Não normalizarás

Considerar normal “o inaceitável” é ceder moralmente, aceitando-o como parte do cotidiano, do permitido

As polícias morais existem para vigiar e punir as violações das interdições do grupo. Hoje, há mais proibições morais do que nas antigas fábulas. Chapeuzinho Vermelho era livre para fazer o que quisesse, mas, como adolescente na flor da idade, não devia desviar-se do caminho, especialmente se fosse convidada por lobos gentis e prestativos. João e Maria tinham a vida livre dos meninos do campo, mas nunca deveriam se aproximar de estranhas velhinhas solitárias, muito menos aceitar as guloseimas oferecidas por elas, ainda menos se a própria casa fosse a maior das gostosuras.

Aliás, uma boa história não começa sem que uma tentadora interdição, apresentada como prólogo, seja imediatamente violada pelos protagonistas. O restante é a aflição de lidar com as consequências da Grande Desobediência, que não só colocam os responsáveis em grande perigo, mas frequentemente afetam toda uma comunidade, senão a raça humana inteira. Não pagamos todos até hoje porque o rebelde Adão, instigado, não conseguiu respeitar a única proibição que lhe foi dada — não comer do fruto da árvore do bem e do mal?

Dos mitos às fábulas e das fábulas às narrativas políticas, são apenas dois passos, e lá estamos novamente diante de vetos, proibições e tabus, mesmo que não acreditemos mais em mitos ou fábulas. Aprecio particularmente uma proibição muito em voga: não normalizarás.

As formas podem variar e os objetos necessariamente são diversos, dependendo da origem política da interdição. A esquerda adota a fórmula “Não normalize a extrema direita”; os identitários progressistas completam a lista com itens inaceitáveis: não se pode normalizar a homofobia, o racismo, o patriarcalismo, a misoginia, a transfobia, o capacitismo, o etarismo, etc.

A direita conservadora, naturalmente, também tem o seu Index Prohibitorum, embora formulado de outro modo: “Nunca vou considerar normal ____”, seguido de algum inaceitável moral. Na minha coleção, aprecio particularmente a fábula dos “barbudos se beijando”: “Digam o que quiserem de mim, mas nunca vou considerar normal dois barbudos se beijando.” Há também “essas sem-vergonhices de hoje em dia”, que frequentemente incluem algum comportamento homossexual, o aborto ou alguma forma de secularismo.

Normalizar ou considerar normal “o inaceitável” é, desta perspectiva, ceder moralmente, despir o que há nele de escandaloso, repugnante, degradado, corrompido, aceitando-o como parte do cotidiano, do permitido. Isso significa aceitar que a norma pode ser violada por todos, que o pecado não é mais pecado, que o que era “contra natura” agora é natural. A interdição era a pedra angular que sustentava a construção, a bússola moral da comunidade; se removida, não desabará tudo? Vamos encontrar novamente o Norte moral, ou a desorientação ética destruirá o edifício de nossas crenças?

A Umwertung nietzscheana — a transformação ou criação de novos valores — é coisa para loucos ou fortes, como se sabe.
Já imaginou seu filho vendo dois barbudos se beijando em público como se fosse a coisa mais normal do mundo? E velhinhas assistindo a dois homens se beijando na novela das oito? Onde isso vai parar?

Há sempre um vulnerável no cenário hipotético, aquele que precisa ser protegido da normalização do comportamento inaceitável.

Note-se que há sempre um vulnerável no cenário hipotético, aquele que precisa ser protegido da normalização do comportamento inaceitável, enquanto quem profere a sentença, intelectualmente superior, naturalmente não será afetado pelo que vê. Se reprova, fá-lo apenas por princípios e para evitar que influencie os outros.

