Edição de Sábado: Ciência psicodélica

“Entre 2012 e 2022, interrompi por conta própria minha medicação controlada em três ocasiões. Foram as vezes que tive crises muito profundas. Tentei de fato me matar*. Até que a psiquiatra sugeriu a terapia com cetamina”, lembra João Victor Romariz. Convivendo com a depressão desde 2012, o jovem encontrou na substância psicodélica a “virada de chave”. Velha conhecida da medicina, sua primeira molécula foi sintetizada em meados de 1960 pelo professor Calvin Lee Stevens, que ministrava química orgânica na Wayne State University, em Michigan, nos Estados Unidos. Em consultoria para os laboratórios Parke & Davis, recebeu a missão de trabalhar com a fenciclidina, um anestésico fortíssimo de alto risco ao sistema respiratório. Era único o objetivo: criar outro inibidor tão potente quanto, mas mais seguro. Ao isolar o composto CI-581, Stevens chegou à partícula promissora.

Em meio aos campos de batalha da Guerra do Vietnã, ela se popularizou na década seguinte. Recebeu dos combatentes o carinhoso apelido de “droga amiga”, já que age no sistema nervoso central aliviando quase instantaneamente a dor de ferimentos graves. Foi entre os movimentos da contracultura, no entanto, que cativou novas amizades — e uma inimizade determinante, a de Richard Nixon. Seu governo deu início à conhecida (e falida) política de guerra às drogas. Assim, tais substâncias foram proibidas. Pesquisas sobre suas aplicações caíram no esquecimento por décadas. Contudo, os alucinógenos não deixaram de circular na ilegalidade, inclusive a cetamina. E ainda hoje, devido à sua capacidade de alterar a consciência ao provocar a sensação de desconexão com a realidade e com o próprio corpo, ela figura como uma das principais club drugs, também chamada de Special K, Key, Keyla ou Keta.

Com a virada do milênio, voltou a fazer a cabeça dos cientistas. Além de dessensibilizar pacientes em estado crítico, a droga revelou-se uma grande aliada no combate à depressão resistente, como a enfrentada por Romariz. Ele resgata na memória sua primeira sessão. Internado na Santa Casa de Misericórdia, no centro de Maceió, recebeu a injeção de 80 ml do líquido na parte inferior da barriga, um mililitro por quilo. “Perdi completamente o controle. Tentei levantar as mãos e não consegui. O mesmo aconteceu nas tentativas de erguer o pé, mover a cabeça ou falar. Eu realmente viajei. É bem aquele estereótipo de alucinógeno mesmo: via coisas coloridas, presenciava a música tomar formas geométricas e o tempo passava lento. Me senti feliz pela primeira vez em muito tempo, porque eu simplesmente não conseguia ter nenhum tipo de pensamento negativo durante o procedimento. Parecia que a partezinha do cérebro que carrega os problemas estava bloqueada.”

A médica havia lhe recomendado sete sessões com semanas de intervalo, mas a partir da terceira as sensações tornaram-se pesadas. “Entrei na paranoia de que estava perdendo constantemente o controle sobre meu corpo. Foi quando tive uma epifania: nesta sessão, enxerguei o medo de me perder. O meu senso de autopreservação estava ali, havia voltado.” Por isso, ele não terminou as sete administrações. Entendendo que “já estava bem”, retomou o uso do antidepressivo convencional e se mantém estável até hoje.

Começo, meio e fim

Essa “partezinha” que parecia bloqueada para Romariz pode ter sido reativada pela forma como os psicodélicos atuam no cérebro. “Os estudos têm indicado que esses alucinógenos promovem a criação de neurônios. Além disso, e sobretudo, impactam a neuroplasticidade. Isto é: criam novas conexões sinápticas com os velhos neurônios, como a música que fala sobre tocar canções inéditas no violão antigo. Essa reconfiguração cerebral abre diferentes perspectivas para que os pacientes ressignifiquem seus traumas e hábitos”, explica o psiquiatra Wilson Gonzaga, coordenador médico do Instituto Alma Viva.

A música a que Gonzaga se refere é Começo, Meio e Fim, do Roupa Nova, que foi tema da novela Felicidade, em 1991. “A vida tem sons pra gente ouvir. Precisa aprender a começar de novo. É como tocar o mesmo violão. E nele compor uma nova canção”, diz o hit. Para compreender o processo químico dos psicodélicos na mente, é necessário pensar como essas substâncias impactam as ligações neurais.

