Edição de Sábado: ‘O identitarismo promove uma sociedade conflituosa e hostil’

Aos 42 anos, Yascha Benjamin Mounk tornou-se um dos mais influentes cientistas políticos do mundo. No arco dos últimos seis anos, escreveu três livros que se tornaram guias de compreensão da crise nas democracias. No primeiro, O Povo Contra a Democracia, ele argumenta que há um desequilíbrio entre o lado técnico e o lado eleito dos governos. Em meio às transformações do mundo, corpos técnicos como o Judiciário e os bancos centrais vêm se tornando alvos fáceis de populistas que propõem uma leitura autoritária de governança, na qual os líderes eleitos podem atropelar o que definem os técnicos.

Na sequência veio O Grande Experimento, em que sugere que parte da crise se dá por uma exposição cada vez maior à diversidade nos regimes democráticos. Impérios, no passado, frequentemente foram diversos, mas sob o controle de um governo central forte. Democracias, não. Nelas, um grupo demográfico sempre foi dominante. Conforme isso começou a mudar, com ampliação de direitos para todos, os sistemas entraram em crise, com profunda insatisfação dos grupos dominantes.

Lançado este ano nos EUA, e esta semana no Brasil, A Armadilha Identitária é o mais polêmico — foi obrigado, inclusive, a mudar de editora, no Brasil. Nele, Mounk se volta contra a esquerda, argumentando que a política woke, ou identitária, abandona um dos princípios democráticos fundamentais: o universalismo. Ao invés de pedir direitos para minorias ou grupos excluídos com base na ideia de que todos têm direitos iguais, propõe o contrário. Separar. Segregar. Tratar cada grupo como diferente do outro. E este processo atiça os movimentos populistas de direita, confirmando seus incômodos com diversidade e o braço técnico do Estado.

Em três livros, um panorama da crise democrática pela qual o mundo passa. Professor da Universidade Johns Hopkins, Yascha esteve no Brasil para falar no ciclo de palestras Fronteira do Pensamento, quando concedeu esta entrevista ao Meio. Você pode ver a íntegra em vídeo ou ler os principais trechos aqui.

Já se passaram seis anos desde que você publicou O Povo Contra a Democracia. Como você vê o livro agora?
Bem, na época, eu argumentei que os populistas eram uma séria ameaça à democracia, e que isso não era apenas um momento passageiro na política, mas que duraria muito tempo. Ambas as previsões, infelizmente, se confirmaram. Vimos nos Estados Unidos e no Brasil que até mesmo democracias supostamente bastante consolidadas, estáveis, poderiam sofrer significativamente com governos de populistas. E agora estamos vendo populistas minando instituições democráticas em lugares como a Índia, a maior democracia do mundo, e em países menores, como a Hungria. Tivemos também algumas boas notícias nos últimos dez anos: mesmo quando esses populistas vencem e conseguem danificar instituições democráticas, nossos sistemas também podem ser razoavelmente resilientes. Assistimos a alguns desses populistas perdendo poder. E algumas dessas instituições estão sendo fortalecidas novamente em vários lugares, incluindo nos EUA e no Brasil. Mas isso não é o fim da história. Nos EUA, por exemplo, parece muito provável que Donald Trump vença as eleições em novembro e volte à Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2025. Então, ainda estamos no meio da história.

