Edição de Sábado: Biden e a sombra de 1968
A polícia descia com virulência os cassetetes, na noite de 28 de agosto, em 1968, em frente ao Anfiteatro Internacional de Chicago. Ali dentro, as delegações estaduais do Partido Democrata tentavam definir quem seria o candidato à presidência do partido. Fora, desde a tarde, polícia e jovens manifestantes de esquerda se já enfrentavam com violência crescente. Bombas de gás foram atiradas. Policiais erguiam baionetas, os rifles com faca na ponta que pareciam vindas de uma guerra do início do século. Apenas um dia antes, Walter Cronkite, âncora da TV CBS, o homem visto como o mais confiável de todos os Estados Unidos, havia mandado apontar as câmeras ao vivo, ali mesmo dentro da convenção, quando seu melhor repórter começou a ser agredido por seguranças do partido. “Não toque em mim a não ser que tenha a intenção de me prender”, falava ao vivo Dan Rather, o correspondente na Casa Branca. O mesmo homem que, alguns anos antes, havia informado o país de que o presidente John Kennedy estava morto. A violência vinha crescente, e de toda parte, nos Estados Unidos daquele ano. O pastor Martin Luther King havia sido assassinado. O senador Robert Kannedy o seguiu. O presidente Lyndon Johnson, sob pesada pressão, renunciou à candidatura e não disputaria a reeleição. Os protestos contra a Guerra do Vietnã convulsionavam o país. E enquanto os democratas se dissolviam no caos, um populista de direita se preparava para se eleger presidente. Richard Milhous Nixon.
2024 não é 1968. Não há assassinatos políticos nos Estados Unidos. Mas os últimos cinco ou seis anos vêm forçando semelhanças. Nunca um período da história esteve tão parecido quanto aquele — e isso preocupa. O movimento Black Lives Matter chegou, em seu braço mais radical, a propor o corte de verbas e até a extinção da polícia no país. Como os Panteras Negras discursavam dizendo que a polícia era inimiga de todo cidadão e cidadã negros. A Ku Klux Klan estava ativa como nunca, assim como manifestantes de extrema direita marcharam com tochas em Charlottesville jurando que não seriam substituídos por judeus. O movimento estudantil caiu para a esquerda em 1968, por conta da Guerra no Vietnã, como nunca fizera antes. Como ocorre agora, por conta da Palestina. São momentos raros, 68 e 24, em que a esquerda estudantil se descolou por completo do núcleo do partido democrata. O populismo autoritário de direita não era visto, nos EUA, desde a Guerra Civil. Mas em 1964, com a candidatura do senador Barry Goldwater, um racista declarado enfrentou Johnson pelo flanco republicano. Ele perdeu, e perdeu feio. Mas transformou o partido que agora escolhera Nixon para 1968. E, perante o caos da esquerda, o desastre do Vietnã, apesar de ter feito um governo de muito sucesso internamente, muito sucesso principalmente em avançar com os direitos civis de afroamericanos e eliminar de vez a pobreza extrema no país, Johnson se viu repudiado por completo pela esquerda. Encurralado. Até decidir aquilo que Joe Biden não parece conseguir fazer. Desistir de uma candidatura condenada ao fracasso.
Renúncia
“Boa noite, meus companheiros americanos. Nesta noite, quero falar com vocês sobre paz no Vietnã e no sudeste asiático.” Não era só disso que o presidente dos Estados Unidos queria falar. Eram 21h de um domingo, 31 de março. Lyndon Baines Johnson, então com 60 anos, estava solene. Convocara rede nacional para fazer um pronunciamento, de cerca de 40 minutos, absolutamente ciente da gravidade de cada palavra, de cada movimento que escolhesse fazer. Na reta estavam a vida de meio milhão de rapazes americanos, já àquela altura desorientados num país de densa selva tropical, lentamente se afundando no outro lado do mundo. Enquanto travavam uma guerra mais que inglória, Johnson via derreter, por consequência da sua decisão de mandá-los para lá, o destino de seu partido, sua carreira política e seu legado. Talvez a própria democracia, ameaçada diante de uma divisão tão contenciosa entre os cidadãos americanos.