Compor uma letra, assistir à novela ou ler esta reportagem: tudo é resultado da interação entre neurônios. Cada ser humano possui cerca de 86 bilhões deles, que se comunicam constantemente, processando impulsos do ambiente e do próprio organismo. A conexão entre essas unidades básicas da estrutura cerebral ocorre como uma troca de mensagens. Quando um neurônio pré-sináptico é ativado, inicia-se a conversa liberando neurotransmissores, como glutamato, serotonina, dopamina e GABA, que se conectam a receptores específicos no neurônio pós-sináptico, transmitindo o recado e concluindo a sinapse.

Alucinógenos, independentemente de como são ingeridos, participam ativamente dessa interação neuronal, encaixando-se nos receptores dos neurônios de maneiras diversas. Pesquisadores os dividem em duas grandes classes: psicodélicos clássicos e atípicos. O primeiro grupo inclui químicos que se ligam aos receptores 5-HT2A, responsáveis pela captação de serotonina. Tal junção faz aflorar sensações, com relatos de percepção de alegria, amor e até a libido. LSD, DMT e psilocibina são exemplos. Já a segunda classe, representada por substâncias como fenciclidina, cetamina, MDMA e Ibogaína, se caracteriza pela singularidade de sua atuação, afetando receptores opioides, colinérgicos, glutamatérgicos, além de também ativar o 5-HT2A.

De forma prática, as substâncias psicodélicas ajudam os neurônios a se comunicarem de maneira diferente, ativando receptores de serotonina e impactando a maleabilidade do tecido cerebral. Isso amplia as perspectivas para que os pacientes possam reavaliar seus traumas e hábitos sob novos ângulos.

Zona cinzenta

O tratamento por infusões de cetamina chegou ao país recentemente, embora não seja aprovado oficialmente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo a autarquia, a substância está sujeita a controle especial, inserida na Lista B1 pela portaria 344 /1998. A instituição apenas regulamentou, em 2020, o primeiro remédio com o mesmo princípio ativo. Os profissionais da saúde que indicam a terapia intravenosa apoiam-se em um parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) que atestou a eficácia do uso off label em 2021.

Outras substâncias promitentes no contexto terapêutico acompanham a cetamina sob a zona cinzenta de regulamentação. Dietilamida do ácido lisérgico (LSD), MDMA (ecstasy), psilocibina (encontrada nos “cogumelos mágicos”), dimetiltriptamina (DMT, presente na ayahuasca), peiote e ibogaína integram esse rol. As regras variam mundo afora. No último ano, a Austrália sagrou-se a primeira nação a regular prescrições de psilocibina e MDMA para tratamento de estresse pós-traumático (TSPT) e depressão resistente. Ao anunciar o aval, a Administração de Produtos Terapêuticos da Austrália (TGA) declarou que ambos “são relativamente seguros quando administrados em um ambiente medicamente controlado sob a supervisão de profissionais de saúde adequadamente treinados e nas dosagens que foram estudadas em ensaios clínicos”.

Canadá e EUA dão passos mais contidos, expandindo lentamente seus acessos. O país liderado pelo premiê Justin Trudeau proíbe a maioria dos psicodélicos com base na Lei de Substâncias Controladas e Drogas. Mesmo assim, a Health Canada, o órgão governamental responsável pela política de saúde, abriu exceção em 2022 para que médicos possam solicitar acesso aos compostos.

Já nas terras do Tio Sam, as normas diferem entre Estados. Em 2018, a Food and Drug Administration (FDA, órgão regulador equivalente à Anvisa nos EUA) classificou a psilocibina como “terapia inovadora” para o tratamento de distúrbios mentais resistentes. Dois anos depois, o Oregon se tornou o primeiro território a aprovar seu uso terapêutico. Todavia, para tratar TSPT, os EUA parecem ir no sentido contrário ao da Austrália. A FDA analisa dois ensaios clínicos de fase três com ecstasy aos quais 200 pacientes com o transtorno foram submetidos. As pesquisas demonstraram que 80% obtiveram melhoras significativas nos sintomas, evolução que persistiu até dois anos após o término dos testes.

Ontem o órgão decidiu não aprovar o tratamento de TSPT com MDMA. Seguiu o comitê de conselheiros que havia votado previamente contra a terapia. O motivo? A metodologia. No ensaio clínico duplo-cego, parte dos voluntários ingeriu doses de MDMA, outros receberam placebo. Por conta da alteração de consciência, os conselheiros justificaram que os voluntários são capazes de identificar qual substância receberam, o que poderia enviesar as respostas.