Qual você acha que será o impacto de um eventual segundo mandato de Trump na democracia americana?
Há boas razões para pensar e temer que será pior que o primeiro. Quando Trump foi eleito em 2016, ele não tinha controle total do Partido Republicano, muitos setores eram bastante hostis a ele. Não havia um grupo sólido de assessores que realmente acreditavam em suas ideias. E ele tinha pouca experiência em governar e pouca clareza de como queria transformar as instituições. Isso mudou. Agora, Trump tem controle completo do Partido Republicano. Tem um número muito maior de fiéis, que demonstraram estar dispostos a fazer o que ele pede e que adquiriram experiência no governo nos primeiros quatro anos. E está chegando mais determinado a remover qualquer obstáculo ao exercício de seu poder. Trump está mais convencido de que ele, sozinho, representa o povo e de que deve ser capaz de fazer o que quiser. Mas há instituições que se colocam no caminho disso. Porque é assim que funciona em uma democracia. Ao mesmo tempo, vimos a resiliência da democracia americana. Vimos como a mídia é combativa, como é difícil controlar nossas instituições. Vimos as reservas de poder nos estados. Por isso, não estou imaginando que um segundo mandato de Trump seria o fim da democracia. Temos de parar de pensar que um país pode passar imediatamente de uma democracia perfeita para uma ditadura. O que veríamos em um segundo mandato de Trump é uma deterioração adicional da qualidade da democracia americana, não necessariamente o fim dela.

Então, não estamos falando sobre os EUA se tornarem uma ditadura, mas de uma democracia profundamente falha. Como você pintaria esse cenário?
Donald Trump claramente sinalizou sua intenção de mudar o status dos funcionários públicos para que as proteções desses empregos sejam significativamente mais fracas. Veja, é possível defender isso. Há alguns funcionários públicos que são realmente preguiçosos, que não estão realizando suas funções de forma eficaz. O problema, claro, é que é também muito, muito importante que os funcionários públicos sejam ideologicamente neutros, que obedeçam à vontade política de quem é eleito, mas dentro dos limites da Constituição. E há muitos países no mundo onde isso não acontece, onde o novo governo substitui essas pessoas, começando pelos juízes e outras figuras-chave, como membros das comissões eleitorais, até as pessoas que calculam a taxa de inflação ou os balanços contábeis. Os bancos centrais, em países onde esse processo é profundamente politizado, tendem a ter um desempenho muito ruim. Me preocupo com o que aconteceria se o serviço civil se politizasse dessa maneira nos EUA. Esse é um exemplo concreto de como os próximos quatro anos podem transformar o Estado americano. O problema é que, uma vez que você transforma o Estado americano dessa forma, é muito, muito difícil desfazer isso.

Me ajude a entender o que você quer dizer com populista. Você não está se referindo apenas à extrema direita, certo?
Não. O populismo em si é apenas uma forma de imaginação política, uma maneira de falar sobre política. O cerne do populismo não é apenas o anti-elitismo, que é comum na política e que em muitos países é merecido porque muitos políticos não estão de fato entregando resultados para as pessoas. É o antipluralismo. É a rejeição do reconhecimento de que haverá pessoas com opiniões e visões políticas muito diferentes e que isso é algo legítimo em uma democracia. É dizer que eu, e somente eu, represento verdadeiramente o povo, e o inimigo, que discorda de mim, é, por isso mesmo, ilegítimo. Eles não são verdadeiros brasileiros, não são verdadeiros americanos, não são verdadeiros alemães. Se discordam de mim, são traidores, inimigos do povo. E o mais perigoso de tudo: sua retórica não é apenas polarizadora. Não é apenas que o discurso pode ser bastante desagradável ou que pode intimidar pessoas que discordam de você. É perigoso porque configura um ataque às instituições independentes.

Como você explicaria por que as pessoas estão votando cada vez mais em figuras autoritárias?
Minha visão mudou um pouco. Quando escrevi O Povo Contra a Democracia, dei três grandes razões estruturais. E continuo as achando relevantes. A primeira era a frustração econômica. Ela é especialmente importante nas democracias desenvolvidas, nos países mais ricos, como os EUA e os da Europa Ocidental e Ásia Oriental, onde gerações anteriores sentiram que haviam experimentado um rápido aumento nos seus padrões de vida, o que lhes dava uma confiança residual nas instituições — uma espécie de legitimidade de resultados, como os cientistas políticos dizem, em relação ao governo. Bem, esse não é mais o caso. Muitas pessoas pensam: “eu não estou em melhores condições do que meus pais. E não acho que meus filhos vão estar melhor que eu. Então, por que eu deveria confiar que o governo vai entregar algo positivo para mim?”. Isso é um pouco mais complicado em lugares como o Brasil, onde os cidadãos comuns na verdade experimentaram melhorias significativas nos padrões de vida ao longo das últimas décadas.