Por isso, na véspera, Johnson pedira conselhos a Horace Busby, um assessor que escrevia seus discursos mais importantes, sobre o que dizer. Ouviu que o prazo estava se esgotando. Na terça-feira seguinte, aconteceriam as primárias de Wisconsin, em que, por lei, todos os candidatos à eleição presidencial daquele ano deveriam aparecer na cédula. Se Johnson quisesse desistir de tentar a reeleição, seria melhor que o fizesse logo, antes de perder uma primária e dar a entender que sua renúncia era choro de perdedor.
LBJ, como era conhecido, contemplava a possibilidade de não concorrer havia meses. Catapultado ao cargo depois da morte de John Fitzgerald Kennedy, de quem era vice, em 1963, e eleito como cabeça de chapa em 1964, ele estava cansado. Em meados de 1967, já havia pedido a seu secretário de imprensa, George Christian, que produzisse um rascunho anunciando sua decisão de não disputar novamente. Àquela altura, sua maior preocupação era a saúde. Embora relativamente jovem, o presidente já havia sofrido um ataque cardíaco doze anos antes e sabia que os homens de sua família morriam cedo.
Mais do que a morte, Johnson temia a invalidez. Sua mulher, lady Bird, pausava aflita diante do quadro de Woodrow Wilson na Casa Branca, que sofrera uma série de derrames incapacitantes depois de negociar o fim da Primeira Guerra Mundial. “Eu sei o que sempre penso diante do retrato de Wilson. Naquele rosto você vê o pedágio do cargo”, ela escreveria a um amigo. Só que optar por não tentar permanecer no cargo mais alto de um dos países mais poderosos do planeta não é algo que se faça sem pesar — e sopesar.
Johnson recuou. Chegou a considerar fazê-lo em janeiro, no discurso de Estado da União, mas ponderou que não ornava anunciar um grande plano de combate ao crime e uma renúncia à reeleição no mesmo dia. E tinha esperança de fazer um discurso inspirador o suficiente para unir a população, profundamente cindida e hostil, e dar a partida em sua campanha. O que havia acontecido? Em 1963, os Estados Unidos pareciam tão unidos na tristeza da morte de um jovem e carismático presidente. Não mais. Eram americanos contra americanos. Havia raiva nas ruas. E assim, em 31 de março de 1968, Lyndon Johnson, o 36º presidente dos Estados Unidos, anunciou que não concorreria à reeleição, deixando o país todo estupefato. Era disso que Johnson queria falar naquela noite.
O peso de uma guerra
O desempenho desastroso de Joe Biden no debate contra Donald Trump — confronto que ele mesmo convocou antecipadamente — e as dúvidas sobre a saúde do presidente colocaram o Partido Democrata, e a mídia simpatizante, em pânico. Antes mesmo já se ensaiava a comparação com 1968, que se intensificou dramaticamente na última semana. A maioria dos que recorrem a ela argumenta que a renúncia de Johnson é inspiradora, que ele colocou as necessidades do país acima de seu desejo de poder, e que Biden deveria seguir seu exemplo diante do que parece ser uma cada vez mais provável derrota para Trump. Alguns vão além e sugerem que Biden renuncie não só à corrida presidencial mas à presidência, dando espaço para que sua vice, Kamala Harris, cresça e apareça como candidata. Do outro lado, estão os que apontam que Johnson desistiu da disputa, mas os democratas optaram por um novo candidato que não foi capaz de lhes entregar a vitória. Na prática, a decisão de Johnson entregou os EUA a Richard Nixon e, a seu modo, o republicano também corroeu a democracia quando agiu para sabotar a eleição de 1972.
Mais do que o desfecho daquele pronunciamento de março de 1968, a comparação pode se estender ao contexto político dos EUA naquele momento. E o primeiro ponto em comum é o fato de que o país está hoje, como estava lá atrás, envolvido numa guerra cujo propósito é questionado por uma parte importante do eleitorado identificado com os democratas. Claro, a ressalva é importante, os EUA não estão lutando em Gaza. Mas apoiam Israel — como sempre apoiaram, tanto democratas quanto republicanos. Principalmente e historicamente, democratas, o partido de preferência da maior comunidade judaica fora de Israel no mundo. No final de 1967, mais de 500 mil soldados americanos estavam no Vietnã e ao menos 15 mil morreriam em combate. Aquela era uma guerra escolhida por Johnson, construída por Johnson, ampliada por Johnson. E os generais ainda vinham pedindo mais 200 mil homens e US$ 12 milhões para tentar vencer quando muitos, no governo, já sentiam que a vitória era impossível. Mas a natureza da pergunta que paira agora e atormentava o flanco mais à esquerda do Partido Democrata em 1968 é a mesma: O que estamos fazendo com aquelas pessoas no Vietnã/Palestina? O que o país faz, fora de suas fronteiras, com pessoas não-brancas?
