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Edição de Sábado: Democracia à moda petista

Foi a nota “possível” e foi até “blasé”, na avaliação reservada de um petista que integra a Comissão Executiva do partido. Ele se referia à posição a respeito das eleições na Venezuela, externada na noite da última segunda-feira pelo PT, um dia após Nicolás Maduro se proclamar reeleito, com 80% dos votos apurados.

O caráter “blasé” atribuído à nota considera outros momentos em que o partido felicitou o regime chavista e de Maduro de forma muito mais esfuziante. Como em 2012, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda se recuperava de um câncer na laringe, mas mandou um vídeo de felicitações a Hugo Chávez por sua reeleição para uma reunião do Foro de São Paulo: “Chávez, conte comigo, conte com o PT, conte com a solidariedade e apoio de cada militante de esquerda, de cada democrata e de cada latino-americano”, disse. “Sua luta é a nossa luta, sua vitória será nossa vitória.”

“Possível” porque, desta vez, Lula não poderia compartilhar da mesma ideia. Precisava medir suas palavras e ações.

O racha que a nota causou dentro do PT é tal que aqueles que a criticam internamente optam por falar reservadamente. E a forma com que ela foi concebida é bastante reveladora de como a legenda trata esse tipo de questão em suas fileiras.

O texto que saiu do grupo de WhatsApp da direção do partido teve uma redação sucinta, que não demorou 15 minutos para ser aprovada pela cúpula petista e foi distribuída em menos de uma hora após a concordância de todos que leram o texto. Dos 28 membros da cúpula, 21 deram votos favoráveis. Não houve voto contrário, apenas um voto com ressalva. Horas antes, membros da Executiva haviam se reunido. Esse texto chegou a ser citado e não houve consenso nem sobre o tom da nota e nem sobre a oportunidade para divulgá-la. A presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PR), colocou o texto no grupo após se reunir com Lula, mas diz que não conversou sobre o assunto com o presidente. Petistas como o diretor de comunicação da Fundação Perseu Abramo, Alberto Cantalice, e o senador Humberto Costa, membro da Executiva, consideraram uma “precipitação”, mas o texto já havia sido aprovado. A nota foi publicada pouco depois das 23 horas no site do partido. Só no dia seguinte Lula pediu para ler a nota, que já causava um racha entre petistas.

Que motivos levaram o PT a reconhecer a vitória de Nicolás Maduro nas eleições, em contraste com a cautela de se exigir as atas eleitorais adotada por Lula e conduzida pela diplomacia brasileira? Antiamericanismo? Anti-imperialismo? Petróleo? Hegemonia na América do Sul? Apego ao passado? A história do partido, a sua formação original, o seu funcionamento, a atual composição de forças e a relação com o governo podem dar pistas importantes.

Descompasso

Hoje, a crítica de que existe um abismo entre as decisões da Executiva do partido e as posturas defendidas por quem tem mandato é crescente dentro da legenda. Isso ficou claro na reação de parlamentares à nota de apoio a Maduro. Há no partido questionamento do que se chama de “democracia das correntes”, que permite que tendências não tão representativas dentro da legenda ocupem cargos na estrutura partidária e contribuam com posicionamentos, como ocorreu na nota sobre a Venezuela. “Quer-se garantir a participação de todas as ideias, mas tem muita gente nos cargos do partido porque pertence à corrente A ou B. Tem muita gente que acha que essa estrutura está defasada. Teve sentido na construção desse movimento de massa na década de 1980, com muitas representações, mas hoje não funciona mais. Hoje mostra uma estrutura partidária pesada”, disse um petista, incomodado com esse descompasso.

Lincoln Secco, historiador e professor da Universidade de São Paulo (USP), autor do livro A História do PTuma das primeiras publicações a contar a trajetória da sigla que nasce da luta pela democratização do país —, aponta que a composição da Executiva do PT é muito diferente da dos petistas que vão para os governos. Segundo ele, na Executiva nacional ou mesmo no diretório nacional, há pessoas que têm voto, que são conhecidas. Por outro lado, há muitas outras que não são muito expressivas fora dos meios de esquerda, como dirigentes setoriais, de juventude, de movimentos estudantis ou sindicais. “Isso, por si só, já leva a Executiva nacional a ficar sempre um pouco mais à esquerda que o governo, que, aliás, é composto por uma frente ampla. Nesse episódio, para os movimentos de esquerda da América Latina, o PT saiu como solidário em um momento em que Maduro estaria sendo atacado pelo imperialismo”, disse ao Meio.