Qual a segunda razão?
A segunda razão tem a ver com mudanças culturais rápidas e, em alguns lugares, com mudanças demográficas. Especialmente na América do Norte e na Europa Ocidental, isso se deve em parte à grande onda de imigração. E isso realmente mudou a natureza de quem é cidadão desses países. Mas em lugares como o Brasil, que tiveram menos imigração, é a mudança rápida no status das mulheres na sociedade, ou uma maior aceitação de minorias sexuais, por exemplo. Isso, claro, é um desenvolvimento positivo. Mas, para algumas pessoas,  mesmo que consigam ver coisas positivas nisso, essa mudança faz com que sintam que seu status na sociedade está sendo desafiado; que, há 25 ou 30 anos, elas tinham uma certa importância, por ser o arrimo de sua família, por fazer parte da maioria dos que estão no comando, e hoje eles podem sentir que seu status social diminuiu. Talvez a esposa esteja ganhando mais dinheiro. Talvez a pessoa que os governa, que os representa, seja gay ou lésbica, e eles possam sentir uma certa perda de posição como resultado. E sabemos, pela pesquisa em ciência política, que, se você imaginar sociedades como uma escada de dez degraus, pessoas que sentem que estavam no sexto ou sétimo degrau e hoje têm a percepção de que declinaram um pouco são particularmente propensas a votar em populistas.

E a terceira?
A internet, as mídias sociais e a forma não apenas de tornar mais fácil a disseminação do ódio ou de certas formas de desinformação, que é um termo que vejo um pouco criticamente, mas também de tornar mais fácil para os novatos políticos se organizarem. É muito mais fácil para os outsiders ganharem seguidores, fundarem um partido político e chegarem ao poder. Esses fatores que eu codifiquei há dez anos ainda são relevantes. Mas eu adicionaria uma quarta razão. Depois de uma década viajando pelo mundo, alertando sobre o populismo, e as pessoas me perguntando por que é que as pessoas votam nesses loucos, nessas figuras populistas, em algum momento, eu pensei que, bem, talvez a resposta tenha menos a ver com o que é tão atraente neles e mais com o por que as pessoas desconfiam tanto de nós. Por que as pessoas desconfiam das forças políticas moderadas, das elites sociais e políticas? Em muitos países, não é que o povo ame o populista. É que eles odeiam os velhos partidos políticos estabelecidos e a velha ordem política estabelecida. E eles têm algumas boas razões para isso.

Quais?
Alguns países têm um problema muito profundo com a corrupção, que minou a confiança nas forças políticas mais estabelecidas. Esse é claramente o caso em lugares como Itália e Brasil. Algumas pessoas sentem que os governos simplesmente não estão cumprindo funções essenciais como fornecer segurança, que estão ignorando preferências de políticas públicas, por exemplo, porque não têm controle sobre as fronteiras, embora os eleitores, por muitas gerações, tenham deixado claro que querem menos imigração. Isso me leva ao meu último livro, A Armadilha Identitária, que trata da forma como muitas instituições estabelecidas e uma espécie de elite realmente se distanciaram das convicções morais da maioria de seus cidadãos, têm abraçado uma linguagem, um conjunto de discursos sobre identidade de grupo que é profundamente impopular entre os eleitores de qualquer grupo de identidade, de qualquer grupo racial, de gênero e sexual. E isso também ajuda a explicar por que tantos cidadãos estão desconfiados em relação aos políticos estabelecidos.

