O populismo reacionário como efeito colateral da modernização

Em um momento em que a perplexidade se junta à ansiedade, nada melhor do que recorrer a explicações mais sedimentadas da ciência política

Em política, como na economia, a expectativa é tudo. E, em um mundo interconectado, aquilo que acontece nos países cêntricos possui uma força particular na geração de expectativas: é o famoso “efeito demonstração”. E o mau desempenho de Biden no debate contra Trump assanhou os reacionários. Com a vitória eleitoral de Le Pen na França, o assanhamento chegou ao clímax e contagiou até conservadores mais tradicionais, seduzidos pelo canto de sereia de um paradoxal “extremismo moderado”. Para arrematar, o Supremo americano proclamou a tese absolutista da irresponsabilidade legal do presidente, dando carta branca para que Trump, caso eleito, faça tábua rasa da combalida democracia americana.

Em todo o mundo, os democratas se sentem em uma gangorra: ora o movimento do mundo parece fazer os autoritários avançarem, ora recuarem. Depois de perdida a fé na revolução na década de 1990, parece chegado o momento de perder a fé no progresso histórico. Em um momento em que a perplexidade se junta à ansiedade, nada melhor do que recorrer a explicações mais sedimentadas da ciência política. De preferência, daquelas que examinam os fenômenos de modernização na longa duração, e se possível, com uma extensa base teórica e empírica, historicamente alicerçada. Aqui, o democrata desalentado pode, quem sabe, encontrar consolação.

Nesse sentido, um dos cientistas políticos cuja contribuição foi mais frutífera foi Ronald Inglehart. No livro Modernização, Mudança Cultural e Democracia: A Sequência do Desenvolvimento Humano, publicado com Christian Welzel (2005), Inglehart argumenta que o desenvolvimento socioeconômico, a mudança cultural e a democratização são fases interconectadas de uma progressão ampla, a qual denomina desenvolvimento humano. Reconhecendo as limitações das versões anteriores da teoria da modernização (as dimensões etnocêntricas e teleológicas, principalmente), os autores defendem que permanece válida a premissa central: o desenvolvimento socioeconômico acarreta transformações sistemáticas na cultura e na política. Tal argumentação é sustentada por uma vasta gama de dados colhidos ao longo de quatro décadas, abrangendo mais de oitenta sociedades.

Para Inglehart, o desenvolvimento socioeconômico induz mudanças culturais previsíveis, incluindo a transição de valores de sobrevivência para valores de autoexpressão. À medida que as sociedades se modernizam, elas experimentam mudanças culturais previsíveis. Cada tipo de sociedade possui um tipo congruente de cultura política e de instituições. A sociedade agrária possui uma cultura hierárquica tradicional, que começa a balançar com o advento da sociedade comercial. Durante o processo de industrialização, há uma transição dos valores tradicionais para os seculares-racionais descritos por Weber. Mas os valores individuais permanecem no horizonte da classe social e com um cunho “materialista”, porque orientados pela preocupação com o básico para sobrevivência no plano da saúde, da alimentação, da moradia e da educação.

Ao adentrarem economias pós-industriais, por sua vez, na década de 1970, observa-se uma evolução de valores de sobrevivência para valores de autoexpressão. Esses enfatizam a liberdade individual, a autonomia, a igualdade de gênero, a tolerância com diversidade de orientação sexual e a participação política ativa. Considerados o principal motor da democratização, tais valores encorajam os indivíduos a desafiar as elites, apoiar movimentos sociais e demandar governança democrática. Essa evolução cultural não apenas influencia, mas também molda as instituições, predispondo as sociedades à adoção e manutenção de instituições democráticas, numa relação de retroalimentação.

A prosperidade econômica favorece a democracia, sobretudo por fomentar valores de autoexpressão, ao invés de ser um resultado direto do regime democrático.

A prosperidade econômica favorece a democracia, sobretudo por fomentar valores de autoexpressão, ao invés de ser um resultado direto do regime democrático. Inglehart reconhece por isso o papel crucial da cultura na configuração dos resultados democráticos. Ela é considerada o elo perdido entre as instituições e o comportamento político, que dependem da motivação que só um sistema de crenças oferece. Ele também contesta a ideia de que a democracia pode ser conquistada exclusivamente através de ações coletivas lideradas por elites, alegando que seu sucesso é mais provável em sociedades onde a cultura de massa já se mostra receptiva à ela.