Muitos especialistas insistem que a dimensão dos protestos anti-guerra na Faixa de Gaza não é, nem de perto, comparável aos dos contra a Guerra do Vietnã. Eles pipocavam, numerosos, em todo o país, o que dificultava até a locomoção de Johnson para a campanha. Acontece que o efeito de ambos os descontentamentos é semelhante: o racha na esquerda americana. E aqui cabe a nota de que a esquerda nos EUA é de liberais progressistas, em sua imensa maioria. Não tem as raízes marxistas da esquerda europeia e latinoamericana. Embora haja, dentro do Partido Democrata, uma ala que urge por um recuo da Casa Branca em seu apoio incondicional a Israel, esse não é nem de perto o consenso. O encontro que existe é o de repúdio à intransigência do governo de Benjamin Netanyahu. Chuck Schumer, líder democrata no Senado e o judeu de cargo mais alto na democracia americana, denunciou em plenário a postura de não negociação do atual governo israelense. Mas boa parte dos eleitores do partido, e o comando democrata, apontam para a esquerda ter perdido sua capacidade de perceber nuances. Israel tem o direito de se defender após sofrer o ataque mais bárbaro de sua história. Em contraposição, fora dos quadros partidários, há uma juventude que se revoltou com a intensidade da reação de Israel ao ataque terrorista de 7 de outubro a ponto de adotar slogans e posturas antissemitas. O fato é que há eleitores que seriam cativos de Biden simplesmente lhe virando as costas.
Nas primárias de New Hampshire, em março de 1968, Johnson quase perdeu para o outro democrata que decidiu tentar a indicação do partido, senador Eugene McCarthy, de forte discurso anti-guerra do Vietnã. Não bastasse, quatro dias depois, em 16 de março, um outro democrata, dinástico e imensamente carismático, também contrário à guerra, se apresentaria como candidato. Era Robert Fitzgerald Kennedy. Bobby. Irmão do presidente assassinado e que detestava Johnson. O apreço era mútuo. LBJ pressentia uma derrota nas primárias de Wisconsin, na terça seguinte a sua renúncia.
A popularidade de Johnson afundava — o índice de aprovação caiu de 61% no início de 1966 para 38% em outubro de 1967. A situação de Johnson havia se agravado nessa frente quando, no fim de janeiro, forças do Norte do Vietnã (soldados do Exército norte-vietnamita e vietcongues) empreenderam a Ofensiva do Tet. Apesar de caótica, e ao fim, fracassada, a operação teve sucesso em desmanchar qualquer ilusão de progresso na empreitada militar e a respeito do comando do presidente. Antes da ofensiva, 50% dos americanos achavam que os EUA estavam avançando para uma conclusão positiva na guerra. Depois, essa parcela caiu para 33%. E espantosos 49% diziam que os EUA não deviam ter se metido com o Vietnã para começo de conversa. Era uma guerra insustentável politicamente.
Quem vem?
Bobby Kennedy ainda tinha mais um atrativo. Ele era muito próximo de Martin Luther King, o líder do movimento negro americano. E essa era a contenda interna com a qual Johnson precisava lidar. Johnson conseguiu implementar, em alguma medida, sua “Grande Sociedade” — programa social que levou ao estabelecimento do Medicare e do Medicaid, o maior avanço em saúde pública da história até o Obama Care. E foi em sua gestão, em 1964, que se assinou o Civil Rights Act, a legislação que proibia a discriminação com base na raça, cor, sexo, origem nacional ou religião. Só que a violência policial contra negros nos grandes centros e a demora da sociedade para superar a nefasta segregação turbinava tanto o movimento pacifista de Luther King quanto o armado dos Panteras Negras. Somado aos manifestantes contra a guerra, e até a um grupo terrorista de esquerda, o Weathermen, esse conjunto de revoltosos formava um caldo de inquietação que tomava ruas às multidões. Era uma esquerda completamente desalinhada do mainstream do partido que Johnson, um texano conhecido pela capacidade de costura de acordos parlamentares, representava.