Não importa que metade dos eleitores nos Estados Unidos, por dois ciclos eleitorais consecutivos, tenha considerado votar em Trump uma opção natural, e provavelmente repetirá o ato pela terceira vez. Não interessa se, no Brasil, metade do eleitorado viu em Bolsonaro uma opção política normal e óbvia em duas eleições presidenciais consecutivas. A interdição se torna ainda mais nítida e indiscutível para a esquerda e progressistas: não se pode normalizar a normalização já efetuada pelos eleitores acerca da extrema direita. Metade do eleitorado decidiu transformar uma trilha no meio do mato em uma das vias principais por onde trafegar, mas, em hipótese alguma, e sem cometer um pecado mortal, pode-se normalizar a extrema direita. Este tabu não pode ser profanado.

Naturalmente, é legítimo contestar a definição do “inaceitável” que o grupo adota. Às vezes, trata-se exatamente disso quando à pergunta “o que mais falta ser mostrado depois do beijo gay?” e a resposta óbvia me parecer ser “o sexo”. Mas esse sou eu, um liberal a não mais poder, diante do choque dos conservadores ante a homossexualidade naturalizada pelo drama televisivo. Mas um conservador não chocado poderia explicar à sua comunidade que, independentemente do que se considere certo sobre a homossexualidade ou o aborto, por exemplo, há homossexuais e pessoas que abortam. E que, em uma sociedade pluralista e tolerante, não há meio legítimo de evitar que isso aconteça. Em uma democracia digna desse nome, deve haver inevitavelmente lugar para abortistas e homossexuais. Quem for contra o casamento gay tem o legítimo direito de não casar com uma pessoa do mesmo sexo; não tem, no entanto, o direito de impedir que quem o deseja exerça tal direito. Conserva, porém, o direito de continuar acreditando que se trata de algo errado.

Portanto, frequentemente, quando alguém diz que uma interdição não foi bem negociada com a realidade, que a regra moral chegou tarde demais, pois metade dos eleitores já cruzou a porta proibida, nem sempre se trata de contestar a “inaceitabilidade” definida pelo grupo. Pode consistir, literalmente, em afirmar que a interdição perdeu o sentido diante dos fatos, que houve uma mudança no mundo que tornou a proibição irrelevante e, de certo modo, até mesmo arrogante, ao conceder a um lado o direito de negar o reconhecimento do outro. Mas, mesmo assim, pode ser legítimo reconhecer que premissas ou aspectos incluídos na perspectiva contestada continuam inaceitáveis, embora possam ser tolerados desde que contidos nos limites estritos da democracia liberal.

Vitórias eleitorais não são salvo-condutos para remodelar o Estado e a constituição ao bel-prazer do vencedor.

A extrema direita inclui em seu pacote ideológico e em seu repertório retórico uma contestação a muitos aspectos fundamentais da democracia liberal e um ataque direto ao seu projeto institucional. Ganhar eleições, contudo, não concede o direito de implementar esses elementos; vitórias eleitorais não são salvo-condutos para remodelar o Estado e a constituição ao bel-prazer do vencedor.

Em muitos países, instituições, intelectuais, jornalistas e democratas em geral resistiram à desdemocratização e à violação de direitos e garantias após vitórias da extrema direita. Em outros, não. As democracias estão sendo postas à prova, assim como as convicções democráticas. Mas não será com interdições como “não aceite como normal a vontade de metade da população” que escaparemos da situação em que nos encontramos. Talvez, inclusive, o nominalismo mágico por trás da ideia de que “se a gente não disser o nome Daquele Cujo Nome Não Pode Ser Pronunciado, ele não terá poder sobre nós” seja o verdadeiro problema. Talvez encarar a situação com pragmatismo, sem esperar que apenas reforçar a fé do nosso grupo e demonizar os que votam na extrema direita seja uma forma mais eficiente de lidar com a situação.

Mas, não. Há quem defenda que, se repetirmos todos os dias que a ascensão mundial da extrema direita é um “movimento catastrófico global de consolidação autoritária e de esgotamento terminal das ilusões da democracia liberal” (Vladimir Safatle), o monstro irá embora, e as pessoas deixarão de votar nele. Que se “a classe intelectual” disser que se trata, sim, de “fascismo”, isso irá “sensibilizar a sociedade para os riscos e tendências reais que ela enfrenta atualmente.” Caso contrário, acontecerá o pior: deixar de “tensionar a sociedade com uma visão alternativa de transformação e ruptura,” com a possibilidade de revolução, portanto.