Vamos falar de políticas identitárias. Você apresenta no seu livro um argumento muito convincente. Alguns grupos minoritários não têm os mesmos direitos democráticos que grupos majoritários e deveria ser papel das democracias garantir que cada cidadão tenha as mesmas oportunidades de qualquer outra pessoa. Mas isso vem de uma visão universalista, significando que todos devem ter os mesmos direitos, as mesmas oportunidades. E isso se tornou meio que uma filosofia separatista. Como acredita que esse movimento aconteceu?
Sim, o que você está apontando é uma distinção entre movimentos que você poderia, se quisesse, chamar de uma forma de política identitária que busca objetivos universais e uma que os rejeita. Na história dos Estados Unidos, por exemplo, existem pessoas como Frederick Douglass, o ativista abolicionista do século 19, até Martin Luther King Jr., o grande ídolo do movimento dos direitos civis do século 20. Eles estavam particularmente preocupados com as injustiças infligidas aos afro-americanos. E eles organizam, entre outras pessoas, afro-americanos para lutar contra elas em coalizão com outros grupos. O que eles sempre fizeram foi se posicionar e exigir inclusão e valores universais. Frederick Douglass disse: você está celebrando a Constituição americana, a Declaração de Independência, dizendo o quanto é lindo que todos os homens nascem iguais. Bem, se você leva esses valores a sério, você tem que libertar os escravos. Não pode continuar tolerando a escravidão. Senão, vocês são hipócritas. Martin Luther King Jr. disse que o cheque feito para os afro-americanos era fraudulento, que o banco da Justiça nunca tinha cumprido isso. Ele disse: é hora de nós exigirmos que o banco da Justiça cumpra suas promessas. Foi assim que, desse movimento específico para movimentos pelos direitos dos gays ao redor do mundo, as pessoas fizeram progressos ao dizer: por que nos excluem do mesmo status, da mesma consideração, das instituições? Também queremos ter acesso. E o que tem sido notável nos últimos dez, vinte anos, é que uma tradição muito diferente de identitarismo assumiu um poder tremendo na sociedade.

Que tradição?
Uma tradição que diz que somos profundamente definidos pelos grupos dos quais fazemos parte, até o ponto em que talvez não consigamos nos comunicar uns com os outros através desses grupos. É uma tradição que afirma que valores universais, como os princípios fundamentais da democracia no Brasil, Estados Unidos e outros lugares, são apenas uma tentativa de nos enganar, de nos iludir sobre a verdadeira natureza de nossas sociedades. É uma tradição que afirma que não fomos capazes de fazer nenhum progresso, que o Brasil ou os Estados Unidos hoje são tão injustos, racistas ou sexistas quanto há 50, 100 ou 200 anos. É a tradição que diz que, em vez de aspirar a uma sociedade onde a forma como interagimos, as oportunidades que você e eu temos, como o Estado trata todos nós, sejam menos dependentes da raça, gênero ou grupo sexual no qual nascemos — e, sim, em que eu falo com você de forma diferente se você é branco ou negro, homem ou mulher — uma sociedade na qual a forma como o Estado vai nos tratar vai depender não dos nossos direitos e obrigações como cidadãos individuais, mas sim do tipo de poder de barganha que nosso grupo tem sido capaz de ter.

Quais as consequências dessa nova forma de tratar a identidade?
Mesmo que se esteja declarando o conjunto mais radical de ideias para lutar contra injustiças e formas de discriminação, que certamente são reais, o que na verdade está se estabelecendo é um conflito de soma zero entre diferentes grupos de identidade, uma sociedade na qual estamos sempre travados em batalhas uns contra os outros, porque a forma como seremos tratados depende de quanto reconhecimento e poder cada um de nós tem em determinado momento. Isso significa que não está se criando o tipo de sociedade onde acho que deveríamos buscar viver. Uma sociedade na qual possamos nos comunicar uns com os outros, ter uma amizade cívica genuína, solidariedade genuína uns com os outros e garantir que todos possamos prosperar. Mas sim uma sociedade conflituosa, hostil, na qual todos são condenados para sempre a se verem, mais do que qualquer outra coisa, como membros de uma das tribos concorrentes. Muitas pessoas, quando ouvem sobre minha tese e quando sabem sobre minhas sérias preocupações com o populismo de direita, estão dizendo: pessoas como Trump e Bolsonaro não são mais perigosas? Não deveríamos estar nos concentrando na luta contra eles? Mas acho que isso é um erro estratégico.