A decisão prévia não é novidade. A administração de placebo em testes duplo-cego é um requisito desafiante para a ciência psicodélica desde a década de 1950. Por isso, a validade desse padrão ainda é alvo de discussões. E é apenas uma das adversidades que se apresentam no caminho para a regulação.

Na terra do Santo Daime

Em território tupiniquim, o cenário não é tão distinto. Ao passo em que a cetamina já se apresenta como uma tímida alternativa, tratamentos com MDMA e psilocibina são vetados. O contrário se dá na área da pesquisa. Tradicionalmente, o Brasil desponta nos estudos envolvendo a ayahuasca. A razão está vinculada à origem do chá. O líquido marrom de gosto amargo, extraído do cipó mariri e das folhas da chacrona, é consumido tradicionalmente pelos povos amazônicos. Mais adiante, a partir do século 20, a infusão psicoativa se difundiu entre a população não indígena, que transmutou o uso dentro de novas religiões, como o Santo Daime.

“Não tem nenhum país que tenha pesquisado mais do que o Brasil neste campo. Até porque a ayahuasca é autorizada para consumo ritualístico, o que facilitou as investigações. E, de certa forma, também impulsionou o interesse de pesquisadores que iniciaram com a bebida e agora se dedicam a outras substâncias”, analisa o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, cofundador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Junto com Tófoli, o neurocientista Eduardo Schenberg está na vanguarda da ciência psicodélica brasileira. Uma experiência pessoal deu o pontapé inicial à jornada acadêmica. “Estava na universidade quando experimentei o chá no Santo Daime. Foi impressionante. Faz 24 anos e ainda lembro exatamente o impacto da vivência. Também foi um baque voltar para a faculdade. Descobri que aquilo não era assunto em nenhuma aula. Na biblioteca, só encontrei materiais de história ou antropologia. Nada na biomedicina. Ficou claro que havia muito potencial para estudo científico.” Em 2011, ele fundou o Instituto Phaneros — que preside. A instituição é voltada à difusão de conhecimentos sobre o papel dos psicodélicos na saúde mental. Apesar de já ter conseguido realizar uma pesquisa com MDMA para tratar TSPT, desde 2022 o instituto tem pedidos de nova pesquisa com a substância negados pela Anvisa, o que o levou a judicializar o caso.

A ayahuasca foi colocada à prova no Laboratório de Neuroimagem do Hospital Universitário Onofre Lopes, vinculado ao Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe/UFRN). Para a investigação inédita, a instituição recrutou voluntários já acostumados a consumir a bebida em cerimônias religiosas. Após a ingestão, eles passaram pela ressonância magnética. O exame verificou alterações no sistema visual e chegou à conclusão de que, sob o efeito do DMT, é indistinguível a atividade visual de olhos fechados ou abertos. Uma vez que a visão é um dos sentidos que norteiam a noção de realidade, “enxergar de olhos fechados” permitiria encarar os mesmos problemas a partir de outros ângulos. Com isso, a própria noção de realidade pode ser colocada em xeque. “Há quem fale em alucinação, mas nós não tratamos assim porque o termo evoca uma conotação de que a vivência é irreal. Embora não seja material, pode-se entender como uma espécie de sonho acordado. Aquilo faz parte da realidade”, explica Schenberg.

Os especialistas são unânimes: não é qualquer pessoa que pode se submeter ao tratamento. A contraindicação engloba pacientes com episódios de surtos psicóticos ou histórico familiar e diagnóstico de bipolaridade e/ou esquizofrenia. Aliás, no contexto terapêutico, todos os psicoativos devem ser aplicados após recomendação médica, em hospitais ou clínicas especializadas, e na presença de profissionais da saúde. Tófoli ressalta a recomendação: “se o componente da psicoterapia é importante para quem está tomando antidepressivos, é fundamental para os que optam pelos psicodélicos. Porque a pessoa precisa significar as questões que aparecem. Por isso não falamos apenas no uso, mas em terapia assistida por psicodélicos.”