Contra o império

A “luta anti-imperialista” é um fator fundamental nessa flexibilidade, para dizer o mínimo, no conceito de democracia que o PT faz, porque uniu movimentos de esquerda na América Latina e está na base da formação do Foro de São Paulo, do qual o partido é fundador. Valter Pomar (SP), coordenador da corrente Articulação de Esquerda e ex-secretário-executivo do Foro, enfatizou que o PT tem relações com os partidos que apoiaram o governo Chávez e apoiam o governo Maduro. “A partir dessa relação, construímos uma opinião sobre a situação na Venezuela, inclusive sobre os processos eleitorais. Desde 1999, ano em que Chávez foi empossado, até hoje, esses partidos contribuíram para garantir a lisura dos 30 processos eleitorais ocorridos na Venezuela. Trinta! Neles, a oposição sempre gritou fraude, exceto nas duas vezes em que ganhou”, disse em conversa por escrito com o Meio. “Além disso, havia petistas participando da observação eleitoral. Por uma e por outra coisa, temos elementos que nos levam a concluir pela lisura do processo. E temos confiança de que os recursos que venham a ser feitos tramitarão adequadamente.”

Essa “lisura” não está comprovada em canto algum. Ao contrário, há denúncias graves de observadores internacionais isentos, convidados também pelo governo de Maduro, como os do Carter Center — que declararam, depois de deixar Caracas às pressas, que o processo eleitoral venezuelano “não atingiu os padrões internacionais de integridade eleitoral em nenhuma das suas fases relevantes e violou numerosos preceitos da própria legislação nacional”. O instituto acompanha as eleições no país desde 1998. Em 2021, por exemplo, embora tenha criticado a repressão política nas eleições municipais e para governadores, não questionou a segurança do voto. Agora, muito longe disso. O regime de Maduro não apresentou sequer o mínimo, os tais dados desagregados solicitados no comunicado conjunto entre Brasil, México e Colômbia. As atas de que tanto se fala.

Pomar se referiu às informações repassadas pela atual secretária-executiva do Foro de São Paulo, Mônica Valente (SP), e pelo deputado José Geraldo (PA). Os dois petistas foram para Caracas acompanhar o pleito a convite do partido de Maduro. Na discussão sobre a nota no grupo de WhatsApp da cúpula do partido, Mônica, que deixou recentemente a Executiva do PT, foi quem reagiu às ponderações feitas por Cantalice de que a nota era uma “precipitação”. Ela defendeu a ideia de que era preciso garantir a “soberania” da Venezuela de realizar suas eleições sem a interferência externa.

Já Pomar indica a disputa entre campos políticos como motivadora do apoio. “O que está em jogo na Venezuela são duas coisas, não uma. A saber: a democracia e a soberania. A alternativa que está disputando contra Maduro não é a centro-esquerda, nem o centro, nem mesmo a centro-direita. Quem está disputando contra Maduro é a extrema direita”. E vai além: “mesmo os que discordam da política externa de Maduro deveriam levar em conta a dimensão democrática”.

Nesse contexto, o reconhecimento por parte dos Estados Unidos da vitória da oposição na Venezuela só fez reforçar a ideia anti-imperialista petista. “Guaidó Segundo?”, questionou Pomar, ao comentar a notícia divulgada na noite de quinta-feira. Opositor de Maduro, Juan Guaidó se autoproclamou presidente do país e tentou tirar o chavista do poder em janeiro de 2019. Maduro havia acabado de tomar posse para seu segundo mandato presidencial em uma reeleição também contestada pela oposição, que alegava fraude. Na época, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reconheceu Guaidó como presidente. No Brasil, o então presidente Jair Bolsonaro fez o mesmo. Além deles, o governo autoproclamado de Guaidó recebeu apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de países como Paraguai, Peru, Equador e Colômbia.

Pensamentos como o de Pomar ajudam a engrossar o “caldo de cultura” que sustenta a relação do PT com a militância e que, em se tratando de política externa, apresenta-se muito mais à esquerda no partido do que as posições tomadas no cotidiano do governo ou no Congresso. Daí a reação de grande parte dos políticos do partido à nota.