Pobre e vulnerável sociedade

Pobre e vulnerável sociedade, que passou pelo trumpismo e pelo bolsonarismo, inclusive com uma pandemia no meio, para depois votar exatamente do mesmo jeito que há quatro anos. E quão poderoso o papel dos intelectuais, capazes de “sensibilizar” uma sociedade que seguramente está muito disponível para escutar e acolher em seu coração as exortações dos intelectuais progressistas sobre como serão as principais vítimas de suas escolhas fascistas. A mídia e os intelectuais são, naturalmente, a causa de tudo isso, não a vontade de adultos livres e capazes. O povo nunca tem culpa; é sempre vulnerável, parvo e incapaz, precisando ser protegido dos sedutores e manipuladores.

Mas, uma vez violada a interdição, o que acontece com o transgressor? Será comido pelo lobo sedutor, como a ingênua menina do capuz vermelho, ou expulso do paraíso? Nas novas fábulas políticas, ele se transforma em cúmplice e colaborador de um regime de pecado, corrupção moral e sofrimento que inevitavelmente surgirá após a normalização. Um verdadeiro inferno de barbudos se beijando em moto continuo, a imediata implantação do fascismo, o horror de um Estado homo/transfóbico, misógino, patriarcal e racista, autorizado e legitimado pelo simples ato de reconhecer que aquilo que antes era inaceitável agora se tornou normal.

Na mesma linha de pensamento, surge um segundo mandamento: “Não dê palco ao inimigo”. “Palco” aqui significa visibilidade, partindo da premissa de que aquilo que é visível, em algum momento, pode também se tornar legítimo. A ideia por trás dessa proibição é que, se ninguém ouvir falar de determinado comportamento, atitude ou doutrina inaceitáveis, esses elementos não poderão influenciar outras pessoas. Censurar atos ou relatos seria o ideal; na ausência dessa possibilidade, pelo menos não participar da cadeia de sua propagação já serviria para atenuar seus efeitos.

O problema com essa linha de raciocínio é que a admoestação geralmente chega tarde demais. Quando algo chega ao meu conhecimento, é porque já se espalhou por uma rede de transmissão tão eficiente que alcançou até mesmo alguém que nunca se exporia, por escolha própria, a esse tipo de conteúdo. Além disso, no mundo digital, nenhum conteúdo simplesmente desaparece porque deixou de ser mencionado; ele permanecerá adormecido, arquivado, pronto para ser reavivado, reciclado e recirculado, como novo, para cumprir sua sina.

O terceiro mandamento – “Não dê munição ao inimigo” – é de natureza distinta, embora complementar. Ele proíbe o pecado de criticar, acusar ou atacar “o nosso lado”, independentemente de qual seja, sob a certeza de que o mal se beneficiará de nossa divisão e fraqueza. Também são proibidos os excessos ou erros que possam nos comparar aos nossos adversários ou que ilustrem os espantalhos que o outro lado cria a nosso respeito para nos difamar ou demonizar.

Essa lista poderia ser ampliada com muitos outros mandamentos para a guerra entre o bem e o mal que domina a política contemporânea. “Não negocie princípios” (ceder em qualquer ponto é uma traição aos valores do grupo), “não dialogue com fascista/esquerdista” (não se fala com quem está irreparavelmente corrompido), “não perca a narrativa” (controle a narrativa pública e não permita que ela seja revertida), “não mostre fraqueza”, “não questione o líder”, “não humanize o adversário”, “não lave roupa suja em público” são exemplos de interdições ativas nas lutas tribais. “Não normalize o inimigo”, portanto, é apenas mais uma das estratégias políticas de natureza moral em uma suposta guerra em curso.

As interdições valem, naturalmente, apenas para a comunidade de moral e fé que as estabelece e que pode punir as violações por meio de excomunhões e penitências. Em sociedades pluralistas, contudo, é mais provável que elas tenham a mesma eficácia das regras daquele meme sobre dançar juntinhos: é proibido normalizar, mas, se quiser, pode.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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