Da mesma forma, hoje, a esquerda radicalizada — que tem, além dos universitários pró-Palestina e virulentamente anti-Israel, o Black Lives Matter e os movimentos que defendem o “Defund the police”, ou o fim dos recursos para a polícia — está dissonante de Biden e do mainstream do partido. (E, nesse ponto, a vice Kamala Harris, mulher negra, tem um apelo importante com a demografia alvo dos democratas). Se não há hoje um substituto de Biden com a força de um Robert Kennedy, numa mórbida semelhança, em 1968, também não haveria, no fim das contas. Bobby foi assassinado no dia 6 de junho (por um palestino, mas que, até onde se provou, não agiu motivado por esse conflito). Aquele annus horribilis da política americana também já tinha testemunhado o assassinato de Luther King, em abril.
Mas, quando Johnson decidiu desistir da campanha, havia para os democratas uma alternativa muito plausível de vitória com Bobby enfrentando o republicano Richard Nixon, cuja plataforma principal era a restauração da “lei e da ordem”. Bobby parecia ser capaz de juntar a esquerda e o centro democratas, a elite do partido e os jovens mais combativos. Mas Bobby não houve. Perdeu a vida quando estava prestes a vencer a primária do maior estado, a Califórnia.
Naquele pleito, havia um terceiro candidato posto, um candidato independente, porém relevante: George Wallace, então governador do Alabama, ligado à Ku Klux Klan, pró-segregação. Ele fora do Partido Democrata antes e voltaria a se filiar aos democratas depois. Em 1968, os democratas ainda carregavam em seu interior os racistas do Sul que vinham do tempo da Guerra Civil e os republicanos ainda eram o “partido de Lincoln”. Foram justamente os governos de Kennedy e Johnson, ao forçar o fim da ideia de que segregação poderia ser legal, que inverteram os sinais. Por isso, em 1968, Wallace ainda atraiu votos democratas no Sul com seu discurso abertamente racista.
Mas Nixon também perseguia esses votos, com sua Southern Strategy, e se rendeu à retórica da direita populista inaugurada pelo republicano Barry Goldwater. Eles implementaram o programa de atrair para o partido aqueles eleitores ligados ou simpáticos à Ku Klux Klan que foram alienados pela política democrata dos anos 1960. Não à toa, Trump, o presidenciável que responde a quase 90 acusações criminais em quatro processos distintos, copia descaradamente Nixon e sua promessa de “lei e ordem” — e desde 2016. Numa primeira camada, no discurso xenófobo, baseado na ideia de que os imigrantes ilegais promovem a criminalidade no país. Agora, sua investida mais recente é na insistência de que as cidades administradas por democratas enfrentam uma verdadeira anarquia, beirando a guerra civil, de tanta violência. Como de costume, nada disso se sustenta nos fatos.
Os democratas chegaram às eleições de 5 de novembro de 1968 com Hubert Humphrey como candidato. Ele era vice de Johnson e herdou o ônus da impopularidade da guerra. Não tinha qualquer relevância, apesar do cargo. Era, por si, uma ausência. Mais do que isso, foi escolhido na convenção democrata de agosto, em Chicago, a portas fechadas. Do lado de fora, enormes protestos anti-guerra e pelos direitos civis tomaram forma e foram brutalmente reprimidos pela polícia. O caos se instalou. Como se os democratas de 2024 estivessem convidando a balbúrdia para sua festa, a convenção partidária deste ano está marcada para acontecer em Chicago também. Ativistas pró-Palestina já estão na Justiça lutando pelo direito de protestar diante do United Center. E, se depender de parte relevante do partido, é possível que se chegue à convenção sem um candidato à presidência definido.