Ainda que apresente resultados animadores, a terapia assistida por psicodélicos deve demorar para se tornar popular nacionalmente. Para acelerar o processo, seriam necessários alguns fatores como pressão por parte da sociedade, interesse do mercado e investimento em pesquisa, que refletem diretamente na regulação. O presidente do Phaneros defende que é preciso desmistificar o tratamento já que “na minoria das sessões você vai receber a substância psicodélica — e não necessariamente se sentirá bem de imediato. É claro que há um interesse diminuído da indústria. A proposta é trocar comprimidos diários, ingeridos a cada oito ou 12 horas, por três ou quatro medicamentos aplicados ao longo de um ano. Isso diminui muito o lucro — a não ser que os preços sejam elevadíssimos, o que restringiria mais uma vez o acesso.”

A perspectiva tampouco é favorável para a ciência. Até 2019, os investimentos para pesquisa na área eram escassos, saíam majoritariamente dos bolsos de filantropos e fundações privadas que firmavam parcerias com universidades. Com a pandemia, o jogo virou. O setor de biotecnologia foi impactado por um fluxo de investimento enorme. Companhias expandiram sua força de trabalho, startups surgiram pelo globo. A bolha estourou e os recursos voltaram a minguar. Segundo relatório da MarketDigits divulgado no fim de abril, o mercado de psicodélicos deve saltar de US$ 3,6 bilhões em 2022 para US$ 4,6 bilhões em 2030. O crescimento anual é de 13,5%, bem mais conservador que o esperado.

Ondas psicodélicas

A primeira grande onda de psicodélicos iniciou-se, justamente, com a exploração terapêutica. Desenvolvida em 1943 pelo químico suíço Albert Hofmann, que trabalhava para a farmacêutica Sandoz, a droga passou a ser ofertada na forma do medicamento Delysid, chegando a médicos, pesquisadores, psicólogos e… hippies — que viajavam com o recém-descoberto remédio alucinógeno. Logo a droga desembarcou no Brasil. A revista Veja registrou, em 11 de fevereiro de 1970, uma das primeiras apreensões de LSD no território nacional. A história com o sintético marca a transição para a segunda onda: a experimentação. Se na transição dos anos 1960 para os 1970 os psiconautas se divertiam com o ácido, já fazia mais de duas décadas que a substância integrava a rotina clínica de alguns psiquiatras brasileiros, como o médico Jamil Almansur Haddad. Para este fim, a droga chegou ao Brasil nos anos 1950, sendo receitada para tratar condições como a depressão. Em muitos casos, as aplicações ocorriam diretamente na veia.

Enquanto ainda explorávamos seus diversos potenciais, o proibicionismo engoliu o globo na terceira onda. A Sandoz interrompeu a produção do LSD e, em 1965, o presidente Lyndon B. Johnson vetou seu uso em todo o território americano. Então, em 17 de junho de 1971, Nixon fez um emblemático discurso no Congresso elencando o uso abusivo de drogas como o inimigo número um da nação, o que culminou em uma repressão ainda mais severa. Essa época viu um aumento significativo na criminalização e nas penas associadas ao tráfico e posse de LSD e outras drogas psicodélicas, influenciando uma postura global mais dura em relação às drogas.

Como era de se esperar, a proibição também chegou ao Brasil nos anos de chumbo da ditadura militar. Durante décadas, pesquisas científicas sobre essas substâncias foram limitadas, sendo revigoradas apenas próximo à década de 1990, quando iniciaram-se estudos mais sistemáticos sobre seus potenciais terapêuticos – já na quarta onda. O renascimento psicodélico ganhou força para valer a partir dos anos 2000. O período chancela a quinta onda, onde ainda nos encontramos, caracterizada pela ampla pesquisa e movimentos de legalização.

Ainda há uma longa estrada a ser percorrida. “Para manter a piada da regulamentação, já é amanhã na Austrália. Mas é impossível prever quando isso vai virar de vez e ser incorporado às terapias do SUS, por exemplo. Os cenários políticos e culturais, que mudam com frequência, influenciam muito nas discussões”, conclui Tófoli.

São muitos avanços, mas o ponto fundamental para pensar em qualquer tipo de regulação dessas substâncias é levar para o debate público evidências científicas. Por isso, é tão importante a volta da pesquisa, e o Brasil, que já tem tradição nos estudos com ayahuasca, pode ser um dos expoentes da investigação com outros psicodélicos.