Por quê?
Embora o identitarismo de esquerda e o populismo de direita estejam em desacordo entre si no plano ideológico, em termos políticos práticos, um é o complemento do outro. Nos Estados Unidos, foi a vitória de Donald Trump — e talvez no Brasil tenha sido a vitória de Bolsonaro — que permitiu que essas ideias woke, entre aspas, conquistassem grande parte da esquerda. Eles rapidamente as adotaram, como uma resposta contrária. Mas hoje é o domínio que essas ideias têm sobre muitas instituições mainstream e grande parte da esquerda que está levando os eleitores para a extrema direita. E você vê isso muito, muito claramente nos Estados Unidos, onde Donald Trump agora é favorito, em grande parte, porque eleitores não-brancos, latinos e afro-americanos, por exemplo, se aproximaram dele em grande número, porque não gostam de ser estereotipados nessas formas de política de identidade, em que as pessoas acham que Trump é um extremista. Eles também acham que Biden, sendo um democrata, é ideologicamente extremista. A melhor maneira de vencer essas formas de populismo de direita é argumentar a favor de uma forma de política inclusiva, uma sociedade tolerante, mas baseada no bom senso em vez desse tribalismo identitário.

Nos anos 60, 70, talvez até nos anos 50, alguns cientistas políticos definiam os eleitores da esquerda como geralmente pertencentes à classe trabalhadora e os eleitores da direita pertencendo aos grupos mais ricos da sociedade. Agora, estamos vendo cada vez mais este estranho fenômeno em que os ricos votam na esquerda e os pobres, na direita. Você acredita que isso tem algo a ver com política de identidade? Tem algo a ver com populismo?
Sim, você está absolutamente certo sobre esse fenômeno. E eu realmente acho que está profundamente ligado à armadilha da identidade. Sabe, uma das afirmações que as pessoas gostam de fazer sobre essa nova ideologia é que ela é de alguma forma a expressão orgânica das demandas de grupos de identidade que são os mais marginalizados e os mais fracos na sociedade. E certamente esses grupos de identidade têm boas razões para querer lutar contra as injustiças e as formas de discriminação que vivenciam, que são absolutamente reais. Mas, quando você olha quem realmente acredita nessas ideias, descobre-se que não são os pobres, não-brancos, as minorias marginalizadas. Acaba sendo as elites sociais.

O que os moderados deveriam fazer para conquistar os eleitores novamente? Na esquerda, há política identitária. Na direita, há política populista, de extrema direita, às vezes xenófoba. E o centro basicamente desapareceu. Social-democratas comuns e liberais, no sentido europeu da palavra liberal, têm perdido votos há algum tempo. Qual é o caminho?
Não há um caminho fácil, e eu não tenho uma bala mágica. Mas há um espaço político claro que se pode ocupar e se sair muito bem. É encorajador. No Reino Unido, Keir Starmer acabou de ganhar uma grande maioria parlamentar. Starmer não é um talento político, não é um político incrivelmente carismático. Mas deixou claro que ouve as preocupações dos eleitores comuns, diz que vai garantir que experimentem um crescimento econômico, que vai construir habitações para que os preços das casas diminuam. E ele se distanciou tanto da direita populista, que nunca fez parte de seu partido político, quanto da esquerda identitária, que estava no comando do Partido Trabalhista até alguns anos atrás. Foi essa recuperação clara e custosa do espaço do senso comum político de um mainstream cultural que preparou o caminho para sua vitória. Substantivamente, isso significa duas coisas. Na economia, é defender uma economia de mercado livre, na qual tenhamos uma competição real, na qual pessoas que trabalham duro e conquistam algo e contribuem para a sociedade sejam recompensadas. Mas uma economia de mercado livre que tenha um forte Estado de bem-estar e proteções fortes para aqueles que são menos afortunados, garantindo que se tenha uma vida digna, mesmo se adoecer, mesmo se tiver um acidente e mesmo se você não for capaz de fazer uma grande contribuição para a economia, contanto que esteja disposto a fazer o que puder. Na cultura, é ser muito claro a favor de uma sociedade diversa, porque um país como o Brasil, os Estados Unidos, e a maioria das sociedades europeias já são diversas, a favor da tolerância, da inclusão. Mas uma sociedade que também seja capaz de reconhecer que ver as pessoas apenas através do prisma da identidade, desistir da ideia de que todos somos concidadãos e reduzir nossa sociedade a comunidades, é equivocado.

