vida e existência social, e é justamente por isso que a máquina identitária de trucidar reputações se tornou socialmente tão relevante e um poder moral e político tão temido por todos. Silvio Almeida terá que lutar para garantir sua absolvição, se possível, ou terá que se reposicionar politicamente se não quiser ficar para sempre como um pária social em território identitário. Afinal, os libelos identitários costumam ser perpétuos.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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