Passadismos

Nesse racha, é possível inferir, diz Lincoln Secco, que a nota petista se dirigiu mais à base militante interna e para os outros movimentos da América Latina. Um exemplo de força bastante organizada hoje dentro do PT é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, independentemente do partido, reconheceu a vitória de Maduro assim que o venezuelano proclamou o resultado, no domingo. Secco defende que esse tipo de nota não se dirige à imprensa ou ao resto do país. “Nem sequer é uma nota para a base social do partido, hoje formada por um segmento bastante popular e que está muito pouco interessado na Venezuela ou em relações internacionais”, argumentou. “Se o partido não fizer isso, ele perde a conexão com a militância que o carrega e entra em crise, como em 2016, quando a população não apoiava mais o governo de Dilma Rousseff e quem foi para a rua foi o MST, por exemplo.”

Para Secco, o problema está em não perceber que a realidade mudou e que novos elementos precisam ser considerados além do contexto geopolítico ou das disputas entre direita e esquerda na região e no mundo. “É preciso, por exemplo, levar em conta que a Venezuela de hoje não é a mesma de Chávez. Que Daniel Ortega, na Nicarágua, está longe da aura do grande comandante revolucionário sandinista. Existe uma ligação histórica do PT com o Sandinismo. Mas a Nicarágua de hoje não é mais a dos anos 1980. Hoje é o Ortega que proibiu todos os candidatos viáveis de competirem com ele, reprimiu protestos populares contra a reforma liberal que fez na previdência do país. A vice é a esposa dele.”

Em relação a Maduro, o historiador identifica uma intolerância petista diante do avanço dos interesses norte-americanos na Venezuela, motivados pela exploração do petróleo. Em sua visão, prevalece entre os membros da sigla que defendem o venezuelano a ideia de que “ruim com Maduro, pior sem ele”. “Não são todos os petistas que defendem Maduro como provam, inclusive, as reações à nota. Mas o que predomina na visão dos defensores do regime é a ideia de que ele representa a soberania popular, e garante a destinação da riqueza do petróleo para a própria Venezuela, para que não seja entregue aos Estados Unidos”, explicou. “Ou seja, para esses petistas, pode até ter ocorrido alguma fraude, mas é melhor manter o que está agora porque a oposição é de extrema direita e fascista.”

Jogo de conveniência

A discrepância da nota do PT com os pontos orientados pela diplomacia brasileira nesse episódio serviu a um jogo político para proteger Lula. Para o governo, é melhor que o desgaste fique no partido, não com o presidente. O PT fez seu aceno aos movimentos de esquerda, aceitando amargar o desgaste de imagem na imprensa brasileira e diante de grande parte da sociedade. Lula, por sua vez, não se isolou no contexto internacional. É necessário agora manter a imagem de moderação. “Pode não ser um jogo combinado, mas é conveniente para as duas partes”, ressaltou Secco.

O caminho do meio era o único possível de ser trilhado por Lula. Mesmo antes das eleições, o venezuelano já havia colocado o presidente e o governo em uma situação delicada ao levantar dúvidas sobre a transparência e a segurança do sistema eleitoral brasileiro. “Respaldar Maduro agora é concordar com o que ele disse sobre as eleições brasileiras, que se assemelha ao que Bolsonaro falava. Mais que isso. Como nós viemos de uma disputa na qual o adversário investia no descrédito do sistema eleitoral, apoiar Maduro hoje também significa se dissociar de um poder que respaldou a eleição de Lula e garantiu a legitimidade e a integridade do processo. Esse poder é a Justiça Eleitoral”, disse um petista muito ligado ao presidente.

Maduro já havia causado outros constrangimentos a Lula. O Brasil foi um dos principais patrocinadores do Acordo de Barbados, mediado pela Noruega e assinado em 2023 entre o governo venezuelano e a oposição. Já em março deste ano, quando houve o bloqueio da candidatura de Corina Yoris, o Brasil foi obrigado a reconhecer que o governo da Venezuela não respeitava o que havia sido acordado.