A atração dos opostos

O ditado popular “os opostos se atraem” serve para justificar aquelas relações amorosas entre pessoas bem diferentes e, nesta semana, essa ideia pairou sobre o plenário da Câmara. No apagar das luzes do semestre, o PSOL, com seus ideais de esquerda, e o liberal Novo reeditaram a convergência de suas cargas opostas. Dessa vez, a atração se deu contra a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC 9-23), que livrou partidos políticos das multas impostas pela Justiça Eleitoral pelo não cumprimento das cotas de candidaturas de mulheres e de negros nas eleições passadas.

O alinhamento nas votações entre os dois partidos situados em campos opostos não é inédito e, desde a semana passada, essa união já dava sinais de que se formaria novamente contra a proposta, cujo texto original tem como primeiro signatário o deputado Paulo Magalhães (PSD-BA).

Todas as outras legendas desejavam que a emenda fosse a plenário antes do recesso parlamentar de duas semanas que se inicia na próxima segunda-feira, e antes, claro, das eleições municipais. Todos também estavam certos do desgaste de imagem e, por isso, líderes partidários hesitavam em mostrar a cara na defesa da proposta.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por sua vez, não estava disposto a mais um ônus, depois de ter amargado cartazes de “fora Lira” expostos nas manifestações contra o projeto antiaborto, aquele que ele conseguiu aprovar em votação simbólica, sem sequer citar, na sessão, o que estava sendo apreciado pelos deputados.

Nesse contexto, o contraponto firmado pelo Psol e pelo Novo só atrapalhava os planos de discrição na aprovação da PEC. Mas, de certa forma, o alinhamento das duas legendas altamente ideológicas irritava menos o alagoano que a omissão de quem queria a votação da emenda, mas esquivava de defendê-la em público. “Quando os partidos políticos que estão interessados neste texto concordarem com um texto a gente volta a pautar”, disse o presidente da Câmara após a primeira tentativa de votar a PEC, que era o primeiro item da pauta do plenário esvaziado.

Igualmente ideológicos

Não são raras as vezes em que o Novo e o PSOL, ainda que por motivos diferentes, se alinham contra todos nas votações. Foi assim, por exemplo, em relação ao novo arcabouço fiscal, primeira e mais importante pauta econômica enviada pelo governo ao Congresso no início de 2023. Para o PSOL, a proposta limitava muito o poder de gastos do Estado e “partia de uma premissa liberal de congelamento de gastos”, como disse, na época, a deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS). Já para o Novo, o arcabouço significava uma “licença para o governo federal gastar”, usando a expressão utilizada na época pelo deputado Gilson Marques (Novo-SC).

As duas legendas estiveram também entre as poucas agremiações que marcaram posição contra o grande acordo para reconduzir Lira ao comando da Casa, em 2023 e lançaram as candidaturas de Chico Alencar (PSOL-RJ), que teve 21 votos, enquanto o Novo lançou Marcel van Hattem (Novo-RS), que contou com o apoio de 19 deputados. Lira, por sua vez, foi eleito com 464 votos, dos 513 deputados, um recorde.