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Pense e dance

Estou deitado, de olhos vendados em um círculo. Cai uma chuva fina e faz frio na Serra do Mar, próximo ao litoral do Rio. É um domingo de maio. Estou abrigado em uma grande estrutura coberta e aberta dos lados, um círculo portentoso feito com vigas de madeira que sustentam uma cobertura alta com uma claraboia ao centro. É quase uma homenagem à tipi– a tenda dos indígenas norte-americanos – mas com um desenho arquitetônico moderno. Ao redor, a Mata Atlântica. Os sons ora estão perto, ora estão distantes. Sem poder ver, tento intuir os instrumentos. Um chocalho, um xilofone, algo com areia, um tambor, uma gamela, blocos de madeira? Não tenho muita certeza de nada, me entrego às sensações provocadas pelo estímulo sonoro. Entro em um relaxamento profundo. Já uma meia hora dentro dessa viagem sóbria, alguém me cobre, aí percebo que eu, que mal sinto frio normalmente, estava precisando desse calor, ou talvez do cuidado. Minha cabeça está dividida entre curtir o momento presente durante a sessão de soundhealing — uma terapia toda criada ao redor da percepção dos sons, dada por duas participantes do retiro em que me encontro — e em revisitar minhas experiências do dia anterior, que ainda reverberam naquela manhã restauradora.

Psilodancing é o nome dado ao retiro. É apenas a segunda vez que ele acontece. Foi pensado por um grupo de psiconautas de longa data. É uma turma fechada, só se chega a ela por convite. Fui com o amigo que me chamou. Ele já havia participado da edição anterior, ocorrida um ano antes. É um retiro de três dias, chega-se na sexta à tarde e a programação se estende até o fim da manhã de domingo. O principal é a vivência com psilocibina, neste caso tomando o cogumelo enigma num contexto ritualístico, conduzido por uma trilha sonora para dançar.

Além de cada convite ter de ser feito com a aprovação prévia dos organizadores, antes de participar você precisa fazer uma anamnese, para que as suas condições de saúde sejam avaliadas e para que os guias dessa viagem também vejam se há algum fator que o impeça de participar, como ter tido episódios de surtos psicóticos ou diagnósticos de bipolaridade ou esquizofrenia na família, por exemplo. Também com base nessas informações é decidida a dose recomendada para você. Além disso, claro, era preciso pagar a bagatela de R$ 2,6 mil por pessoa para desfrutar desse fim de semana psiconáutico.

Saí de São Paulo na sexta-feira, com três amigos e chegamos no final da tarde. Nos instalamos em duas casas diferentes. A propriedade abriga uma série de construções, a maioria delas com uma arquitetura integrada à natureza e com preocupação ecológica. A que fiquei com meu amigo e uma terceira pessoa que não conhecia previamente poderia facilmente passar por uma casa sueca, não fosse a sua implantação em meio à Mata Atlântica.

Divididos em pequenos grupos espalhados pelas diferentes casas, as cerca de 30 pessoas que participaram do retiro se encontravam nas atividades conjuntas e durante as refeições, com a melhor comida vegetariana que já provei na vida. Para ter a melhor experiência com o cogumelo, a proposta era seguir uma dieta sem carne e sem álcool. O primeiro encontro com toda a turma foi no jantar da sexta. Embora me sentisse ainda um outsider, ao ver as pessoas chegando, comecei a ficar mais tranquilo. Se não era repleto de amigos, havia muitos rostos conhecidos. Pessoas com quem comecei minha caminhada com a ayahuasca há mais de 15 anos, gente que já havia cruzado por conta do trabalho, amigos de amigos. Coisa desse mundo de renda mal distribuída. Grande parte das pessoas já tinha passado dos 40 anos, mas havia também alguns jovens. Boa parte já vinha de vivências psicodélicas anteriores, salvo uns poucos neófitos, como uma médica com quem conversei bastante, que provou a psilocibina pela primeira vez no retiro, numa dose bem comedida.

No primeiro jantar, foram dadas as coordenadas do retiro. No sábado de manhã, o dia começaria com uma sessão de yoga, depois teríamos um brunch e o fim da manhã livre para explorar as sete cachoeiras e poços do condomínio. Às 14h começaria de fato a experiência do Psilodancing, indo até as 20h, com a possibilidade de um after até as 21h. O dia se encerraria com um jantar. Já para o domingo, a programação era de três atividades, tempo livre para as cachoeiras, soundhealing e um brunch de despedida.