Apesar dessas saias-justas, Lula enviou à Venezuela seu assessor especial, Celso Amorim, que voltou de Caracas enfatizando a necessidade da apresentação das atas por parte do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). A escolha da diplomacia brasileira pelo equilíbrio de cobrar as atas, alinhada com os conselhos de Amorim e articulada com o México e a Colômbia em uma declaração conjunta, atende a precauções bastante específicas da política externa brasileira e que exigem de Lula hoje uma posição moderada, com um cálculo estratégico de cada passo.

Um reconhecimento da vitória de Maduro, tal como avança a nota do PT, pode significar para o Brasil, de início, um isolamento na América do Sul, inclusive dentro do Mercosul, e isso preocupa o Planalto uma vez que o Brasil quer desempenhar um papel de diálogo e de protagonismo no continente. Na região, somente a Bolívia reconhece a vitória de Maduro. Uruguai, Peru, Paraguai, Argentina, Chile e Equador não reconhecem.

Por outro lado, se Lula optasse pelo repúdio direto à reeleição de Maduro e não manifestasse confiança na capacidade das instituições venezuelanas de processarem os recursos a serem apresentados e de demonstrar, com as atas, a lisura do processo, estaria corroborando a visão intervencionista dos Estados Unidos. E isso certamente causaria problemas em outra área cara ao Brasil: os Brics (grupo de países que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), onde Lula busca protagonismo. Rússia e China já se posicionaram a favor de Maduro. E com entusiasmo. Na segunda-feira após a eleição, o presidente russo Vladimir Putin, que preside atualmente o bloco, enviou uma carta a Maduro o convidando para o próximo encontro dos Brics, que ocorrerá em outubro deste ano, em Kazan, cidade a 800 quilômetros de Moscou. “Qualquer posicionamento significaria um motivo de desgaste para o governo brasileiro e para o presidente, que perderia sua capacidade de ser um agente nesse diálogo”, disse um membro da diplomacia brasileira ao Meio.

A questão central agora é o tempo. Depois da forte repressão do regime de Maduro aos protestos da oposição, as manifestações praticamente cessaram. Cada dia que passa é mais um em que Maduro se finca no poder — e demovê-lo vai ficando inviável. A diplomacia brasileira vem ganhando relevância na negociação, a ponto de ser parabenizada por um notório adversário: Javier Milei, presidente da Argentina. Só que a situação que está se configurando é a de o Brasil ter de aceitar a permanência de Maduro mesmo diante de tantos indícios de fraude eleitoral. Os chanceleres dos três países — Brasil, México e Colômbia — cogitam ir a Caracas nos próximos dias negociar uma saída para a crise entre Maduro e Edmundo González Urrutia, o opositor. A se ver com qual conceito de democracia embaixo do braço.

Deepfakes, Elon Musk e o Velho Oeste da IA

Durante a semana, Elon Musk violou novamente as políticas da sua própria plataforma de mídia social, o X, ao compartilhar um vídeo da vice-presidente americana, Kamala Harris, adulterado por inteligência artificial (IA). Usando imagens editadas a partir de um anúncio original, mas com a voz de Kamala clonada por IA, o vídeo é extremamente polêmico no conteúdo, e foi compartilhado pelo magnata sem um aviso sequer de que se tratava de um deepfake.

Deepfakes são vídeos ou áudios extremamente convincentes, criados utilizando IA para simular a aparência ou a voz de uma pessoa, fazendo-a parecer que está dizendo ou fazendo algo que nunca aconteceu. Há poucos anos, criar um deepfake era uma tarefa difícil, e o acesso aos softwares, escasso. Hoje, no entanto, esse acesso se tornou corriqueiro, há muitos tutoriais e ferramentas online, e mesmo um adolescente com alguma familiaridade com computadores já é capaz de conseguir resultados de alto nível.

A situação se torna muito mais grave por se tratar do bilionário Musk, com seus 191 milhões de seguidores e dono da plataforma X, cujas regras são claras ao proibir o compartilhamento de “mídia sintética, manipulada ou fora de contexto, que possa enganar ou confundir as pessoas e causar danos”. Nos comentários, Musk se defendeu dizendo que se tratava apenas de uma “paródia”. Não é verdade, e ele sabe disso.

Outras redes sociais como Instagram e Facebook, da Meta, assim como o YouTube, têm suas próprias regulamentações internas, que geralmente incluem a obrigatoriedade de identificar conteúdos produzidos com IA. Mas a questão aqui é outra: o que fazer quando o dono de uma rede social viola as próprias regras de sua plataforma? Ou quando as plataformas não aplicam suas próprias regras? E se as plataformas escolhem um lado e só aplicam suas regras aos oponentes?