Diferentemente de Johnson, Biden assegurou sua indicação nas primárias deste ano. Não sem ouvir um sonoro voto de protesto de mais de 650 mil democratas, que marcaram “descompromissados” nas cédulas ou escreveram outros nomes. Como aconteceu depois da morte de Robert Kennedy, o partido não tem hoje um candidato pronto para assumir o lugar de Biden. E o risco de derrota para Donald Trump seguirá grande. Trump junta, em si, o reacionarismo racista de Goldwater com a completa falta de escrúpulos de Nixon. Ele tem, em si, as piores características dos dois piores candidatos republicanos do século 20.
E, enquanto o Partido Democrata demora para se decidir, os EUA simplesmente pararam de prestar atenção no perigo que o republicano representa. A Suprema Corte concedeu a Trump, um candidato que fala abertamente de vingança e retaliação, imunidade quase total. Os reacionários que o apoiam montaram o Projeto 2025, plano de tomada da máquina federal para reformular os princípios da autoproclamada “maior democracia do mundo".
Nos 39 minutos de discurso que antecederam o anúncio surpreendente de sua desistência, Johnson fez questão de pontuar que ia lutar pela paz a qualquer custo. Que cessaria os bombardeios ao Norte para trazer os vietnamitas à mesa de negociação para valer. E que, para cuidar do povo americano, precisaria estar inteiro na função de presidente, sem gastar energia buscando a reeleição. Colocou o legado de sua presidência acima do seu legado pessoal. Biden será capaz de fazer o mesmo?
Ninguém chamou o ‘menino do Franklin’
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atribuiu a pressão do dólar sobre o real do início da semana aos “ruídos na comunicação” do governo. Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a alta da moeda norte-americana era um momentâneo e pontual “desarranjo”, rumo mais fácil de se corrigir, segundo palavras do próprio presidente. Lula diz que a economia é a área na qual o governo está sendo capaz de decidir sobre os problemas de forma “favorável ao país", e não às especulações do mercado financeiro e aponta como artificiais as instabilidades da moeda perante o dólar. Se na cabeça do presidente funciona a oposição entre o que é favorável ao país e o que agrada o mercado, na de Haddad, a dinâmica não é exatamente a mesma.
E, na quarta-feira, essa dissonância entre os dois estava posta à mesa, desde o café da manhã no Palácio da Alvorada, até a reunião da noite, da qual o ministro saiu com o aval de Lula para cortar R$ 25,9 bilhões em despesas. E mais, a determinação do presidente para que seja cumprido do arcabouço fiscal. Vitória de Haddad, que havia iniciado a semana reclamando dos ataques de Lula à autonomia do Banco Central e ao presidente da instituição. Roberto Campos Neto é bolsonarista e não faz questão de esconder. Ele tem simpatia pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e também não se furta em demonstrar. Mas, segundo avaliações de pessoas do próprio BC, Campos Neto tem tomado decisões técnicas em relação à política de juros. E Haddad conseguiu conter, na quarta, pelo menos por enquanto, essa crítica insistente do petista.
Considerando esse ambiente político e econômico, uma ausência chamou a atenção na quarta. Se o Haddad inaugurou a semana reclamando da comunicação, por que ninguém chamou para o encontro quem, a rigor, seria o responsável pela área? O chefe da Secretaria de Comunicação (Secom), Laércio Portela, não participou das conversas. No caso de a reclamação sobre a comunicação não ter sido um mero eufemismo de Haddad para frear os ataques de Lula a Campos Neto, a tarefa de afinar o discurso não deveria prescindir do comando da área.
Cadê o perfil?
Portela assumiu há quase dois meses, quando o gaúcho Paulo Pimenta (PT), até então titular da Secom, partiu para os Pampas com o objetivo de conduzir o ministério extraordinário da Reconstrução do Rio Grande do Sul. A escalação de Pimenta para a tarefa no estado obedeceu a duas lógicas. Uma do governo: a de mostrar presença na região após a tragédia provocada pelas cheias. Outra do PT: o partido precisa construir no Rio Grande do Sul, governado pelo tucano Eduardo Leite, uma candidatura competitiva ao Senado ou ao governo.