Com a guarda baixa

Como quase sempre acontece comigo quando tenho propostas desconhecidas diante de mim, baixei a guarda e decidi que iria abraçar a programação sem deixar que o crítico ranzinza que também habita este corpo se manifestasse. A primeira surpresa foi a sessão de yoga. Pratiquei yiengar yoga por muitos anos, mas na manhã de sábado a proposta era diferente de tudo o que o meu tapetinho já tinha visto. Batizada de esquizo yoga, era uma prática muito mais interativa, com exercícios que mesclavam a questão meditativa da prática indiana com exercícios mais soltos, que pareciam vir de ensaios de teatro. Feitos em conjunto, acabaram por quebrar o gelo do grupo. E a visita às cachoeiras depois de comer foi fundamental para que chegássemos ao principal já sabendo um pouco sobre quem estava conosco nessa aventura.

Às 14h descemos para a área onde ia acontecer o Psilodancing, a mesma tenda moderna onde aconteceu o soundhealing no dia seguinte. Em um canto, o sistema de som, que deixava muito clube de São Paulo no chinelo. De um lado da mesa do DJ, uma mesinha com frutas, água e shurb, uma bebida fermentada a partir do vinagre, prima do kombucha. Do outro lado, um pequeno altar budista.

Antes de começar, duas recomendações e uma obrigação. A primeira era para ninguém se afastar muito da pista de dança, e de jeito nenhum chegar perto da cachoeira mais próxima. Quem cansasse poderia ficar em uma das três áreas montadas ao redor da pista. A segunda era para respeitar a viagem de cada um. Estávamos prestes a entrar numa experiência de autoconhecimento e de transe, então, deixar seu companheiro dançar sem ser perturbado era fundamental. E a obrigação era de guardar os celulares numa caixa e só pegar de volta no fim da experiência.

Começamos os trabalhos com uma oferenda budista. Na sequência, a música começou e, com ela, a distribuição das primeiras doses. Eram lindos (e saborosos) bombons de chocolate, divididos em 3 tipos. Os com 0,25 gramas de enigma, os de 0,5 gramas e os de 1g. Comecei comendo este último. Ficando bem na minha, deixei meu corpo ainda com plena consciência se entregar à música, dançando devagar. A percepção do tempo é das coisas que mais se alteram quando você está sob o efeito da psilocibina, mas imagino que senti a brisa chegando depois de meia hora. Você precisa ingerir a dose total desejada numa janela de duas horas, depois disso, mesmo que tome mais, o corpo já não absorve do mesmo jeito. Cerca de uma hora depois já estava dentro da viagem de verdade e foi aberto o segundo round, para modular sua experiência a partir desse começo. Comi mais um bombom de 1 grama.

Aí a viagem acelerou. Quem estava no comando do som havia me dito que o enigma era perfeito para dançar. E de fato meu corpo parecia estar leve e incansável, entregue às ondas sonoras, a uma música eletrônica com um bpm (beats por minuto) agradável para essa turma 40 mais, com muitas tracks que dialogavam com a música indiana, com as canções xamânicas, às vezes bem “pacha mama”. Tudo embalado num beat de house e cheio de brindes sensoriais para mentes manifestas. Com o corpo em movimento, vieram as primeiras mirações, caleidoscópios coloridos, visitas de animais míticos, como uma serpente multicolorida com quem já havia dialogado em rituais de ayahuasca. As mirações iam e vinham, se quisesse acessá-las com mais potência, bastava fechar os olhos. Mas a Mata Atlântica também me chamava, e ficou em mim a sensação de ficar horas dançando no mesmo lugar, negociando a minha energia com a da natureza. Sem deixar de mexer o corpo, também tive muitos insights importantes sobre a minha vida.

Oito meses antes, tinha terminado um casamento de 27 anos. Dois meses depois disso, fui submetido a uma cirurgia cardíaca séria em que troquei uma válvula e fiz uma mamária. As duas coisas foram muito presentes durante essa meditação dançante. Revi meu relacionamento de cabo a rabo, as coisas boas e as ruins, e fui tomado por um sentimento enorme de gratidão por todos esses anos. Um sentimento de amor profundo. Também pensei muito no relacionamento em que estava entrando desde o Carnaval, e felicitei toda a sua potência. Por fim, estava tomado por uma alegria profunda de estar vivo, entre pessoas queridas, dançando sem parar, suado como nunca antes na vida, com os cabelos molhados com se tivesse mergulhado numa piscina. Esse transe forte durou até o começo da noite. Mais para o fim, comecei a voltar, a conversar com as pessoas mais próximas, trocando as primeiras impressões. Foi colocada em votação a realização do after. Ninguém queria sair da pista. Esticamos até umas 21h30, com os efeitos psicodélicos já bem amainados.