Se esse era o otimismo evolucionista de Inglehart no auge da globalização, como ele explicou depois a emergência do populismo reacionário? É o que ele tentou em Backlash cultural: Trump, Brexit, e o populismo autoritário, livro escrito com Pippa Norris (2019). O livro explica a “reviravolta cultural” como um reflexo autoritário entre aqueles que se sentem ameaçados pelas rápidas transformações culturais, imigração intensificada e condições econômicas instáveis. Reflexo que privilegia a segurança coletiva, a adesão a costumes tradicionais, o combate aos estrangeiros e a fidelidade a líderes fortes, apoiado por uma retórica populista do “nós contra eles”.

A reviravolta cultural consiste assim em uma reação contra a “revolução silenciosa” dos valores culturais ocorrida a partir de 1970. Alimentada pela segurança existencial sem precedentes no pós-guerra, essa revolução teria gerado uma mudança intergeracional de valores, onde as gerações mais jovens passaram a valorizar a livre escolha individual e a autoexpressão (pós-materialistas) em detrimento dos valores materialistas focados na segurança econômica e física (materialistas). Tal mudança manifesta-se numa ênfase ampliada na proteção ambiental, movimentos pela paz, liberalização sexual, direitos humanos, igualdade de gênero, cosmopolitismo e respeito aos direitos das minorias.

Daí porque o cultural backlash seria particularmente vigoroso nas duas gerações mais antigas: a nascida no período entreguerras (1918-1945) e os Baby Boomers (1946-1964), grupos numericamente cada vez menores. Em princípio resignados, os conservadores passaram a reagir ressentidos à erosão dos seus valores, questionando do ponto de vista moral normas sociais modernas, como a aceitação de estilos de vida multiculturais, diversidade étnica, fronteiras cosmopolitas e identidades de gênero fluidas.

O conceito de ponto de inflexão (tipping point) é aqui essencial para compreender quando a “revolução silenciosa” provoca uma reação cultural (backlash). À medida em que as sociedades experimentam mudanças culturais, o equilíbrio entre valores liberais e conservadores atinge um ponto crítico. Grupos conservadores, antes majoritários, veem-se como uma minoria crescente, sentindo seus valores tradicionais marginalizados e desrespeitados. Esse sentimento de perda de status alimenta o ressentimento tanto contra elites culturais, responsáveis por impulsionar tais mudanças, quanto contra grupos minoritários percebidos como beneficiários delas.

A percepção de que as elites culturais são indiferentes às preocupações da “maioria silenciosa” cria terreno fértil para o apelo populista de líderes que prometem defender a “verdadeira” cultura.

A reação a este ponto de inflexão desencadeia o “reflexo autoritário” na forma de uma nostalgia pelos valores tradicionais, desejosa de ordem social e conformidade, e pelo anseio por líderes fortes restaurarem a segurança coletiva, mesmo ao custo de liberdades individuais. A imigração torna-se um foco específico de tensão, alimentando ansiedades sobre a erosão das identidades culturais, especialmente em tempos de instabilidade econômica. A percepção de que as elites culturais são indiferentes às preocupações da “maioria silenciosa” cria um terreno fértil para o apelo populista de líderes que prometem defender a “verdadeira” cultura e os valores nacionais.

O cultural backlash tem fortes consequências políticas. A divisão geracional tende a intensificar a clivagem cultural, independentemente de melhorias econômicas ou da desaceleração da globalização. A força da política cultural gera tensões e divisões dentro dos partidos tradicionais, criando oportunidades para líderes populistas. Seria possível argumentar também – agora sou eu – que, coesos em torno de ideologias conservadoras, embora sejam uma minoria, os autoritários conformam a maior e mais disciplinada de todas as minorias. Não se dividem em grupúsculos, como os progressistas fracionados entre a nova e a velha esquerda, cuja coesão é prejudicada ademais pela tendência inconformista.

Tudo somado, a conclusão possível é a de que o backlash é um fenômeno destinado a desaparecer geracionalmente. Mas este é um consolo que não deve desmobilizar os democratas para ação de resistência e reorganização. Basta ver à direita a tentação dos conservadores ditos “democratas” em aderir a autoritários que usem talheres. E, à esquerda, e o estado de fragmentação dos social-democratas, divididos entre uma ala obsoleta (“industrial”) e outra, moderna (“pós-industrial”), mas retalhada em grupúsculos identitários. Sem ação coletiva organizada, não há como fazer frente à minoria autoritária. Enquanto isso, a grande minoria reacionária está disposta à ditadura para suprimir as instituições voltadas para a produção da cultura democrática, começando pela justiça e pela educação. Tudo para atrasar o desaparecimento de sua própria “identidade”.

Moral da história: no longo prazo, a vitória da democracia é certa. O problema é que, como alguém já disse, no longo prazo, estaremos todos mortos.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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O populismo reacionário como efeito colateral da modernização

03/07/24 • 11:00

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