Apesar das visões díspares sobre o papel do Estado, PSOL e Novo têm muito mais em comum do que reconhecem seus próprios integrantes. E, na quarta, na sessão que aprovou a PEC da Anistia, como ficou conhecida, a deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) achou por bem se dedicar a mostrar a diferença entre os dois partidos na tribuna da Câmara. “Primeiro que tem que ver os golpistas do 8 de janeiro serem presos para ver o Marcel van Hattem falar de direitos humanos para os presidiários. Eu defendo direitos humanos para todos e que lugar de golpista é na cadeia”, provocou a deputada gaúcha, apontando, no seu entender, o casuísmo do seu colega da bancada estadual, Marcel van Hattem, que minutos antes havia discursado informando que o Novo era contra a matéria por achar injustas as cotas de gênero e raciais.

Casuísmo por casuísmo, o cientista político Bruno Bolognese, professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), aponta os casos que ele identifica no PSOL. “O PSOL condena o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?”, questionou. “Então casuísmo tem de lado a lado.” Esses partidos parecem que são diferentes mas não são. “É necessário se levar em conta que a gente está falando de dois partidos, relativamente novos, radicalmente ideológicos”, ponderou Bolognese. E é essa ideologia muito clara e manifesta que acaba obrigando as duas legendas a responder para outros setores da sociedade que não fazem parte da lógica fisiológica que, muitas vezes, move a Câmara. “Eles dependem mais do engajamento da base, que precisa ser mantida mobilizada”, destacou o professor em conversa com o Meio.

É necessário ter em mente que estamos falando de partidos que são ideologicamente opostos, mas são igualmente ideológicos. E é nesse ponto que as duas legendas se encontram: colocando-se contrárias aos chamados acordões que ocorrem, muitas vezes, na lógica do Congresso. Dificilmente os dois partidos lucrariam se adaptando aos acordos. O fisiologismo que perpassa os partidos de centro direita, como o PSD, o MDB, o PP de Lira, o Republicanos, controlado pela Igreja Universal, e o próprio PT, com seu corporativismo, não lhes serve diante da necessidade de manter seus territórios políticos.

O gosto dos outros

Não dá para descomer, assim como também é impossível desver. Acho que essas palavras nem existem, enfim, não é possível excluir uma experiência que atravessa os sentidos, e acabo de lembrar da celeuma de uma professora de redação que categorizava todo texto que começasse com ‘não’ como ruim. Ou terminasse assim. Bom, posso recomeçar.

A sensação de estar no meio de uma guerra dentro da cozinha tem suas raízes: os termos bélicos, herdados dos cozinheiros que alimentavam batalhões no exército francês, resistem até hoje: a “brigada” (conjunto de pelotões), a “marcha”, a “dólmã”, o controle da produção na entrega sincronizada dos pratos, a autoridade. O chef executivo seria a quarta força armada, junto com brigadeiros, marechais e almirantes. Sem ele, ninguém dá um passo, as barrigas seguem vazias.

Disciplina, normas-padrão, hierarquia. Creio que  a série The Bear (O Urso, em português) tenha sido recomendada a todos os chefs do mundo, assim como foi recomendada a mim por inúmeros amigos. Avesso a séries, mordi a língua ao maldizer sem antes ter visto. Trauma dos realities sobre cozinha que nunca me convenceram. Se eu aguardava ansiosamente a terceira temporada, que chega à Disney+ no próximo dia 17, planejo o melhor momento para assisti-la, como quem prefere ir a um restaurante específico num dia menos lotado.