Sou uma pessoa que começou a se interessar pela psicodelia na adolescência, na virada dos anos 1980 para os 1990. Nesses anos tive muitas experiências recreativas, em diferentes contextos, de raves a viagens na natureza. Tenho também essa vivência com a ayahuasca, que tem se tornado bastante importante para eu me entender como pessoa nos últimos anos. O Psilodancing uniu um pouco dos dois mundos. Não era uma festa, mas tinha música eletrônica boa do começo ao fim, não tinha o rigor cerimonial da ayahuasca, mas um desejo de compartilhar uma energia coletiva, que não deixava de ser espiritual nem de ser voltada para o autoconhecimento. Dosando essas duas coisas, talvez tenha sido uma das experiências mais prazeirosas e ao mesmo tempo instigantes da minha vida. Ano que vem, não perco a terceira edição, torcendo para conseguir levar junto a minha namorada.

Indígenas e governo em descompasso

O nível de tensão na sala da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) na última terça-feira, durante a audiência de conciliação sobre o marco temporal, seria suficiente para que a reunião mudasse de nome. O ambiente se assemelhava mais a um ringue, no qual representantes dos povos indígenas se viam nas cordas, contra tudo e contra todos sentados à mesa. Alberto Terena, do Conselho Terena e coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), escutava em silêncio as tentativas de apaziguamento.

A primeira foi do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que dividiu os Poderes entre dois lados: “Judiciário e Executivo de um lado e o Legislativo de outro lado”, disse. Com isso, Barroso reforçou o entendimento já adotado pela Corte sobre a inconstitucionalidade do marco temporal, que prevê que indígenas só têm direito às terras que ocupavam no momento da promulgação da Constituição, em novembro de 1988. Depois veio o relator, ministro Gilmar Mendes, apontando que os protestos contra a audiência pedida por ele partiam de “vozes incapazes de compreender a função da jurisdição constitucional e de analisar a crise sob todos os ângulos”. E ainda reclamou: “rotulam essa mesa de debates como um bazar de negócios. Esquecem-se que não há verdadeira pacificação social com a imposição unilateral de vontades e visões de mundo”.

Foi a longa e repetitiva fala do juiz auxiliar Diego Viegas Veras, designado por Gilmar Mendes para o papel de conciliador, que tirou Terena do prumo. Veras apelou várias vezes à conciliação como forma de resolver o problema e esbarrou na avaliação de que os representantes do Executivo estavam ali defendendo os direitos dos indígenas. Alberto Terena não se conteve e interrompeu o juiz. “É assim que o senhor vê os povos indígenas? Como tutelados?”, protestou se levantando, como se fosse abandonar a audiência. Em vários momentos, Veras também lembrou o contexto político, amplamente desfavorável aos indígenas, visto que no Senado tramita a PEC 48/2023, que insere na Constituição o conceito já oficialmente rechaçado pelo STF. 

Ao reclamar do comportamento do juiz, Terena deixou clara também a falta de confiança no voto do Executivo, crescente entre as lideranças indígenas. Mas como um governo que subiu a rampa do Planalto de braço dado com minorias em direitos, inclusive a indígena, passa essa imagem?

A principal queixa dos indígenas em relação ao governo Lula 3 refere-se ao mesmo tema tratado na audiência do STF: as homologações de terras. A reclamação se acirrou em abril deste ano, quando foi reativado o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), em cerimônia no Palácio do Planalto na qual Lula, ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, assinou a homologação de somente duas terras indígenas: uma na Bahia e outra no Mato Grosso.

O próprio presidente viu que era pouco e se desculpou, alegando, entre outros pontos, a necessidade de não melindrar aliados. “Vocês imaginavam hoje que iam ter a notícia de seis terras indígenas assinadas por mim aqui”, disse Lula, referindo-se ao número de territórios indicados na época pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. “E nós decidimos assinar só duas.” Ao se justificar, Lula disse que não poderia simplesmente retirar as pessoas de suas terras e que teria de atender pedidos de governadores para ter tempo de fazer essa remoção. Quem havia sido incumbido de negociar com os governadores era o ministro da Casa Civil, Rui Costa. Quase quatro meses depois, as quatro terras indígenas não homologadas seguem na gaveta de Rui, sem data para sair do papel.