Para não centrar em Lula, as críticas de Haddad miraram a comunicação, mas chegaram ao Planalto com a área praticamente acéfala. Os processos formados enquanto Pimenta estava na pasta continuam sendo executados. Laércio Portela assumiu o cargo já sabendo que seria de forma interina. Não pôde chamar ninguém para sua equipe. Trabalha com o time de Pimenta. Entre suas funções, manter o assento quente até que o gaúcho reassuma o cargo é a dada como mais certa no Planalto. E essa condição provisória é tão explícita que o Planalto não se deu ao trabalho de atualizar o perfil do ministro na página da própria Secom, onde segue destacando a biografia detalhada de Paulo Pimenta.
Nessa condição, Portela não se arvora a executar funções que cabem ao cotidiano da pasta. Antes, quando Pimenta era titular, quase que semanalmente o gaúcho descia ao primeiro andar do Planalto para falar com jornalistas do comitê de imprensa. Isso ocorria, principalmente, em momentos nos quais era necessário conter nas redes reverberações de notícias negativas ou falsas sobre o governo, sobre Lula, sobre a primeira-dama, Janja, ou sobre a tragédia do RS, por exemplo. Em todos esses temas, Pimenta tentou influenciar. A provisoriedade de Portela não o autoriza a fazer nem isso. E não é que ele não saiba fazer. Quando atuava nos primeiros mandatos petistas, o atual titular da Secom era uma fonte constante de contato com a imprensa.
Cartilha
Apesar da falta de poder de decisão, a chegada de Portela ao Planalto lembrou a Lula uma antiga prática de comunicação, que o presidente cumpria à risca nos seus dois primeiros mandatos: o de privilegiar veículos locais com suas viagens para entregar feitos do governo. É nesse ponto que Laércio conta com a admiração de Lula. O presidente o mandou chamar de volta ao governo, referindo-se a ele como “aquele menino do Franklin”, em referência ao ex-ministro Franklin Martins.
Com a chegada de Portela à Secom, Lula reeditou essa cartilha, intensificou entrevistas e deixou de passar direto diante da insistência dos jornalistas. Tem parado com mais frequência para fazer um “quebra-queixo”, nome que se dá no jargão jornalístico àquela entrevista improvisada com todos se acotovelando diante do alvo. No início de 2022, Franklin usava esse mesmo rito na organização da comunicação da pré-campanha do petista. Mas acabou saindo após o PT reivindicar o controle da comunicação. O presidente gosta do método, se afina mais com Franklin, mas respeitou a investida do PT na época.
A partir dessa exposição maior, os “ruídos” apareceram. Haddad precisou ser acionado para que a contenção fosse feita. Se dessa vez Haddad obteve sucesso perante o presidente, resta saber o quanto ele conseguirá repetir o feito nos próximos meses, com o presidente viajando pelo país em clima de campanha para a estratégia municipal do PT. Lula gosta de falar e fica mais à vontade na dinâmica de Franklin, mas poderá ter que optar pela moderação para não abalar os ânimos do mercado ou aprofundar a polarização, que inflama os humores eleitorais. A ver.
Um contador de histórias
Na próxima sexta-feira, dia 12, começa o Jardim Sonoro – Festival de Músia de Inhotim. Em três dias, entre as obras de arte contemporâneas e os jardins deslumbrantes, uma série de músicos irão se apresentar, entre eles, os brasileiros Paulinho da Viola, Juçara Marçal e Aguidavi do Jêje, o jazzista americano Joshua Abrams com sua Natural Information Society, a saxofonista americana Zoh Amba, o baixista francês Kham Meslien, a dupla Ballakée Sissoko & Vincent Segal, que une França e Mali, e o angolano Kalaf Epalanga.
Desses artistas todos, Epalanga, que se muda jovem para Lisboa, transcende a música. Sim, ele foi a voz e o principal letrista do Buraka Som Sistema, grupo fundamental a misturar ritmos africanos como o kuduro com música eletrônica, mas antes de se entender músico, ele se considera um contador de histórias. Epalanga já tem quatro livros lançados, entre eles o romance Também Os Brancos Sabem Dançar e a recente coletânea de crônicas Minha Pátria É a Língua Pretuguesa, ambos lançados no Brasil pela editora Todavia.