Estrago político

Deepfakes têm potencial de alterar drasticamente a opinião pública, especialmente em contextos políticos. Em eleições, vídeos e áudios manipulados podem ser usados em momentos chave para difamar candidatos, espalhar falsas informações ou criar confusão entre os eleitores.

Nos Estados Unidos, uma onda de robocalls com a voz falsificada do presidente Joe Biden durante as primárias democratas incitava os eleitores a “guardarem” seus votos para as eleições gerais em novembro e se absterem de votar naquele momento. Na Nigéria, durante as eleições presidenciais de fevereiro de 2023, circulou um áudio manipulado por IA em que um candidato presidencial supostamente fazia planos para manipular cédulas eleitorais. Na Índia, um vídeo de um candidato foi sutilmente manipulado para inverter o sentido do que ele estava dizendo, usando IA para modificar a voz e a sincronia labial em apenas um curto trecho de um vídeo autêntico.

No Reino Unido, grupos como o Britain First e o Patriotic Alternative têm utilizado IA para criar deepfakes que promovem narrativas anti-imigração e antigoverno. De forma geral, grupos extremistas têm explorado a tecnologia para promover suas agendas e desestabilizar processos democráticos ao redor do mundo, aproveitando que seu uso amplia o alcance das campanhas de desinformação.

Enquanto a maioria dos países não define leis específicas para o setor, bilionários como Musk e Mark Zuckerberg têm um poder desproporcional nas plataformas que controlam. Suas ações — ou sua inação — muitas vezes escapam de supervisão regulatória, permitindo-lhes moldar narrativas, persuadir a opinião pública e promover interesses pessoais, inclusive influenciando eleições.

Atualmente, ainda não há leis e regulamentação claras para o setor nos Estados Unidos ou no Brasil, embora haja iniciativas e projetos de lei em estudo.

Nesse sentido, a União Europeia tomou a dianteira global na regulamentação do setor ao aprovar o AI Act, a primeira legislação abrangente sobre IA no mundo. Ela provavelmente servirá de modelo para outras nações ocidentais. Os sistemas são classificados de acordo com o risco potencial para a sociedade e, quanto maior o risco, maiores as exigências. Não são permitidos sistemas de identificação biométrica em espaços públicos, sistemas de pontuação social ou que manipulem o comportamento humano.

No Brasil, o Projeto de Lei 2338/23, atualmente em discussão, reflete algumas dessas influências, incorporando uma abordagem baseada em risco semelhante ao AI Act da União Europeia, mas com maior flexibilidade. Enquanto a lei não é aprovada, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem atuado como xerife do setor, e recentemente aplicou uma série de sanções à Meta, cujo uso de dados pessoais dos usuários do Instagram para treinar sistemas de IA violou a Lei Geral de Proteção de Dados.

Já na China, a regulamentação visa aprimorar a segurança nacional, a estabilidade social e o controle governamental, com forte foco no uso de IA para vigilância e controle social. O reconhecimento biométrico em locais públicos, nesse caso, passa a ser incentivado, assim como a pontuação social — ranking feito pelo governo a partir do comportamento das pessoas. O que não deixa de ser até mais assustador e distópico.

Estamos em um ano especial, em que a rara convergência de mais de 50 eleições importantes pelo mundo afora mobilizará mais de 2 bilhões de eleitores no total. Considerando o contexto político atual, pode-se dizer que serão eleições decisivas para o futuro da própria democracia. A cada novo ciclo eleitoral, o uso de ferramentas de IA para criar deepfakes de vídeo e áudio para influenciar os resultados torna-se mais disseminado.

Em um estudo de 2023, feito pelo Brennan Center for Justice, 68% dos entrevistados nos EUA relataram ter dificuldade em distinguir entre vídeos reais e deepfakes. Políticos como Barack Obama e especialistas de instituições como o United States Institute of Peace consideram as campanhas de desinformação impulsionadas por IA uma das maiores ameaças atuais às democracias.

Nesse Velho Oeste da era da IA, nenhum Estado ou instituição tem uma solução definitiva, e não será suficiente contar apenas com a criação de novas leis ou agências regulatórias. Esse é um assunto extremamente complexo, muito difícil de controlar.