De acordo com a pasta da Justiça e Segurança Pública, há ainda 27 outros procedimentos administrativos de demarcação abertos, todos sob análise da equipe técnica. Em 2023, o governo homologou oito terras indígenas. “Os processos estão sendo progressivamente analisados pela Secretaria de Acesso à Justiça (Saju/MJSP), definida como a unidade responsável pela análise dos procedimentos demarcatórios a partir do Decreto nº 11.759, de 30 de outubro de 2023. O acúmulo de procedimentos demarcatórios representa um passivo de governos anteriores, tendo em vista que a última Portaria Declaratória de terras indígenas foi emitida no ano de 2017 e o último Decreto de Homologação havia sido publicado em 2016. Desde a retomada do presidente Lula, em 2023, já foram publicados 10 decretos”, destacou a pasta, em resposta ao Meio.

É certo que Bolsonaro cumpriu a sua promessa de não homologar “nem um centímetro de terra indígena”. Mas também é certo que os povos indígenas esperavam mais do governo de Lula. Outro agravante é que o próprio Executivo entrou em compasso de espera sobre a decisão que sairá da audiência de conciliação no STF, e a pasta comandada por Lewandowski admite que o impasse jurídico paralisa as homologações. “Houve sucessivas mudanças no marco jurídico da demarcação de terras indígenas, com a aprovação da Lei 14.701, vetos do presidente da República, rejeição e promulgação dos vetos pelo presidente do Congresso Nacional e julgamentos no Supremo Tribunal Federal. Essas mudanças afetaram, sobretudo, os procedimentos em fase de declaração, considerando que se trata da fase em que ocorre a análise de mérito do processo”, respondeu, por meio da assessoria de imprensa.

Neste momento, em que o próprio STF chama uma negociação sobre uma tese que já havia sido considerada pela Corte como inconstitucional, ver o Executivo com a mesma argumentação aprofunda a decepção. “Há um sentimento geral de que o governo Lula tem soltado a mão dos indígenas. Além disso, não houve uma palavra sequer de Lula sobre os ataques sofridos pelos indígenas no Mato Grosso do Sul”, avaliou, sob reserva, um parlamentar da base.

A lei do marco temporal foi aprovada pelo Congresso uma semana após o STF considerar inconstitucional a tese. Lula chegou a vetar parte da medida, mas o veto foi pautado pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e derrubado. Na audiência desta semana, a Apib apresentou pedidos de medida liminar para suspender a Lei 14.701/2023 como início de conversa para que os trabalhos da comissão ocorram. Além disso, pediu para que a conciliação não atinja as arguições de inconstitucionalidade já apresentadas ao STF. Sem seus pleitos acolhidos, na próxima segunda-feira a Apib se reunirá para decidir se permanece ou não na comissão.

Já do lado dos ruralistas, a senadora Teresa Cristina (PL-TO), ex-ministra de Bolsonaro, exaltou, em conversa com o Meio, a iniciativa de Gilmar Mendes e confirmou que o Congresso está pronto para votar uma emenda para colocar o marco temporal na Constituição. A senadora apelou para a “boa vontade” dos indígenas. “Se essa comissão avançar, o bom senso diz que vamos aguardar esse encaminhamento no Congresso”, ponderou. “A proposta é muito boa, mas as partes precisam sentar e ter boa vontade para dar continuidade. Se cada um ficar não sua posição, não avançaremos.” A senadora ressalta o lado de fazendeiros instalados em terras indígenas. “Há outros brasileiros que também acham que têm o direito. Pessoas que têm escritura há mais de 100 anos e, de repente, chega alguém e diz que essa casa não é dela porque no passado nós constatamos, por meio de um laudo antropológico, tratar-se de terra indígena. É uma discussão muito complexa. Se a gente não tiver paciência e chegar a uma decisão diferente, a lei vai prevalecer. É para isso que temos lei, Congresso e Supremo. É para evitar briga.”

Para o leitor do Meio, as artes visuais causaram o maior interesse nesta semana, mas teve espaço também para deixar seu telefone menos sujeito a golpes e para a nossa parceria com a Lupa.

1. Instagram: A cabra empoleirada de Banksy, que teve mais uma de suas obras roubadas em Londres.

2. BBC: A reportagem sobre a nova obra do misterioso artista britânico.

3. Google: Como travar remotamente um Android roubado e não permitir acesso a apps de bancos.

4. Ebulição: A newsletter da Lupa que monitora grupos de WhatsApp nas eleições municipais.

5. El País: Cenas de atletas dos Jogos Olímpicos que lembram pinturas clássicas.

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