Em Inhotim, ele irá se apresentar duas vezes. Primeiro, na sexta, numa conversa sobre literatura, e, depois, fechando a programação do sábado, com um DJ set em que promete tocar uma seleção que dialoga com a produção brasileira e angolana dos anos 70 e 80. De Lisboa, ele conversou com o Meio por telefone, num papo sobre música, literatura, Brasil, África e Europa. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
A última vez que eu vi você discotecar foi na Casa de Francisca, no ano passado, dentro do projeto Kizomba Design Museum, que acontecia ao mesmo tempo que a 35ª Bienal de São Paulo. Agora você volta ao Brasil para um festival em Inhotim. Fale um pouco dessa intersecção entre a música e o ambiente das artes visuais.
São as histórias. Eu me considero um contador de histórias acima de tudo. Se elas são vinculadas à música ou a qualquer outra expressão artística, é válido. É a questão da provocação. Quando, em vista de outras frequências e latitudes, me convidam a colaborar, é sempre um motivo de honra para mim. Embora eu não me considere um artista multidisciplinar, sou motivado pelas histórias e é assim que eu consigo me envolver com a arte, com a cultura, sempre procurando uma forma de resgatar memórias, coisas que estão meio esquecidas, invisíveis para um grupo de pessoas, e usar a arte para trazer essas memórias para o presente.
No seu último livro de crônicas, Minha Pátria é a Língua Pretuguesa, você se aproxima do pretuguês, um termo criado pela escritora mineira Lélia Gonzalez. Como é essa aproximação com a Lélia, com esse pensamento e, de certa maneira, com o Brasil e esse trânsito afro-atlântico?
Eu sou muito aficcionado pelo Brasil dos anos 80. Por Martinho da Vila, não só o músico, mas o pensador. Por Chico Buarque, Djavan. São artistas que desde muito cedo construíram essa ponte com a África de expressão portuguesa. Sempre lembro às pessoas do Projeto Kalunga, com 60 artistas brasileiros que passaram por Angola em 1980. Nós nos inspiramos nessa mesma premissa, nessa vontade de fazer pontes, de juntar mundos. A diáspora africana no Brasil parte dessa região do Congo e de Angola, então, tudo que essa comunidade produz é algo que, para mim, na minha casa, desde meus avós até meus pais, sempre foi partilhado. Não vamos esquecer uma coisa muito importante: o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola. Por essa razão, a produção intelectual brasileira sempre esteve muito junto dos arquitetos da nação. Guimarães Rosa, Beatriz Nascimento, toda essa produção intelectual estava presente nas bibliotecas. Eu conheci o Brasil através dessas obras. E esse termo pretuguês é particular dessa vivência. Vai, de certa forma, atravessar o Brasil todo e também se manifesta desse lado do Atlântico. Nos crioulos do Cabo Verde, da Ilha de Bissau, na forma como o próprio português é tratado em Angola. E há a contribuição intelectual das pessoas, que, embora não dominem todos os preceitos linguísticos e acadêmicos, ainda assim contribuem para uma riqueza não só poética, mas também filosófica. E eu acho que é isso que a Lélia promove. E é isso que eu também quis resgatar.
Você tem uma relação especial com Quito Ribeiro. Com que outros artistas brasileiros você troca bastante?
Na música, recentemente, tenho trocado muito com o Russo Passapuso e o BaianaSystem. Fizemos vários encontros e uma imersão na Ilha de Itaparica, na Bahia. E dela nasceram algumas canções, que já vieram ao mundo, e fazem parte de um disco que estou preparando, e mais virão. Além disso, há outras trocas, intangibilidades. Sempre que eu encontro Jeferson Tenório, Eliana Alves Cruz, Djamila Ribeiro, as trocas são muito generosas. Quando nos cruzamos, celebramos muito. Essas conversas são sempre inspiradoras. Saio sempre humilhado.
O Buraca Som Sistema foi pioneiro em unir os ritmos tradicionais de Angola com a eletrônica. Como foi a sua aproximação com esse estilo?