O aspecto mais importante de uma solução certamente será a alfabetização digital do público sobre as capacidades das novas tecnologias e sobre a necessidade constante de verificação de fatos como hábito fundamental no consumo de informação da nossa era. Porque a verdade é simples: não vai ter xerife nem lei que dê conta dessa guerra.

A gênese da cena eletrônica brasileira

Sou de uma geração que foi introduzida à música eletrônica de pista no começo dos anos 1990, primeiro indo à Nation, clube icônico localizado numa galeria na rua Augusta, levado pelos meus companheiros de redação na finada revsita AZ. Desde então, nunca me afastei das pistas. Posso dizer que passei os últimos 30 anos ouvindo com prazer variações de bate-estacas em espaços fechados com luzes coloridas e globo de espelhos no teto. Nesses anos, uma presença constante na noite era o jornalista e DJ Camilo Rocha, que acaba de lançar pela editora Veneta Bate-Estaca: Como DJs, drag queens e clubbers salvaram a noite de São Paulo.

O livro é organizado justamente a partir das casas noturnas que fizeram história na cidade anos anos 1990 e 2000. Começa pela Nation e segue por Sra. Krawitz, Sound Factory, Hells Club, Lov.e Club, Hole Club, D-Edge, além de passear pelas raves e por festivais como o Skol Beats. Cada um desses clubes reunia um público diferente e abrigava estilos distintos. A house na Nation, o techno no Sra. Kravitz, o jungle e o drum’n’bass na Sound Factory e na Toco, o trance nas raves e o psy-trance no Hole.  O que o livro faz é contar essa história olhando não só para a música, mas para como a juventude se organizava em torno dela em diferentes subculturas, com códigos particulares que influenciavam a moda e o comportamento.

Outro ponto importante é que, curiosamente, muito pouco do começo da eletrônica em São Paulo pode ser encontrada na internet. Ano passado tentei fazer uma pesquisa visual sobre “cybermanos” e tive de recorrer a fotos de bancos de imagens de jornais, o Google passou em branco. Ao recontar essa história, Bate-Estaca traz não apenas um registro de quem viveu essas experiências em primeira pessoa, como entrevistas preciosas e fotos que permitem dar concretude ao começo da cena eletrônica no Brasil, sobretudo para uma geração que produz e consome esse estilo hoje, mas não tem como acessar diretamente essas memórias.

Esta entrevista com Camilo Rocha ajuda a traçar esse panorama e também conectar o período retratado no livro com a cena eletrônica atual.

O livro faz uma viagem pela chegada da cena clubber em São Paulo, e acaba sendo organizado justamente pelo som de clubes emblemáticos. Como a geografia paulistana influencia as diferentes vertentes da eletrônica?
É interessante notar como nessa cena diferentes estilos musicais acabaram predominando em certos recortes sociais e territoriais na cidade. Então, a house aflorou muito em clubes mais centrais, com uma predominância de clubbers LGBTQIA+ ou de classe média para cima. Já o jungle e o drum’n'bass se fortaleceram entre os frequentadores de regiões periféricas. O trance prosperou nas raves fora da cidade, frequentadas por um público mais hétero, também de classe média para cima. Mas essas divisões nunca foram rígidas e é preciso tomar cuidado com estereótipos: havia núcleos fazendo festas de rua de house em São Miguel Paulista, assim como o drum’n’bass chegou a contar com um público mais elitizado, de formadores de opinião e pessoas da mídia, no tempo das noites do Marky no Lov.e.

Moda e cultura drag são fatores tão fundamentais na cena clubber quanto as festas e DJs. Como você vê essa relação?
A moda sempre foi um fator chave na noite, pois os clubes e as pistas também são vitrines e passarelas, muita gente vai para ser visto e se afirmar e se expressar por meio do estilo. Interessante notar como certas estéticas e tipos de roupa foram se cristalizando em torno das subsubculturas da cena eletrônica da época: as roupas pretas dos fãs de techno, as estampas rebuscadas de tons fluorescentes dos adeptos do psytrance, a montação cyberpunk dos clubbers da periferia. Não deixa de ser irônico, no entanto, observar essa tendência à uniformização em um movimento que valoriza a expressão individual e a liberdade de referências. Sobre a cultura drag, os clubes e as pistas são tradicionalmente um local de socialização e expressão LGBTQIA+, então nada mais natural que a cultura drag florescesse nesses ambientes. Nos anos 1990, as drag queens se tornaram um rosto muito identificável e midiático da cultura clubber, talvez para compensar o menor apelo visual dos outros protagonistas da cena, os DJs.