Me tornei chef executivo depois de trabalhar por 5 anos colaborando em um buffet, pesquisando receitas e processos de produção e armazenamento, avaliando custos e durabilidade, uma coisa bem da engenharia de alimentos (isso descobri depois). Um sofrimento muito parecido com o que a Sydney – a cozinheira que vai trabalhar com o chef Carmy no restaurante de sua família –, passa na segunda temporada, tentando desenvolver um prato novo. Minha formação é em Desenho Industrial, de onde aproveitei algumas disciplinas para ingressar na cozinha. Ah, minha mãe também teve um restaurante entre 2007 e 2017, mas em 2007 ela estava preocupada apenas em fazer uma boa comida. Um primo meu, que foi estagiário dessa cozinha e adquiriu a operação, estava preocupado em fazer boa comida e também evitar a qualquer custo uma avaliação ruim no Google Maps – e no falecido aplicativo Foursquare.

O raio gourmetizador midiático não poupou os chefs de cozinha. Junto com a onda dos realities, nasceram diversos programas (não gosto de absolutamente nenhum) que fazem com que chefs duelem entre si, avaliados por outros profissionais “renomados”. Tem um quê de forçação ali nos esporros e nas broncas que não convencem. Afinal, ali, a relação não é pessoal e não coloca abaixo a reputação de um estabelecimento. Toda cozinha é uma família. Guerras internas nunca serão bem-vindas.

Apesar de o chef levar a fama pelo lugar que comanda, nenhuma cozinha é feita de uma pessoa só. O restaurante é feito do entregador de insumos ao lavador de pratos, que recolhe o lixo e as sobras de comida. Se antes a missão de um estabelecimento era servir comida boa, hoje ela precisa saciar outras fomes, como, por exemplo, a fome de aparecer.

Na primeira temporada, de 2022, Carmy busca tatear o terreno familiar e distante da biboca deixada por seu falecido irmão. O sonho do restaurante começa a ser desenhado mesmo na segunda temporada. Me identifico com o hiperfoco de Carmy na missão de construir seu restaurante. Não é uma celebridade que precisa alimentar suas redes sociais com seu ego gigante e inflado, cagando regras. E acho que é nesse lugar que o chef de The Bear dialoga com a esmagadora maioria dos chefs, cozinheiros e afins do mundo inteiro.

Confesso que a parte dos dramas individuais não me comove tanto quanto os confrontos e as soluções que acontecem dentro do restaurante. Imagino que outras pessoas que têm passagem por uma cozinha sabem exatamente o que é sofrer a pressão e a crítica de produzir o almoço da equipe toda (o family meal), de dar conta de todos os pedidos feitos pela máquina de comanda desregulada, sabe o que é beber água no pote de mantimentos, conter surtos violentos de colegas ou até mesmo apagar um incêndio (ok, isso não está na série, mas vivi de verdade). Ficar preso na câmara fria? Quem nunca? Deixar cair toda a produção de uma semana nos pés? Receber uma advertência da vigilância sanitária por um vacilo? É do jogo. Mas são essas situações, retratadas com a câmera frenética, que nos aproximam das angustias das personagens que fazem o chef que hoje hiberna dentro de mim esperar o momento certo para reencontrar o urso Carmy, Syndey e seus sonhos na terceira temporada da série.

Espero que a minha ex-professora de português aprove esse texto. Ou talvez tenha que recomeçar, com a cidade que sonha entre a escalada do dólar, a indigestão óbvia dos ultraprocessados e o absurdo a que chegaram os preços do azeite.

Das melhores cidades para morar no Brasil aos memes da derrota na Copa América, os mais clicados da semana mostram o quanto a curadoria do Meio consegue ser plural:

1. IPS Brasil: A pontuação de cada cidade brasileira no Índice de Progresso Social.

2. CNN: O que se sabe da operação da Polícia Federal sobre a Abin Paralela.

3. Terra: Os melhores memes da eliminação do Brasil na Copa América.

4. Japan Times: O robô humanoide que faz manutenção das ferrovias no Japão.

5. Meio: O Ponto de Partida sobre pobre que vota na direita.

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