Fui um adolescente curioso, circulando... Primeiro de tudo na escola, depois começando a frequentar cidades como Londres, Paris. Isso foi crescendo a partir daí. Eu cresci em Angola. Um país africano, no sudeste, que esteve fechado para o mundo durante muito tempo por causa da Guerra Civil, por causa do próprio bloco comunista. Então, todas essas questões de cultura pop, da cultura ocidental chegavam até nós com muito atraso. Eu não vivi a explosão do techno ali no final dos 80. Eu não vivi a house music, mas conhecia a disco, Earth, Wind & Fire, e pude ver como a música dessa geração afro-americana evoluiu para o techno, para o hip-hop, com Afrika Bambaataa e todos aqueles pioneiros. Tudo isso, para mim, faz parte também de uma mesma raiz. É tudo música negra. Então, curioso com essas manifestações, eu fui parar lá no drum and bass, no trip-hop. Depois vi que se relacionavam com o jazz e fui mergulhando nisso. Eu já escrevia poesia à essa altura. Fui encontrando poetas, desde Gil Scott-Heron, Sonia Sanchez, Saul Williams, Amiri Baraka. Fiquei imerso nessa realidade, extremamente inspirado. Não entendo a música eletrônica como algo hedonista, pelo contrário, é alimento para a alma e para a mente.
Você é poeta, romancista, músico. Como essas linguagens se entrelaçam no seu trabalho?
Comecei meio como necessidade de ter uma âncora com o meu lugar de origem. Não queria perder essas memórias, perder a minha forma de falar, pensar, expressar. Embora fosse somando e fosse acrescentando novos mundos, era importante para mim estabelecer essa correlação com o lugar de onde eu vinha. O lugar de onde eu venho é foda. Tem gente que eu admiro, que me ensina. Eu digo sempre: não sou o melhor contador de histórias da minha família. E a poesia sempre foi uma forma de eu conseguir manter vivas as histórias que essas pessoas me contavam. Que me contam. Em Lisboa fui encontrando as palavras dos poemas de pessoas de antes de mim, angolanos e, de certa forma, africanos falantes de português antes de mim. Escreveram a partir dessa cidade. Com a mesma necessidade de firmar essa âncora e dizer: eu venho de um lugar específico. E esse lugar me deu o que estou partilhando com vocês. E, claro, dialogando com os meus pares. Eu senti que a primeira geração do hip-hop em Lisboa foi muito pouco estudada, mas fez algo muito importante, porque estava a falar da União Europeia, das questões que a gente está vendo agora, de racismo, de xenofobia. Essas pessoas combatiam isso com palavras e me inspiraram bastante.
Já são quatro livros lançados. Como é o seu processo de escrita? Ele varia a cada livro?
Muito desorganizado. Mas ainda assim, com graça, com um sentido de missão a impulsionar esse processo. Eu sinto que estou em um lugar de privilégio. Circulo pelo ocidente e posso me dar ao luxo de trabalhar com cultura. Sempre que estou procrastinando, tento acordar rapidamente, sair dessa letargia e dizer que, cara, não é todo mundo que consegue fazer isso que eu estou fazendo, do jeito que eu estou fazendo. Então, isso é uma grande motivação. Sabendo que estou ocupando um lugar que poucas pessoas do lugar de onde eu venho conseguem ocupar. Além da beleza, né?
Acha que discotecar também é uma forma de narrativa?
Absolutamente. Os DJs são os grandes curadores da nossa vida. Eles curam emoções, curam estados de espírito. A música salva, de fato. Ela ocupa um espaço tão grande em nossas vidas que, de certa forma, um DJ mantém esses lugares, esses museus ambulantes, esses museus adquiridos. Eu não me considero um DJ, sou mais uma pessoa que olha para canções e para como é que elas, alinhadas umas depois das outras, em uma sala escura, com uma bola de espelho no teto, conseguem emocionar as pessoas. Eu me emociono sempre, porque eu nunca sei como é que vai correr uma noite. Mas a energia dos que estão presentes naquele retângulo dita como a coisa vai funcionar. É sempre surpreendente ver o efeito que a música tem nas pessoas.
Nesta semana, além das eleições francesas e da pesquisa sobre inteligência artificial do Meio, o que fez mais sucesso foram as listas:
1. Guardian: Os protestos em Paris contra a vitória da extrema direita nas eleições (Guardian)
2. Meio: A pesquisa do Meio sobre Inteligência Artificial, lembrando que ainda dá para responder.
3. Independent: Os 50 melhores sites de viagem.
4. Variety: Os 10 melhores filmes de 2024 até agora.
5. Royal Museums Greenwich: A lista dos melhores fotógrafos de astronomia deste ano.