Quais são os principais elementos que dão unidade à cultura clubber?
A centralidade da dança e da música nos eventos, tendo o DJ como eixo norteador de todo o resto, é algo que une todas as facções clubber. O gosto por multidões animadas sendo massageadas por um grave em alto volume, esse misto de sentimento comunal e euforia musical.

Do underground para os grandes festivais, como Skol Beats, a dance music foi misturando públicos ao longo dos anos. O que a chegada ao mainstream faz com a cena clubber?
Em qualquer subcultura, existe o tradicional debate da perda da essência. Como se houvesse um estado ou momento mais puro do movimento, mais “verdadeiro”, e que depois vai sendo maculado pela chegada de novas levas de público. E esse lugar mais puro varia muito conforme a pessoa: quem chegou em 1992 reclama de quem começou a frequentar em 1995 e quem começou a frequentar em 1995 torce o nariz pra turma que veio em 1998. Faço essa ponderação porque eu acho que desde o começo a cena clubber dialogou com o mainstream. O Que Fim Levou Robin? se apresentou em programas de auditório. A coluna da Erika Palomino saía na Folha de S. Paulo. A "tribo clubber" foi tema de pautas na Veja. Um ponto de virada interessante é quando as marcas grandes despertam para esse segmento, e o festival Skol Beats é um símbolo desse momento. Por um lado, representou a possibilidade de atrações internacionais, de eventos bem estruturados e rentáveis. Por outro, foi também um momento de diluição e apostas no que dava mais certo, não necessariamente no que era melhor ou mais inovador.

Numa entrevista que fiz com Simon Reynolds nos anos 2000, depois de ele ter lançado o clássico Energy Flash, uma bíblia da eletrônica mundial, ele dizia que já estávamos numa época de diluição e que só surgiriam novos sons com a chegada de novas tecnologias ou novas drogas. Você consegue ver relação entre as diferentes cenas que retrata no livro e as suas drogas de preferência da época?
As drogas que moveram a cena dos anos 1990 eram basicamente maconha, ecstasy e álcool. Em relação ao ecstasy, ele estava bastante restrito a quem tinha dinheiro para comprar, e no começo não era barato. A cena trance tinha também uma presença maior de LSD, encorajada pelos locais das festas em meio à natureza. Conforme muitos clubbers e ravers deixavam o ecstasy de lado, ou apenas para ocasiões especiais, houve um retorno para muitos da cocaína como estimulante de uso mais recorrente.

Com novos atores e uma nova cultura, a partir dos anos 2010, São Paulo voltou a ter uma cena eletrônica bastante forte, principalmente fora dos clubes, em festas na rua ou em locais pouco convencionais, como fábricas desativadas. O que essa nova geração, que produz até hoje, deve aos pioneiros da cena clubber?
A cena de 2010 em diante é uma descendente direta do que aconteceu nos anos 1990 e 2000. Os DJs, os produtores, as performers, os estilistas, as músicas, os eventos, o espírito, o que surgiu na década de 1990 foi não só continuado lindamente pelas novas gerações, mas também de muitas maneiras foi melhorado. Abriu-se muito mais espaço e possibilidades para DJs mulheres, as pessoas trans cavaram lugares inéditos, houve uma ocupação do espaço público e das áreas centrais da cidade e, mais recentemente, ganhou força uma conexão com o funk brasileiro, uma união de eletrônicas que faz todo sentido.

Não tinha como ser diferente: os Jogos Olímpicos renderam bons cliques nesta semana. Mas a produção do Meio não ficou atrás.

1. The Verge: O relógio retrô na Cassio que conta passos.

2. Meio: O especial Meio Perspectiva: IA 2024 para assinantes premium.

3. CNN Brasil: A selfie de atletas das Coreias do Sul e do Norte no pódio.

4. Guardian: A foto de Gabriel Medina levitando sobre as ondas em Teahupoo.

5. Meio: O Ponto de Partida sobre como as eleições na Venezuela mostram é democrata de verdade.

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